Desde
que a terceira onda de autocratização começou em 1994, 75 episódios de aumento
de governos autocráticos – períodos de declínio democrático substancial –
ocorreram em todo o mundo. A maioria não envolveu violência física. Ou seja, em
mais de 52 países os processos de autocratização (ou de assassinato lento da
democracia) não rasgaram as constituições (e, pode-se acrescentar, deixaram as
instituições funcionando).
As
democracias agora são mortas lentamente, como por envenenamento (por arsênico,
por exemplo). Isso pode ser feito sem violar as leis, rasgar a Constituição,
fechar as instituições (e empastelar a imprensa).
Tanques
nas ruas? Nem pensar. Direitos políticos e liberdades civis formais podem
permanecer vigendo. Além disso, eleições multipartidárias podem continuar
ocorrendo normalmente.
Ah!…
mas se tudo isso está funcionando, por que se diz então que as democracias
estão sendo mortas? Pois é. Para dar uma resposta a esta pergunta é preciso
entender o que é a democracia. Pela visão minimalista de democracia – como
troca (eleitoral) de governo sem derramamento de sangue – a democracia não está
ameaçada nesta terceira onda de autocratização. O que, por si só, revela que
essa visão – que reduz a democracia ao processo eleitoral – é absurda. E é
absurda, antes de qualquer coisa, porque não percebe que as principais ameaças
atuais à democracia vêm dos populismos – que amam de paixão as eleições (2).
Todavia,
mais de 80% dos nossos representantes políticos e uma parte considerável de
nossos analistas, também não conseguem entender como a democracia pode estar
sendo derruída sem violação das leis. É a isso que nos referimos quando falamos
do nosso déficit de democratas.
Para
onde devemos olhar para perceber os sinais de envenenamento que estão matando
as democracias lentamente? E que sinais são esses?
Recolocando
a questão. Onde estão os sinais de envenenamento (da democracia) quando o corpo
(as instituições) ainda acha que está sadio? Ou seja, nos estágios iniciais da
“doença”, as instituições não percebem que estão sendo envenenadas.
O
Estado de direito não dá conta de identificar os ataques contemporâneos à
democracia e de se defender desses ataques. Como eles (esses ataques, que são
contínuos ou intermitentes – e não se parecem nada com um putsch de
cervejaria) não violam abertamente as leis, então são considerados parte da
dinâmica normal da democracia. É como colocar o vigia noturno de uma manufatura
para cuidar da segurança da Microsoft.
É
por isso que não existem leis contra a falsificação da opinião pública via
manipulação das mídias sociais. E não é porque isso seja uma novidade
contemporânea (do século 21). Bem antes, já não existiam leis contra o discurso
inverídico, contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a
própria democracia e nem contra a destruição das normas não escritas que estão
abaixo do sistema legal-institucional e lhe dão suporte.
É
justamente nessas falhas estruturais da democracia que devemos procurar os
sinais de envenenamento (ou de desconsolidação) da democracia (3).
Apenas com os indicadores atuais de direitos políticos e liberdades civis (usados, por exemplo, pela Freedom House, pela The Economist Intelligence Unit ou mesmo pelo V-Dem) não se consegue captar esses sinais. Até porque eles são fracos nos estágios iniciais do envenenamento. E além de fracos, eles não são visíveis diretamente. As mudanças que vão matar lentamente a democracia são subterrâneas (4).
Alguns sinais de envenenamento da democracia
Se
houvesse um número suficiente de democratas, alguns sinais de avanço do
autoritarismo e de desconsolidação da democracia teriam sido percebidos por uma
parcela maior de pessoas e teriam alertado a sociedade sobre os perigos que
está correndo.
Quais
seriam esses sinais? Vão abaixo alguns exemplos. O primeiro deles – o marco
zero de qualquer processo de desconsolidação da democracia – é o crescimento de
uma retórica autoritária por parte de líderes emergentes que conseguem infectar
a esfera pública; e o último, que resume tudo, é a dilapidação progressiva do
estoque de capital social.
Tirando
os itens mais óbvios, como os ataques à imprensa profissional, o surgimento de
propostas de armamentismo da população (não apenas para defesa pessoal ou como
política de segurança pública e sim como preparação para combater algum inimigo
interno) e o florescimento de seitas fundamentalistas que misturam religião com
política, cabe examinar aqui o que é menos óbvio ou menos percebido pelas
análises políticas.
Registre-se
que o caso brasileiro tem uma singularidade em relação a outros processos de
autocratização da democracia que estão ocorrendo no mundo atual. Aqui há,
historicamente, a permanência da tutela militar sobre o poder civil e a
presença de forças armadas (ou policiais) possuídas pela ideologia do “inimigo
interno”. É alto o grau de aparelhamento do governo por oficiais das forças
armadas (sendo altíssima a porcentagem de militares da ativa ou da reserva que
ocupam cargos de primeiro, segundo e terceiro escalões). Além disso, oficiais
das forças armadas, da ativa ou da reserva, emitem declarações políticas
tentando intimidar ou pressionar as instituições civis (como os tribunais
superiores e o parlamento). Não vamos tratar agora, porém, dessa
particularidade.
Mas
estes – ataques à imprensa, armas e munições para abastecer milícias, tutela
militar e militarização – não são sinais de envenenamento lento da democracia.
Já são ofensivas abertas e declaradas à democracia. Vamos examinar aqui apenas
sete sinais, portanto:
1
– O crescimento de uma retórica autoritária, inicialmente antissistema e, em
seguida, anti-democracia.
2
– O aumento da relevância de forças políticas populistas (i-liberais e
majoritaristas, ditas “de direita” ou “de esquerda”) e o recrudescimento da
polarização (“nós” contra “eles”) com a consequente degeneração da política
como guerra.
