Extrema-direita
e Trump têm aproveitado o contexto para acirrar os ânimos
Quando
Igor Panarin, um cientista político e futurólogo russo, anunciou a desagregação
dos EUA, ninguém levou a sério a previsão. Desde fins do século XX, o russo
trabalhava com a hipótese. Sob os influxos da grande crise econômica de 2008,
Igor voltou à carga. Em palestra proferida em março de 2009, desceu a detalhes:
a grande potência se dividiria, já no ano seguinte, em cinco países, e era urgente
evitar que o processo não degenerasse em guerra civil. As elucubrações
suscitaram ceticismo e ironia. Igor Panarin teve os seus 15 minutos de glória e
desapareceu no olvido das gentes.
Uma
análise séria, porém, acaba de ser publicada pela jornalista Valentine Faure,
sobre uma ameaça que ronda as atuais eleições estadunidenses: a secessão e, no
limite, uma hipotética, embora improvável, guerra civil.
O
inventário das fraturas existentes na sociedade não deixa de ser
impressionante. David French, cientista político, entrevistado por ela,
registra que “não há hoje uma só força, cultural, religiosa, política ou social
importante que unifique os americanos”.
Numa
sociedade complexa e democrática, atravessada por contradições, conflitos são
inevitáveis e podem inclusive fortalecer a convivência social. Entretanto
estaria em curso um processo deletério de radicalização, em torno de um
conjunto de temas que vêm polarizando de forma sectária os americanos, entre os
quais têm se destacado a questão das relações, sempre controvertidas, entre
intervencionismo estatal e liberdade pessoal, a discriminação racial, a
emancipação da mulher e a interrupção voluntária da gravidez, as opções e as
identidades sexuais, o ensino religioso nas escolas, o direito de educar os filhos
na própria casa, as reconstruções memorialísticas do passado, a liberdade para
adquirir e portar armas, a política em relação aos imigrantes, as previsões
mais ou menos apocalípticas sobre o aquecimento da atmosfera e do clima, o voto
pelo correio.
A
pandemia, acentuando tensões, suscitou novas querelas sobre as teses
negacionistas, as razões e as desrazões do confinamento, a obrigatoriedade do
uso de máscaras, a liberdade de aceitar ou não eventuais vacinas. É claro que
não se poderia esperar — nem seria desejável — que houvesse consenso sobre
essas questões, mas o inquietante é o nível de intransigência, conduzindo à
quebra de laços de amizade e até mesmo familiares. É como se as pessoas
começassem a não suportar mais aceitar divergências antes consideradas
razoáveis.
Teorias
conspiratórias disseminam-se na sociedade, como a formulada por QAnon, um
suposto e não identificado personagem que divulga a existência de forças
ocultas, como a burocracia estatal, o denunciado “Estado profundo”, ou seitas
de pedófilos satânicos, dedicadas a raptar crianças inocentes, estuprando-as e
canibalizando-as. A rigor, boatarias, usos e abusos de mentiras, as atuais fake
news, existem desde os tempos bíblicos. Mas é inegável que as novas mídias
sociais — e procedimentos técnicos que conferem realidade a acontecimentos
irreais — têm potencializado enormemente a força e o impacto de mensagens que
vêm mais para confundir do que para informar.
As
forças de extrema-direita e Donald Trump têm aproveitado esse contexto, para acirrar
os ânimos e investir sem escrúpulos na perspectiva da radicalização das gentes.
Pesquisa recente revelou que, nos últimos três anos, as pessoas que consideram
possível usar armas para alcançar seus objetivos, passou de 8% para 33%.
Ernest Renan, pensador francês, argumentava, em fins do século XIX, que uma nação é resultado de um “plebiscito” de todos os dias. Os americanos reafirmarão no plebiscito que se aproxima sua vontade de permanecer juntos? Valentine Faure termina seu artigo invocando a figura de Thomas Jefferson, que falava na importância decisiva dos “acordos místicos da memória” para fazer, das colônias que se emancipavam da Inglaterra, estados unidos. É de perguntar se esses “acordos místicos” prevalecerão sobre os ódios desatados pela intolerância.
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