sábado, 31 de outubro de 2020

Daniel Aarão Reis - O espectro dos estados desunidos

- O Globo

Extrema-direita e Trump têm aproveitado o contexto para acirrar os ânimos

Quando Igor Panarin, um cientista político e futurólogo russo, anunciou a desagregação dos EUA, ninguém levou a sério a previsão. Desde fins do século XX, o russo trabalhava com a hipótese. Sob os influxos da grande crise econômica de 2008, Igor voltou à carga. Em palestra proferida em março de 2009, desceu a detalhes: a grande potência se dividiria, já no ano seguinte, em cinco países, e era urgente evitar que o processo não degenerasse em guerra civil. As elucubrações suscitaram ceticismo e ironia. Igor Panarin teve os seus 15 minutos de glória e desapareceu no olvido das gentes.

Uma análise séria, porém, acaba de ser publicada pela jornalista Valentine Faure, sobre uma ameaça que ronda as atuais eleições estadunidenses: a secessão e, no limite, uma hipotética, embora improvável, guerra civil.

O inventário das fraturas existentes na sociedade não deixa de ser impressionante. David French, cientista político, entrevistado por ela, registra que “não há hoje uma só força, cultural, religiosa, política ou social importante que unifique os americanos”.

Numa sociedade complexa e democrática, atravessada por contradições, conflitos são inevitáveis e podem inclusive fortalecer a convivência social. Entretanto estaria em curso um processo deletério de radicalização, em torno de um conjunto de temas que vêm polarizando de forma sectária os americanos, entre os quais têm se destacado a questão das relações, sempre controvertidas, entre intervencionismo estatal e liberdade pessoal, a discriminação racial, a emancipação da mulher e a interrupção voluntária da gravidez, as opções e as identidades sexuais, o ensino religioso nas escolas, o direito de educar os filhos na própria casa, as reconstruções memorialísticas do passado, a liberdade para adquirir e portar armas, a política em relação aos imigrantes, as previsões mais ou menos apocalípticas sobre o aquecimento da atmosfera e do clima, o voto pelo correio.

A pandemia, acentuando tensões, suscitou novas querelas sobre as teses negacionistas, as razões e as desrazões do confinamento, a obrigatoriedade do uso de máscaras, a liberdade de aceitar ou não eventuais vacinas. É claro que não se poderia esperar — nem seria desejável — que houvesse consenso sobre essas questões, mas o inquietante é o nível de intransigência, conduzindo à quebra de laços de amizade e até mesmo familiares. É como se as pessoas começassem a não suportar mais aceitar divergências antes consideradas razoáveis.

Teorias conspiratórias disseminam-se na sociedade, como a formulada por QAnon, um suposto e não identificado personagem que divulga a existência de forças ocultas, como a burocracia estatal, o denunciado “Estado profundo”, ou seitas de pedófilos satânicos, dedicadas a raptar crianças inocentes, estuprando-as e canibalizando-as. A rigor, boatarias, usos e abusos de mentiras, as atuais fake news, existem desde os tempos bíblicos. Mas é inegável que as novas mídias sociais — e procedimentos técnicos que conferem realidade a acontecimentos irreais — têm potencializado enormemente a força e o impacto de mensagens que vêm mais para confundir do que para informar.

As forças de extrema-direita e Donald Trump têm aproveitado esse contexto, para acirrar os ânimos e investir sem escrúpulos na perspectiva da radicalização das gentes. Pesquisa recente revelou que, nos últimos três anos, as pessoas que consideram possível usar armas para alcançar seus objetivos, passou de 8% para 33%.

Ernest Renan, pensador francês, argumentava, em fins do século XIX, que uma nação é resultado de um “plebiscito” de todos os dias. Os americanos reafirmarão no plebiscito que se aproxima sua vontade de permanecer juntos? Valentine Faure termina seu artigo invocando a figura de Thomas Jefferson, que falava na importância decisiva dos “acordos místicos da memória” para fazer, das colônias que se emancipavam da Inglaterra, estados unidos. É de perguntar se esses “acordos místicos” prevalecerão sobre os ódios desatados pela intolerância.

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