3
– A subversão da democracia por meios democráticos (ou o uso da democracia –
notadamente das eleições – contra a própria democracia).
4
– A replicação do discurso antipolítico (associado – mas nem sempre – ao
combate à corrupção) e a ascensão de movimentos de opinião que pregam a
realização de cruzadas de limpeza (étnica, ética, religiosa ou nacional).
5
– A proliferação de milícias digitais que falsificam a opinião pública por meio
da manipulação das mídias sociais.
6
– A violação das normas não-escritas que estão abaixo do sistema
legal-institucional e lhe dão sustentação.
7
– Para resumir (ou sintetizar) tudo, a dilapidação do estoque (ou a interrupção
do fluxo) de capital social.
Vamos
examinar a seguir cada um desses sinais.
1 – O crescimento de uma retórica autoritária, inicialmente antissistema e, em seguida, anti-democracia
Como
já foi dito, tudo começa com a retórica. É sempre o primeiro sinal. Se
candidatos, governantes ou representantes das forças políticas que o
apoiam, têm a coragem de vir à esfera pública proferir ideias autoritárias
(ainda que sejam só ideias), então isso – se não for um ato isolado, episódico,
marginal, mas uma prática sistemática – é um indício de que um processo de
autocratização está em curso.
“Ah! Mas é pura retórica” –
argumentam as pollyannas que sempre pontificam nessas horas.
Nada disso. Retórica é política. Se há a presença de uma retórica autoritária é
porque já há uma política autoritária (às vezes em embrião).
O
discurso intolerante é um sintoma de que uma guerra (contra a democracia: e a
guerra, qualquer guerra, até mesmo a política praticada como continuação da
guerra por outros meios, já é contra a democracia) está chegando. Quando as
palavras começam a ser usadas como armas para atingir as instituições e os
procedimentos democráticos, alguma coisa muito ruim está vindo. Tudo começa com
a fala.
Se
Jair Bolsonaro, quando era deputado, ao fazer apologia da ditadura e da tortura
e falar em matar adversários políticos – tudo “pura retórica” – tivesse sido
punido, talvez hoje não estivesse capitaneando, como presidente da República, a
depredação da democracia no Brasil. Isso nos remete diretamente ao Paradoxo da
Tolerância, de Karl Popper (1945): “A tolerância ilimitada pode levar
ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até
àqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma
sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a
destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância” (5).
Diz-se
que a democracia é o tipo de regime onde é lícito discordar publicamente do
próprio regime. E que atos ilícitos em uma democracia são aqueles que levem a
ações concretas que ponham a democracia em risco real e iminente. Este é um
erro muito comum, sobretudo sob a terceira onda de autocratização em que
vivemos. Pois como definir “risco real e iminente” numa época em que as
democracias não caem mais por golpes armados, mas são derruídas lentamente, em
alguns casos até sem violar explicitamente as leis e rasgar as constituições.
Numa época como esta, quando os regimes democráticos são vítimas de um
envenenamento diário, baseado – antes de qualquer coisa – em retórica
autoritária e propaganda da intolerância, não vale mais o velho argumento
principista de que vale tudo “se for só retórica”.
Argumentar,
em termos teóricos, contra a democracia, é lícito, por certo, em democracias.
Mas não fazer propaganda da ditadura, do fechamento do parlamento, da prisão
dos membros dos tribunais, da volta de leis de exceção. Isso não é liberdade de
opinião e sim apologia da ditadura. Apologia de ditadura não é liberdade de
opinião: é crime. Pergunte-se a qualquer um na Alemanha se fazer apologia do
nazismo é liberdade de opinião. Apologia do fim da liberdade de opinião não
pode ser encarada como liberdade de opinião. Por isso a pregação da
intolerância não pode ser tolerada.
O
discurso intolerante pode ser detectado por perguntas simples. No caso
brasileiro atual elas chegam a ser óbvias (6). Não é por falta delas que não se
detecta precocemente a autocratização do regime e sim porque não há uma visão
clara das condições para que uma democracia não se desconsolide. E não há,
entre muitas outras razões, porque os populismos tomaram de assalto a esfera
pública de opiniões.
O
fato é que todos os populismos, digam-se “de esquerda” ou “de direita”, usam e
abusam da retórica antissistema. Querem jogar o povo (quer dizer, seus
seguidores) contra o sistema (o establishment, representado pelas
elites). O problema é quando o sistema que denunciam é o sistema democrático.
Aí é necessário acender o alerta amarelo no nosso sistema de detecção precoce
de desconsolidação da democracia.
2 – O aumento da relevância de forças políticas populistas (i-liberais e majoritaristas, ditas “de direita” ou “de esquerda”) e o recrudescimento da polarização (“nós” contra “eles”) com a consequente degeneração da política como guerra.
Antes
de qualquer coisa é necessário entender o que são os populismos contemporâneos.
Não é a velha demagogia, que raramente ameaça de morte à democracia. Se a
democracia não pudesse metabolizar os demagogos, fisiológicos e corruptos que
sempre aparecem, então nunca teria havido democracia. O que a democracia não
consegue metabolizar é um grande aumento de populistas antidemocratas,
i-liberais e majoritaristas – que são uma forma contemporânea e maligna de
populismo.
