Governo francês capitula na batalha pela alma dos seus cidadãos muçulmanos
Samuel
Paty, professor numa cidade do anel periférico de Paris, foi degolado por um
jihadista após exibir os célebres cartuns satíricos de Maomé, numa aula
dedicada à liberdade de expressão. A França chorou sua morte, Emmanuel
Macron declarou guerra ao "terrorismo islamita" e o turco
Recep Erdogan clamou por um boicote a produtos franceses no mundo muçulmano.
"O islã pertence à Alemanha" —parece ter transcorrido um século, mas
foram só cinco anos desde que Angela Merkel pronunciou aquelas palavras, no
auge da crise dos refugiados.
Lágrimas,
primeiro. O assassinato chocou a França de um modo atroz. Diferente de outros
atentados de "lobos solitários", não foi um ato de terror aleatório.
No seu intenso simbolismo, mirou a escola, reativou a memória do massacre do
Charlie Hebdo e imitou as decapitações perpetradas pelo Estado Islâmico.
Armas,
depois. Macron ordenou uma
série de operações policiais que ultrapassam os limites do círculo
direto do terrorista, abrangendo mesquitas radicalizadas e redes sociais de
difusão do jihadismo. Mas, para além disso, empregou um arsenal de linguagem
que rompe as fronteiras tradicionais. O presidente conectou o islã ao terror,
num salto narrativo típico da direita xenófoba europeia.
No
7 de janeiro de 2015, terroristas ligados à Al Qaeda invadiram a redação do
Charlie Hebdo, em Paris, matando 12 pessoas. Nos dias seguintes, 3,7 milhões de
franceses, inclusive dezenas de milhares de muçulmanos, marcharam em repúdio ao
atentado. Na ocasião, os líderes da França —com a marcante exceção
de Marine Le Pen, voz da direita nacionalista— falaram em
"jihadismo", não em "islamismo". Agora, porém, Macron
assimila o discurso de Le Pen, com quem disputará a Presidência em 2022.
O
termo jihadismo delimita o campo extremista do terror e o distingue do islã.
Face ao assassinato de Paty, Macron escolheu, porém, a sintaxe do "choque
de civilizações". O professor, disse, "foi morto porque os islamitas
querem o nosso futuro", mas "não desistiremos de nossos
cartuns". Nas marchas de 2015, o slogan "Eu sou Charlie"
sintetizava a defesa da liberdade de expressão. Já nas declarações atuais do
presidente o conteúdo
da sátira jornalística transforma-se em algo como uma doutrina oficial
francesa.
"Nossos"
cartuns? Os cartuns do jornal converteram-se em cartuns nacionais? O governo da
França resolveu satirizar uma religião singular?
A
linguagem do "choque de civilizações" foi um presente involuntário
oferecido a Erdogan, que manipula o islã como ferramenta para consolidar seu
regime autoritário na Turquia e projetar influência no Oriente Médio, na África
do Norte e no Cáucaso. A batalha verbal travada com Macron estimulou protestos
antifranceses em diversas cidades árabes.
Há
uma clara distinção entre o secularismo estatal, pilar da unidade nacional
francesa, e a identificação do islã como fé estrangeira ou ameaçadora. As
sementes da expansão colonial francesa em terras islâmicas foram lançadas na
fracassada campanha de Napoleão Bonaparte ao Egito e à Síria, entre 1798 e
1801. Hoje, os muçulmanos, 5,8 milhões, formam quase 9% da população da França.
Mais ainda que à Alemanha, o islã pertence à França. O combate ao jihadismo
nunca deveria se confundir com uma acusação divisiva, que ofende a minoria
muçulmana do país.
Na
esteira de Paty, vieram
as três vítimas de Nice, esfaqueadas na basílica de Notre Dame. A culpa
recai, indiscutivelmente, sobre o jihadismo, não sobre os discursos
presidenciais. Mas as referências aos "nossos cartuns", que parecem
um corajoso grito de desafio, não passam de vergonhosa rendição. "Nós não
desistiremos de nada", garantiu Macron após o atentado de Nice. Falso:
quando rompe a neutralidade estatal diante da religião, o governo francês está
capitulando na batalha pela alma dos seus cidadãos muçulmanos.
*Demétrio Magnoli, Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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