quinta-feira, 4 de março de 2021

Jorge Zaverucha* - A grande vítima

- O Globo

A grande vítima do imbróglio envolvendo o deputado Daniel Silveira foi a já cambaleante democracia brasileira. Tudo começou com a publicação da entrevista concedida pelo general Villas Bôas ao pesquisador Celso Castro. Nela é reproduzida a ameaça castrense ao STF para que não concedesse habeas corpus a Lula. O general ainda revelou que o tuíte foi discutido com o Alto-Comando do Exército. Ou seja, foi ação institucional. Participaram da elaboração alguns generais que hoje são ministros do governo Bolsonaro. Esse tipo de comportamento não se coaduna com o jogo democrático. Na época, apenas o ministro Celso de Mello reagiu. O ministro Fachin acordou de um sono de três anos e soltou uma nota contra as declarações do general. O ex-comandante do Exército debochou da nota.

O deputado Daniel Silveira decidiu tomar as dores do general e fez um repugnante vídeo, tanto pelo conteúdo golpista como pelos termos chulos e insultuosos contra membros do STF. Quebrou o decoro parlamentar e deveria ser julgado pela própria Câmara de Deputados. Ante o excesso parlamentar, o STF reagiu com outro excesso. Dois erros não fazem um acerto. Passou por cima do artigo 53 da Constituição e baseou-se na Lei de Segurança Nacional (LSN) para deliberar que houve um crime inafiançável. Nas palavras do deputado Marcel van Hattem: “Desta vez, o AI-5 vem do Poder Judiciário, vem do Supremo Tribunal Federal”. O fim justificou o meio. Lembro que a LSN foi criada pelo regime militar para perseguir seus oponentes políticos. O STF, que questionou os termos autoritários do mencionado parlamentar, valeu-se de um “entulho autoritário” que já deveria ter sido abolido. Tal como no Chile, na Argentina e no Uruguai.

Além disso, o STF praticou um contorcionismo jurídico deveras criativo para dizer que houve flagrante perpétuo. E decretou a prisão de oficio do deputado. Quando poderia ter representado à PGR para que tomasse as devidas providências. Portou-se como vítima e juiz do deputado. A PGR, por sinal, também fez uso da LSN para abrir inquérito contra o parlamentar. O placar no plenário da Corte Magna foi de 11 a 0. Entre os votantes, estava um ministro que, juntamente com um ex-presidente do Congresso, rasgou a Constituição para permitir que os direitos políticos da ex-presidente Dilma Rousseff fossem mantidos. O Senado nada fez para investigar este ministro.

Quando os deputados Damous e Requião sugeriram o fechamento do STF, os ministros fizeram ouvidos de mercador. A Câmara deveria ter a altivez de dispensar a interferência indevida de um outro poder em tema vital para a democracia. O STF quis mostrar força, mas exagerou no remédio, e ele virou veneno. Contaminou, indelevelmente, o jogo democrático. Com consequências futuras imprevisíveis, aumentando a insegurança jurídica no país por incentivar a anarquia institucional.

*Doutor em Ciência Política pela Universidade de Chicago e professor titular da UFPE

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