Populistas
contemporâneos caracterizam-se por esposar as seguintes crenças: 1 – A
sociedade está dividida por uma única clivagem, separando a vasta maioria (o
povo) do establishment (as elites); 2 – A polarização (elites
x povo) deve ser encorajada. Os representantes do povo (que são os atores
legítimos ou mais legítimos) não devem fazer acordos (a não ser táticos) ou
construir consensos (idem) com os representantes das elites (posto que estes são
ilegítimos ou menos legítimos) e sim buscar sempre suplantá-los, fazendo
maioria em todo lugar (majoritarismo); 3 – As minorias políticas
(antipopulares) não devem ser toleradas (e devem ser deslegitimadas) quando
impedem a realização das políticas populares e a legalidade institucional
(erigida para servir às elites) não deve ser respeitada quando se contrapõe aos
interesses do povo.
Definitivamente,
daí sai não política, mas guerra. Ora, a guerra é o contrário da democracia
(que é um modo pazeante, ou não-guerreiro, de regulação de conflitos): seja a
guerra quente, seja a guerra fria, seja a política como continuação da guerra
por outros meios (na fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin). A
predominância ou a incidência relevante de uma política como guerra do “nós”
contra “eles” é um sinal de desconsolidação da democracia.
Quando
uma força política populista (dita de esquerda, de direita ou de
extrema-direita) consegue alcançar, digamos, uns 20% de adesão, já é sinal de
que a democracia foi envenenada (e pode vir a se desconsolidar).
Mas
se houver dois populismos (ditos “de esquerda” x “de direita”) polarizando o
cenário político, então é sinal de que a democracia foi seriamente
comprometida. Porque a polarização tende a marginalizar quem não está em um dos
polos. Ela deforma o campo de tal maneira que uma partícula qualquer não pode
ter uma trajetória livre nesse campo: escorrerá por creodos, por
sulcos já cavados, indo parar em um dos polos, excluindo os democratas e, no
limite, defenestrando-os da cena pública.
Quando
um conjunto de forças democráticas não funciona mais como centro de gravidade
da política, é sinal de que a democracia já começou a se desconsolidar. Cabe
registrar que o conceito de ‘centro’, aqui mencionado, não é o geométrico,
evocando uma equidistância entre esquerda e direita. Centro é o centro de
gravidade da política. Então, repetindo, é possível afirmar que quando um
conjunto de forças democráticas não funciona mais como centro de gravidade da
política, é sinal de que a democracia já começou a se desconsolidar.
Não
raro, populismos ditos “de esquerda” preparam o terreno para o surgimento de
populismos ditos “de direita”. No Brasil deste século, o neopopulismo
lulopetista começou a envenenar a democracia com a insistência no “nós” contra “eles”
e a degeneração da política como guerra. Isso tornou o ambiente propício à
reação extremada e surgiu então um populismo-autoritário bolsonarista, muito
pior do que o anterior. Mas o inverso também pode acontecer. Ou re-acontecer.
Uma
vez a esfera pública esteja vincada pela polarização entre dois populismos,
dificilmente a democracia conseguirá se recuperar. Alerta vermelho, portanto,
no nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia.
3 – A subversão da democracia por meios democráticos (ou o uso da democracia – notadamente das eleições – contra a própria democracia).
Esta
é uma falha genética da democracia dos modernos. Na democracia representativa,
um dos critérios da legitimidade democrática (a eletividade) acabou se
sobrepondo aos outros cinco critérios (a liberdade, a publicidade ou
transparência, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a
institucionalidade). Os populistas então encontraram uma falha no arranjo
representativo (e resolveram explorá-la): descobriram que é possível usar as
eleições contra a democracia.
Para
falar a verdade, os oligarcas atenienses – membros da aristocracia fundiária
que se contrapunham à democracia, já haviam descoberto que é possível ganhar
votações (7).
O
fato é que a democracia virou, para todos os efeitos práticos, sinônimo de
regime eleitoral. Surgiram até visões teóricas minimalistas da democracia como
troca (eleitoral) de governo sem derramamento de sangue. Se essa é a visão de
democracia então pode-se fazer qualquer coisa para desconstituí-la, desde que
se mantenha o processo eleitoral.
Ocorre
que os regimes não-eleitorais, na atualidade, são muito poucos e estão em
extinção. Os adversários atuais da democracia, salvo um outro caso exótico
(como Myanmar), não querem acabar com a democracia para instaurar ditaduras de
manual como a Coréia do Norte ou Cuba. Os processos de desconstituição de
democracia avançam hoje para transformar democracias liberais em democracias
(apenas) eleitorais e para transformar democracias eleitorais em autocracias
eleitorais.
As
ditaduras clássicas ou autocracias fechadas (não-eleitorais), até muito
recentemente, estavam presentes em apenas 27 países. Pela classificação do V-Dem (Varieties of Democracy da
Universidade de Gotemburgo), em dados de 2017 (que não se alteraram
significativamente), tínhamos apenas 39 democracias liberais, 55 democracias
eleitorais e 56 autocracias eleitorais (que tendem, estas últimas, a crescer).
Quer
dizer, a tendência aponta para o surgimento de regimes autoritários
(autocracias) com a manutenção – não mais com a abolição – do processo
eleitoral. Para lá caminharam Rússia e Turquia. Para lá caminham Hungria e
Polônia. E para lá se tentou levar os Estados Unidos e ainda se tenta levar o
Brasil.
O
maior perigo hoje para os regimes democráticos é o uso da democracia contra a
democracia. A subversão da democracia por meios legais, com a manutenção dos
processos eleitorais. Quando populistas são eleitos é bom acender o alerta
amarelo. Se eles são reeleitos, é caso para alerta vermelho no nosso sistema de
detecção precoce de desconsolidação da democracia.
4 – A replicação do discurso antipolítico (associado – mas nem sempre – ao combate à corrupção) e a ascensão de movimentos de opinião que pregam a realização de cruzadas de limpeza (étnica, ética, religiosa ou nacional).
