- O Estado de S.Paulo
O rancor, a arrogância e a prepotência podem se transformar em fatores criminógenos
O direito penal nunca deixou de ser assunto na vida nacional, mas de uns anos para cá assumiu um protagonismo fora do normal. Restrito antigamente às páginas policiais ou lembrado vez ou outra em algum evento da política, nos últimos anos roubou a cena, de modo que não há dia em que ao menos uma grande manchete do caderno de política não seja sobre crime, acusações, inquéritos, sentenças, etc...
A pandemia de covid-19 parecia que ia pôr um fim ao penal-centrismo, com forte viés punitivo, a que o País vinha assistindo. No entanto, o direito penal no Brasil parece predestinado a ocupar lugar de destaque mesmo em momentos excepcionais como este que vivemos.
Primeiro foi o próprio Executivo federal criando polêmica com a edição de portarias que anunciavam risco de prisão a quem descumprisse regras de isolamento e quarentena, prisões que até chegaram a ser feitas, como noticiado pela mídia.
Foi, porém, o pronunciamento do ex-ministro Sergio Moro, ao anunciar sua saída do governo, o responsável por trazer de volta, e a galope, o direito penal para o centro do debate político nacional.
Moro desfiou um rosário de crimes que podem ter sido cometidos pelo presidente da República, desde falsidade ideológica até corrupção, prevaricação, passando ainda pelo novato crime de obstrução de Justiça. A fala cifrada do ex-ministro põe suspeitas até sobre sua própria conduta, como no caso de ter admitido que solicitou ao presidente a edição de uma lei que, em caso de atentado, pudesse garantir alguma salvaguarda financeira à sua família.
Ambos, presidente e ex-ministro, parecem se achar protegidos pela aura de cidadãos especiais, merecedores de tratamento diferenciado perante a lei. Afinal, que espécie de lei seria essa que já não exista para socorrer as famílias dos milhares de policiais, bombeiros e outros agentes que lidam com o alto risco em suas funções? Ou, se deficiente a lei vigente, por que uma salvaguarda especial para o ministro, e não algo extensivo a todos? Enquanto o presidente parece acreditar que, enquanto chefe do Executivo, pode usar a Polícia Federal como escritório privado de investigação a serviço dos próprios interesses, o ex-ministro se arroga o direito a um estrambólico seguro para um cargo demissível ad nutum.
Muito embora o direito penal possa parecer a panaceia para todos os males que nos afligem, ele não é capaz de nos tirar da crise em que nos encontramos. A crise é política e só a política é capaz de fornecer os antídotos que nos livrarão dela.
A política, entendida como arte e ciência empregadas para o alcance do bem comum, tem como substrato a ética, que constitui um dos pilares de sustentação da sociedade. Para o enfrentamento de questões cruciais de interesse coletivo, política e ética não podem ficar afastadas, sob pena de se instalar o caos e a ruptura sociais.
No entanto, a política e a ética, neste momento da História brasileira, parecem ter sido postas de lado pelos dois protagonistas citados, e por tantos outros homens públicos. Foram substituídas por condutas que claramente violam os princípios e objetivos que regem a política sã e afrontam a ética no seu sentido mais abrangente.
Observe-se que outros princípios que valorizam e emprestam dignidade à vida em sociedade foram postos de lado, e já há algum tempo, abrindo espaço ao destempero, à desarmonia e à belicosidade. Assim, o respeito à divergência e à convivência com os contrários, que é da essência da democracia, o respeito à verdade, o respeito à liberdade e aos direitos alheios e tantas outras qualidades civilizatórias estão dando lugar à intemperança e à intolerância raivosa.
Esse comportamento vem dando mau exemplo e espalhando um ensinamento que poderá levar, se já não está levando, o homem brasileiro a revelar uma face cruel e abjeta, que é o ódio.
Hanna Arendt disse que o mal banalizado rompe todas as barreiras éticas e morais e vai se incorporando ao nosso cotidiano. É exatamente esse o clima que está sendo implantado no seio da nossa sociedade.
Na verdade, o mal da intolerância está permeando todo relacionamento interpessoal. Não há tolerância com o pensar diferente, com o contrário. De fato, essa característica representa a negação do espírito democrático, que deveria reger toda ação política.
A democracia não se exaure com o exercício do voto. Deve constituir um instrumento de paz social, pois conduz à convivência harmoniosa dos contrários. Infelizmente, o quadro hoje posto provoca preocupantes efeitos colaterais. O principal é a intolerância, que se tem tornado um padrão de comportamento.
O rancor, a arrogância e a prepotência, filhos diletos da intolerância e do ódio, podem se transformar em fatores criminógenos. Aliás, os crimes contidos nas falas acima referidas, do presidente e do ex-ministro, são um espelho de uma convivência marcada por antagonismo, incompreensão e não aceitação do contrário.
Em realidade, o comportamento desabrido daqueles que deveriam dar exemplos edificantes tem causado hábitos de intemperança e desrespeito ao próximo. Maculam-se reputações sem nenhum escrúpulo, com assustadora leviandade, por meio das redes sociais, hoje transformadas em instrumento de difusão de mentiras e de agressões.
*Advogados criminais
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