- O Globo
Quando Bolsonaro interfere através da PF, está, em cascata, interferindo no próprio Supremo
No dia seguinte ao seu discurso em frente ao Quartel do Exército, para um grupo, o presidente Bolsonaro justificou-se: “Eu sou, realmente, a Constituição.”
Não é, evidentemente. Nem precisa explicar.
O importante é ter revelado um drama psíquico-político. Quase shakespeariano. Como me manter constitucionalmente no cargo, não sendo eu a Constituição? Com constituição alheia? A Constituição são os outros.
Já foi dito. Não basta ser eleito constitucionalmente. É preciso se manter constitucionalmente.
Cerca de 30% da opinião pública parecem preferir Bolsonaro como Constituição.
Mas o Supremo discorda.
Alexandre de Moraes e Celso de Mello lideram a defesa da Constituição em vigor. Moraes proibiu que a Polícia Federal lhe retirasse os delegados que trabalham diretamente com ele em inquéritos. Limitou. Proibiu a posse do delegado Ramagem como chefe da Polícia Federal. Limitou.
Celso de Mello aceitou a denúncia contra Jair Bolsonaro. Limitou. E mais. Para que não houvesse demora nas investigações e coleta de provas, determinou a ouvida de Sergio Moro em apenas cinco dias. Limitou outra vez.
No direito processual, o prazo pode ser o senhor da Justiça. Não há que se correr riscos.
A Constituição de Bolsonaro reage. Permite-lhe atacar o Supremo e a democracia com ameaças de crise constitucional. Acusa de interferência política a proibição de Moraes da posse de Ramagem.
Alguns juristas, mais radicalmente formalistas, acusam a Moraes de ativismo judicial. Assim o Supremo estaria mesmo interferindo no Executivo.
Confundem-se e enganam-se, data venia.
Uma sentença, acórdão, qualquer decisão judicial não cai do ar sozinha. Não se julga com os pés na Lua, diria Sepúlveda Pertence. Resulta de uma concatenada linha de produção. Que inclui petições, denúncias, despachos, inquéritos etc. Se uma das etapas desta linha de produção se contamina com vírus da interferência política, nos inquéritos, por exemplo, contamina todas as etapas. Até o final: a decisão do ministro do Supremo.
Quando Bolsonaro interfere através da Polícia Federal, está, em cascata, interferindo no próprio Supremo. Isto sim é ativismo político judicializado.
O Supremo está se defendendo, sim, do ativismo bolsonarista. É autodefesa. A defesa de seu livre convencimento.
A base de apoio do “Eu sou, realmente, a Constituição” está em momento delicado. O presidente tem mandado mensagens que podem atingi-los emocionalmente. Mudar percepções.
Não é mais vida contra emprego. Governador contra presidente. Ou isolacionismo social contra abertura de shopping. A nova pauta não é mais sobre divergência de políticas públicas. A nova pauta é sobre comportamentos. Toca a alma da opinião pública.
Pessoas estão morrendo. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”. A mensagem foi: o desprezo pelos mortos.
“Mais um motivo para a troca” (sobre o chefe da Polícia Federal). A mensagem foi: a corrupção pode estar chegando no governo.
“Eu talvez já tenha pegado esse vírus no passado, talvez, talvez, e nem senti”. A mensagem foi: pode ter mentira no ar.
“Em relação a um possível número de mortes, e hoje estamos em 435, o número de 1.000, se tivermos um crescimento significativo na pandemia, é possível acontecer.” A mensagem do ministro da Saúde foi: somos ineficientes.
Nenhuma Constituição pode se basear no desprezo pela vida, na potencial corrupção, na mentira sobre a saúde do presidente, nem na ineficiência governamental.
Nada mais contra o estado democrático de direito do que afirmar: “Eu sou, realmente, a Constituição.”
*Joaquim Falcão é professor de Direito Constitucional
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