Este
é outro indicador de depredação da política (democrática). É um ataque
insidioso, uma vez que ninguém pode, em sã consciência, ser a favor da
corrupção ou colocar-se contrário à luta para coibi-la.
Cruzadas
de limpeza nunca resultam em mais-democracia. Cruzadas de limpeza da política –
animadas por conclamações do tipo: “vamos caçar os corruptos” – nunca conferem
à política a tarefa de consertar os erros da própria política. Querem reparar
as mazelas da política por cima da política (e por fora da democracia) – muitas
vezes a partir de estamentos corporativos do Estado. São, assim, antipolíticas.
Em
geral as cruzadas de limpeza ética da política são tentativas de reeditar o
jacobinismo, o terra-arrasadismo e o restauracionismo robespierriano. Exploram
e instrumentalizam o moralismo da população, vendendo a ideia de que as pessoas
estão nas péssimas condições de vida em que estão porque alguém está desviando
e embolsando o dinheiro da saúde, da educação e de outros serviços sociais
prestados pelo Estado. Investem no punitivismo, apoiando-se no ressentimento
social, no desejo de vingança e na vontade de revanche (para “dar o troco”).
Quando parte do público que acompanha a obra de limpeza entra em transe
punitivista – vê uma cabeça rolar e só se satisfaz quando mais uma cabeça rola,
e mais uma, e mais uma… – então é sinal de que a espiral da vingança já está
instalada.
A
grande inspiração para essas cruzadas – o jacobinismo da revolução francesa –
não tinha qualquer compromisso com a democracia. Queria arrasar a terra para
restaurar o mundo a partir do zero, de modo autocrático. O famoso discurso
parlamentar de Robespierre, de 28 de dezembro de 1792, proferido na Convenção,
dominada pelos jacobinos, deixa claro que se trata de instaurar processos de
exceção, abrindo mão dos ritos jurídicos e do contraditório, apressando a
condenação e a execução de Luís XVI: “Fundadores da República, segundo
estes princípios, vocês podiam julgar, há muito tempo, na alma e na
consciência, o tirano do povo francês. Qual a razão de um novo adiamento? Vocês
gostariam de anexar novas provas contra o acusado? Vocês querem ouvir
testemunhas? Esta ideia ainda não entrou na cabeça de nenhum de nós” (9).
Um mês depois (em janeiro de 1793), Luís XVI seria executado na guilhotina.
Logo em seguida, ainda no verão de 1793, o jacobino Marat seria assassinado
pela aristocrata Marie-Anne Charlotte de Corday d’Armont. Robespierre então
voltou a discursar: “Que o gládio da lei caia, que seus assassinos, que
seus cúmplices, que todos os conspiradores pereçam. Que o sangue deles seja
derramado para satisfazer a alma do mártir da liberdade. Nós o exigimos em nome
da dignidade nacional ultrajada” (10). A partir daí instalou-se o
Terror, e as cabeças começaram a rolar em julgamentos sumários sem provas.
As
duas principais cruzadas contra a corrupção foram, nos últimos tempos, a operação
Mani Pulite, na Itália dos anos 90 e a Operação Lava Jato, no Brasil a
partir de 2014. Elas seguiram mais ou menos o seguinte roteiro: a)
Deslegitimação do sistema político (que de tão apodrecido já não pode mais
tomar medidas para sua própria restauração); b) Crítica à ineficiência ou
excesso de liberalismo do sistema judicial e das leis (que seriam ineficazes
para combater a corrupção); c) Prisões antes do julgamento e coação dos presos
para forçar delações; d) Vazamentos para a imprensa (para conquistar a simpatia
dos meios de comunicação e o seu apoio e formar uma opinião pública favorável
aos seus procedimentos heterodoxos); e) Criação de movimentos sociais em apoio
à cruzada de limpeza ética; e f) Constituição de uma força política com
características jacobinas e restauracionistas após a terra-arrasada (de
preferência com a cruzada lançando seus próprios candidatos nas próximas
eleições: o que de fato aconteceu na Itália e pode acontecer no Brasil) para
conquistar o poder de Estado (11).
Trata-se
de um engano e de uma maneira de enganar a opinião pública. Nem a situação de
penúria da população é consequência (a não ser em pequeníssima parte) do roubo
dos corruptos, nem a corrupção destrói a democracia. Não há um só caso na
história de um país democrático que tivesse virado uma ditadura em razão do
aumento do número de corruptos por metro quadrado.
Como
já foi dito anteriormente, a corrupção endêmica na política é metabolizável
pela democracia: embora a enfraqueçam ou diminuam a sua qualidade, não a
eliminam. Ao contrário, não raro, líderes honestos, verdadeiros Varões de
Plutarco, podem acabar instaurando regimes autoritários: o exemplo mais
eloquente são os autocratas espartanos que, aliás, financiaram, e operaram
mesmo, em 411 e 404 a.C., dois golpes contra a democracia ateniense, que
consideravam um regime de veadinhos e ladrões (sempre brandindo o espantalho do
“corrupto” Péricles, não por acaso o principal expoente da democracia).
Mas
as cruzadas de limpeza não ocorrem apenas contra a corrupção na política. Elas,
às vezes, têm caráter de classe. As revoluções russa e chinesa promoveram
verdadeiros massacres para limpar o país dos elementos capitalistas
remanescentes. Também podem ocorrer por motivos étnicos ou nacionais, como na
perseguição aos judeus na Alemanha nazista, na guerra da Bósnia e em vários
genocídios africanos. Nestes casos são bem piores, considerando-se suas
consequências anti-humanas. A origem de todas, entretanto, repousa na mesma
ideia de pureza ou de purificação que seria necessária para preparar uma
restauração do mundo. A matriz desse pensamento pode ser encontrada no
pensamento totalitário de Platão que, por sua vez, deita raízes no tribalismo
patriarcalista dório (Esparta, Creta e Siracusa) e nas urdiduras sacerdotais
que inauguraram o modo próprio de pensar do patriarcado (12).
Em
todo caso, quando aparece uma cruzada de limpeza, seja qual for seu pretexto,
pode-se acender o alerta amarelo no nosso sistema de detecção precoce de
desconsolidação da democracia. Coisa boa não virá na sequência.
5 – A proliferação de milícias digitais que falsificam a opinião pública por meio da manipulação das mídias sociais.
Como
já foi dito no artigo As falhas genéticas da democracia (13), a democracia não
tem proteção eficaz contra a falsificação da opinião pública a partir da
manipulação das mídias sociais, que desabilita qualquer razão comunicativa,
destruindo o espaço discursivo de interações de opiniões.
Esta
falha só foi percebida muito recentemente (na última década). Os populistas,
acionando suas facções, promovem ataques de enxame (swarm attacks,
contra os quais não se conhece defesa) para inviabilizar a emergência de uma
opinião pública, substituindo-a pela soma de opiniões privadas e, com isso,
estilhaçam a esfera pública em miríades de esferas privadas, destruindo o
processo de formação e de verificação da vontade política coletiva. Embora o
problema seja recente, notadamente depois que mídias sociais e programas de
mensagens apareceram e foram colonizados por facções populistas, já há vasta
literatura sobre o fenômeno, mas não solução. Hoje este é o problema mais
importante que a democracia enfrenta e que pode inviabilizá-la como modo de
regulação de conflitos.
De
qualquer modo, o assunto requer um tratamento mais aprofundado que extravasa o
escopo (e o tamanho) deste artigo. Um texto resumo da problemática é A abolição
da opinião pública pelos populismos, mas existem muitos outros (14).
Por
ora, é suficiente ver que se há esses ataques sistemáticos, promovidos por
alguns hubs (poucas centenas são suficientes) de uma rede
descentralizada e tendo como correia de transmissão milhares de pessoas-bot (que,
por sua vez, também usam bots), é sinal de que a democracia está indefesa.
Alerta vermelho em nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da
democracia.
6 – A violação das normas não-escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e lhe dão sustentação.
Em
geral, presta-se pouca atenção a esse sinal. Mas ele é um dos mais importantes.
Basicamente, a democracia não pode ser protegida apenas pelas leis (escritas).
Por isso todo legalismo é insuficientemente democrático. Não, não basta não
violar as leis para proteger a democracia. Sem um pacto social, mesmo que
tácito, de respeito aos bons costumes políticos (as normas não escritas), a
democracia fica indefesa quando se elege um tirano cujo programa é de
destruição da democracia.
Existem
regras não escritas que não devem ser violadas, nem mesmo em contendas
acirradas. Alguns exemplos: √ Aceitar a derrota; √ Parabenizar o vencedor; √
Não tripudiar sobre o derrotado; √ Não mentir; √ Não acusar as regras (que
foram aceitas antes da contenda) pela derrota; √ Não tentar mudar as regras do
jogo durante o jogo; √ Não alegar falsamente que perdeu porque houve fraude; √
Não deslegitimar o adversário; √ Não encorajar a polarização (“nós” contra
“eles”); √ Não transformar o adversário em inimigo (da pátria, do povo, da
nação, do Estado, de Deus); √ Não levantar falso testemunho perante a justiça
(nem praticar litigância de má-fé) contra um adversário; √ Tratar as
divergências por meio de um debate aberto e tolerante, valorizando a moderação
e a busca do consenso; √ Fazer oposição leal.
Se
estas regras não escritas começarem a ser violadas – no todo ou em grande
parte, como fez Trump nos Estados Unidos e Bolsonaro está repetindo no Brasil –
então é sinal de que a democracia está em risco. Alerta amarelo no nosso
sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia.
7 – Para resumir (ou sintetizar) tudo, a dilapidação do estoque (ou a interrupção do fluxo) de capital social.
A
melhor maneira de detectar precocemente o avanço do autoritarismo é monitorar o
fluxo de capital social. Se ocorrem instabilidades ou perturbações nesse fluxo
é sinal de que há uma corrente subterrânea alterando profundamente a “produção”
de capital social, antes que o seu estoque decaia perceptivelmente.
Infelizmente, não temos ainda como fazer isso. Não há um consenso sobre quais
seriam os indicadores de capital social e, muito menos, sobre os sinais que
indicariam variações nos fluxos interativos da convivência social (pois é deste
fluxo que se trata) quando o processo de autocratização ainda é subterrâneo
(15).
Alguma
coisa já se sabe, porém. Sabe-se, em primeiro lugar, que abaixo de certo nível
de capital social nenhuma democracia pode perdurar. O livro pioneiro de Robert
Putnam (1993) sobre as tradições cívicas na Itália moderna foi importante, além
de tudo, pelo título: Making democracy work.
Sabemos
também, em segundo lugar, que o capital social diz respeito aos padrões de
convivência social, quer dizer, à configuração da rede social existente e à
fenomenologia da interação que nela se manifesta. Quando algum processo de
autocratização está em curso, a rede social que suporta (a palavra não seria
bem essa, mas vá lá) a democracia começa a se esgarçar – e a fenomenologia da
interação que nela se manifesta se altera – antes que isso seja percebido como
mudanças nas instituições. Um indicador perceptível disso é que há um
decréscimo na inovação social: os inovadores desaparecem, os atalhos entre seus
clusters se desfazem e coisas novas
deixam de ocorrer no mesmo ritmo com que ocorriam. Outro indicador é o aumento
dos graus de belicosidade (ou de comportamento inamistoso) na base da sociedade
e no cotidiano dos cidadãos, com um clima de “guerra fria” instalando-se em
localidades e setores. Este comportamento adversarial atravessa inclusive as
famílias e outras formas primárias de sociabilidade (como os grupos de amigos e
colegas de trabalho e as vizinhanças residenciais, como condomínios, ruas e
bairros).
Em
terceiro lugar, sabemos que o capital social pode ser dilapidado – ou mantido
abaixo de certos níveis ótimos para a continuidade do processo de
democratização – pela manutenção de políticas públicas de oferta estatal
centralizada, assistencialistas, clientelistas. Ainda que isso não seja
decisivo para autocratizar a democracia, seu resultado é o enfreamento do
processo de democratização. Indiretamente a democracia perde credibilidade
quando não consegue mais responder tempestivamente aos anseios das pessoas,
parecendo algo atrasado, anacrônico e inútil (o que é sinal de desconexão e
desconsolidação democráticas).
Infelizmente,
porém, quando conseguimos detectar, mesmo indiretamente, sinais de avanço do
autoritarismo e de desconsolidação da democracia, é porque um processo de
autocratização já está em curso. Quando percebemos que a democracia poderá ser
envenenada é porque ela já foi envenenada. Ou seja, não temos ainda um bom
sistema de detecção precoce. Mas é necessário continuar trabalhando nisso.
*Augusto de Franco,escritor, palestrante e consultor, com várias dezenas de importantes obras
Notas
(1)
Cf. Anna Lührmann & Staffan I. Lindberg (2019), Uma
terceira onda de autocratização está aqui: o que há de novo sobre isso?,
Democratization, DOI: 10.1080 / 13510347.2019.1582029.
(2)
Um estudo empírico recente mostrou que das 47 vezes que um líder populista
assumiu o poder (via eleições) entre 1990 e 2014, em apenas oito casos (17%)
ele deixou o cargo depois de perder eleições livres e justas: em geral os
líderes populistas deixam o cargo em circunstâncias dramáticas. Além disso,
eles duram mais no cargo (duas vezes mais do que os líderes democraticamente
eleitos que não são populistas e são quase cinco vezes mais propensos do que os
não-populistas a sobreviver no cargo por mais de dez anos). Mas tem mais: no
geral, 23% dos populistas causam um retrocesso democrático significativo,
comparado com 6% dos líderes democraticamente eleitos não populistas. Em outras
palavras, os governos populistas são cerca de quatro vezes mais propensos do que os não-populistas
a prejudicar as instituições democráticas. E ainda: mais de 50% dos líderes
populistas alteram ou reescrevem as constituições de seus países, e muitas
dessas mudanças ampliam os limites dos mandatos ou enfraquecem os controles
sobre o poder executivo. Por último, os populistas atacam os direitos
individuais. Sob o domínio populista, a liberdade de imprensa cai em cerca de
7%, as liberdades civis em 8% e os direitos políticos em 13% – sem que nenhuma
dessas três coisas deixe de existir. Confira
Jordan Kyle e Yascha Mounk (2018), The Populist Harm to Democracy: An
Empirical Assessment, Tony Blair
Institut for Global Change, 26th December 2018.
(3)
Foa e Mounk (2017) escreveram que “o fenômeno da desconsolidação democrática é
conceitualmente distinto das avaliações sobre quão democraticamente um país
está sendo governado em um dado momento. Uma importante linha de pesquisa na
ciência política tenta medir o grau no qual um país permite eleições livres e
justas ou oferece a seus cidadãos direitos básicos, como liberdade de
expressão. Os dois trabalhos mais influentes nesse sentido são os índices
Polity e o da Freedom House, que são muito bons para se medir o estado atual da
democracia em determinado país. Mas a questão da consolidação ou
desconsolidação democrática não diz respeito ao grau de democracia, mas à sua
durabilidade”. Cf. Roberto Stefan
Foa e Yascha Mounk (2017), The signs of deconsolidation, Journal of Democracy, Volume 28, Número 1, Janeiro
de 2017 © 2017 National Endowment for Democracy and The Johns Hopkins.
(4)
Com efeito, como escrevi no artigo Não é possível salvar a democracia, “por
incrível que pareça o que mantém a democracia não é o que aparece e sim o que
não aparece, o que não é tão tangível (como, por exemplo, a produção e o
estoque de capital social). Como se sabe, abaixo de certo nível de capital
social a democracia não pode funcionar. O problema é que a democracia pode
continuar (aparentemente) funcionando enquanto o capital social está sendo
erodido. Este é, precisamente, o problema das nossas democracias sob ataque dos
populismos”. Cf. Franco, Augusto (2021). Não é possível
salvar a democracia. Dagobah (25/01/2021).
(5)
Em uma nota de rodapé, em O Feitiço de Platão, primeiro volume de A
Sociedade Aberta e seus Inimigos, ele escreveu (segue a nota inteira): “A
tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância. Se
estendermos a tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes; se não
estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques
dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da
tolerância. Nesta formulação, não quero implicar, por exemplo, que
devamos sempre suprimir a manifestação de filosofias intolerantes; enquanto
pudermos contrapor a elas a argumentação racional e mantê-las controladas pela
opinião pública, a supressão seria por certo pouquíssimo sábia. Mas deveríamos
proclamar o direito de suprimi-las, se necessário mesmo pela força, pois bem
pode suceder que não estejam preparadas para se opor a nós no terreno dos
argumentos racionais e sim que, ao contrário, comecem por denunciar qualquer
argumentação; assim, podem proibir a seus adeptos, por exemplo, que deem
ouvidos aos argumentos racionais por serem enganosos, ensinando-os a responder
aos argumentos por meio de punhos e pistolas. Deveremos então reclamar, em
nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes. Deveremos exigir
que todo movimento que pregue a intolerância fique à margem da lei e que se
considere criminosa qualquer incitação à intolerância e à perseguição, do mesmo
modo que no caso da incitação ao homicídio, ao sequestro de crianças ou à
revivescência do tráfego de escravos”. Popper, Karl (1945). A Sociedade Aberta e seus Inimigos, Vol.
1. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.
(6)
As perguntas seguintes, sugeridas pelo caso brasileiro atual, também podem
valer, mutatis mutandis, para outros países e regimes – conquanto
se apliquem melhor a regimes democráticos parasitados por forças
populistas-autoritárias. 1 – Existem e são significativas, por parte do
governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de demonizar os
meios de comunicação não-alinhados ao governo, acusando-os de divulgarem fake news ou de serem “os inimigos” e
estarem traindo a pátria? 2 – Há, por parte do candidato, do governante ou das
forças políticas que o apoiam, tentativas de priorizar ou hierarquizar os
sujeitos dos direitos humanos, como, por exemplo, as que afirmam que os
direitos humanos devem ser destinados principalmente aos “humanos direitos” em
detrimento dos “humanos tortos” ou dos “bandidos”? O candidato, o governante ou
a forças políticas que o apoiam, difundem preconceitos contra os direitos
humanos (por exemplo, os de que “bandido bom é bandido morto”)? 3 – Há
tentativas de estabelecer uma associação automática – mesmo que feita somente
através de discursos das forças políticas que apoiam um candidato ou governante
– entre crime, corrupção e adesão a alguma ideologia considerada exótica? 4 – O
candidato, ou governante ou as forças políticas que o apoiam, defendem que o combate
às visões ideológicas julgadas perversas (por uma ideologia particular, tal
como esposada pelo candidato ou pelo governo) será o mesmo (ou da mesma
natureza) que o combate aos crimes? 5 – Há, por parte do candidato, do
governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de instalar uma
guerra cultural (entre crenças, valores, costumes, cuja adesão cabe à decisão
privada dos cidadãos)? 6 – O governante ou as forças políticas que o apoiam,
qualificam como terroristas grupos sociais e forças políticas que se opõem ao
governo? 7 – Há, por parte do candidato, do governo ou das forças políticas que
o apoiam, manifestações de algum tipo de xenofobia e de fundamentalismo
nacionalista (mesmo que disfarçado de patriotismo)? 8 – Há, por parte do
candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, a defesa de
algum tipo de controle estatal da expressão artística, mesmo a pretexto de
combater a zoofilia, a pedofilia, a sexualização precoce ou a indução ao
gayzismo (que afetaria crianças e jovens)? E se não há, o candidato, o
governante ou as forças políticas que o apoiam, emitem declarações ou organizam
ações de propaganda a favor desse tipo de controle? 9 – O candidato, o
governante ou as forças políticas que o apoiam, defendem algum tipo de intervenção
estatal no ensino escolar a pretexto de coibir a doutrinação com alguma
ideologia considerada exótica – ou com alguma ideologia com a qual não se
identificam – em sala de aula? 10 – O candidato, o governante ou as forças
políticas que o apoiam, estimulam a militarização da educação com a adoção de
algum tipo de “religião patriótica”, que instaure um culto aos heróis da
pátria? 11 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas
que o apoiam, tentativas de reescrever a história (e, sobretudo, de ensinar
tais falsificações históricas nas escolas ou em cursos paralelos de deformação
política), enaltecendo regimes autocráticos do passado ou promovendo antigos
violadores de direitos humanos (por exemplo, conhecidos torturadores) como heróis
da pátria? 12 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças
políticas que o apoiam, alegações de que não faz sentido, em uma sociedade
tradicionalmente cristã (ou hindu, ou islâmica, ou judaica), que o Estado seja
laico? 13 – O candidato ou o governante se apresenta – e assim é visto pelas
forças políticas que o apoiam – como escolhido ou guiado por deus para cumprir
uma missão redentora? Apresenta-se como defensor da civilização contra algum
inimigo universal que quer destruir os seus valores e instituições – a família,
a religião, a pátria ou a nação (conferindo-lhe o status de
entidade acima de tudo e colocando acima de todos um deus capaz de intervir na
história ou na política) contra a qual haveria uma conspiração?
(7)
Se a reforma de Clístenes, em 509 a.C., em vez de instaurar uma centena
de poleis (comunidades políticas, instaladas nos demoi),
tivesse introduzido a eleição geral de governantes pelo voto majoritário de
todos os habitantes de Atenas, jamais teríamos ouvido falar a palavra democracia.
Clístenes é comumente considerado o inventor da democracia. Mas a democracia
não é invenção de ninguém. Ele não tinha a menor noção das consequências da sua
reforma que substituiu o genos (os clusters das grandes
famílias da aristocracia fundiária) pelo demoi (os cerca de
cem distritos onde se formaram poleis, comunidades políticas).
Aliás, a reforma de Clístenes só vigorou mesmo cerca de meio século depois. Os
oligarcas de Atenas continuaram dominando as assembleias e elegendo seus
representantes. Somente com a reforma do Areópago, proposta por Efialtes
(antecessor de Péricles) em 461 a.C., alterou-se a composição de forças
políticas na condução dos assuntos da cidade. Mas, subterraneamente, um
movimento democratizante estava em curso a partir de 509 a.C. Ninguém sabe ao
certo como foi introduzido o sorteio para a escolha dos membros do Areópago.
Mas o sorteio foi decisivo para impedir que os oligarcas – mais organizados do
que os simpatizantes da democracia (que nem sabiam o que era ou seria a democracia)
– continuassem controlando os processos eleitorais. Sim, os oligarcas usavam as
eleições contra a democracia. Parece óbvio. Quem está organizado para vencer
eleições tem mais condições de vencer eleições. Pode-se dizer que, nos
primeiros cinquenta anos, as eleições para o arcontado em Atenas foram usadas
contra a democracia. Explica-se. As eleições sempre podem ser usadas como
variantes de uma guerra (a “política como continuação da guerra por outros
meios”). E a guerra é a autocracia.
(8) Cf. Regimes of
the world (ROW): Opening new avenues for the comparative study of political
regimes, por Anna Lührmann V-Dem Institute, Department of Political Science,
University of Gothenburg, Sweden | Marcus Tannenberg V-Dem Institute,
Department of Political Science, University of Gothenburg, Sweden | Staffan I.
Lindberg V-Dem Institute, Department of Political Science, University of
Gothenburg, Sweden, 19/03/2018 in Politics and Governance (ISSN: 2183–2463),
2018, Volume 6, Issue 1, Pages 60–77 | DOI:
10.17645/pag.v6i1.1214.
(9)
O trecho inteiro de Robespierre é o seguinte. “Fundadores da República,
segundo estes princípios, vocês podiam julgar, há muito tempo, na alma e na
consciência, o tirano do povo francês. Qual a razão de um novo adiamento? Vocês
gostariam de anexar novas provas contra o acusado? Vocês querem ouvir
testemunhas? Esta ideia ainda não entrou na cabeça de nenhum de nós. Vocês
duvidariam daquilo que a nação acredita fortemente. Vocês seriam estrangeiros à
nossa revolução e, em vez de punir o tirano, estariam punindo a própria nação…
Cidadãos, trair a causa do povo e nossa própria consciência, abandonar a pátria
a todas as desordens que a lentidão desse processo deve excitar, eis o único
perigo que devemos temer. Está na hora de ultrapassarmos o obstáculo fatal que
nos prende há tanto tempo no início de nossa carreira. Assim, sem dúvida,
marcharemos juntos para o objetivo comum da felicidade pública. Assim, as
paixões odiosas, que brandam muito frequentemente neste santuário da liberdade,
darão lugar ao amor pelo bem público, à santa emulação dos amigos da pátria.
Todos os projetos dos inimigos da ordem pública serão vexados”. Maximilien
de Robespierre: discurso de 28 de dezembro de 1792, proferido na Convenção. Cf.
Gumbrecht, Hans Ulrich. As funções da
retórica parlamentar na Revolução Francesa – Estudos preliminares para uma pragmática
histórica do texto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
(10)
Idem.
(11)
Cf. Franco, Augusto (2020). O texto de Moro sobre a Mani Pulite com alguns
comentários. Dagobah (29/10/2020): http://dagobah.com.br/o-texto-de-moro-sobre-a-mani-pulite-com-alguns-comentarios/
(12)
Isso já foi mostrado no artigo de Franco, Augusto (2019): Fundamentos
filosóficos das teorias da corrupção. Dagobah (28/04/2019): http://dagobah.com.br/fundamentos-filosoficos-das-teorias-da-corrupcao/
(13)
Franco, Augusto (2020). As quatro falhas genéticas da democracia. Dagobah
(09/11/2020). http://dagobah.com.br/as-quatro-falhas-geneticas-da-democracia/
(14)
Franco, Augusto (2020). A abolição da opinião pública pelos populismos. Dagobah
(02/03/2020) http://dagobah.com.br/a-abolicao-da-opiniao-publica-pelos-populismos/.
Pode-se ler também os numerosos artigos encontrados na seguinte busca: http://dagobah.com.br/?s=midias+sociais
(15) O conceito de capital social, com o sentido que hoje lhe atribuímos, foi cunhado por Jane Jacobs (1961) em Morte e vida de grandes cidades. Em artigo de 2001 O conceito de capital social em Jane Jacobs já expus as razões dessa atribuição de autoria. As raízes da ideia devem ser buscadas, entretanto, em Alexis de Tocqueville (1835-1840) no seu A democracia na América. Mostrei, também em 2001, porque se trata de um conceito político no artigo O conceito de governo civil em Alexis de Tocqueville. Todavia, o conceito de capital social foi usado e ficou mais conhecido como uma noção metafórica, formulada em linguagem utilizada em teorias do desenvolvimento, para fazer referência a uma variável sistêmica que não é facilmente medida (ou sequer percebida) nas equações que tentam relacionar os diversos tipos de “capitais” tomados como fatores do desenvolvimento: os propriamente econômicos, como a renda e a riqueza (os capitais stricto sensu: capital financeiro e capital físico ou empresarial) e os demais “capitais” (lato sensu) tomados como externalidades e que se referem aos fatores humanos, ambientais e sociais (como o capital humano, o chamado capital natural e, finalmente, o capital social – que seria a tal variável sistêmica, que tem a ver com os índices de confiança e cooperação presentes em uma sociedade). No entanto, esse tipo de abordagem, que se tornou corrente quando o assunto passou a ser considerado no âmbito das teorias do desenvolvimento (ainda sob forte viés economicista e produtivista) a partir do célebre artigo de James Coleman (1988), Social Capital in the Creation of Human Capital – e em seguida no seu tratado Foundations of Social Theory (1990) – está defasado em relação às recentes descobertas da fenomenologia da interação (sobretudo nos Highly Connected Worlds em que já vivemos no dealbar do terceiro milênio).
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