A
pandemia acelerou a já existente perda de autoridade do governo
Já
é lugar comum afirmar que o maior efeito da pandemia ao redor do mundo foi o de
acelerar ou agravar problemas já existentes. No caso do Brasil, ela escancarou
a falta de governo, além da desigualdade, miséria e ignorância, mazelas bem
antigas. No Brasil, a pandemia não “inventou” a má gestão pública nem o
desperdício de recursos. Ela ensinou que não há governo efetivo sem capacidade
de liderança política – outro problema do qual padecemos há tempos.
A
extraordinária incapacidade de Jair Bolsonaro para liderar e
coordenar criou com a pandemia um fenômeno novo na política
brasileira. É o cada um por si dos entes da Federação, e a instituição da dupla
de primeiros ministros nas figuras dos presidentes das casas legislativas. Em
linguagem militar, talvez ainda familiar a alguns ocupantes do Planalto, o
Estado Maior da crise não está como deveria estar na Casa Civil e no Ministério da Saúde (instâncias
do Executivo sob o comando nominal de generais) mas, na prática, foi para
o Congresso.
É nas casas legislativas que se decide agora o essencial para se tentar minorar os devastadores efeitos da maior tragédia da nossa história recente. É para lá que correm prefeitos e governadores na linha de frente do combate ao vírus. É lá que se negocia a aprovação de um mínimo de ajuda que impeça pessoas de morrer de fome. É lá que existe pressa e urgência para flexibilizar e acelerar a aquisição de imunizantes por quem quer que seja, incluindo empresas privadas. O arcabouço jurídico foi criado pelo STF, que transformou um de seus integrantes em virtual ministro da Saúde.
Um
resultado evidente dessa situação cujo alcance Bolsonaro não parece ter
percebido ainda é a profunda desmoralização política associada a um governo
visto como incompetente. Presidentes anteriores já foram desmoralizados por
eventos abrangentes em parte piorados por eles mesmos, como ocorreu com Sarney/Collor (hiperinflação) e Dilma (recessão). No caso de
Bolsonaro, além do estelionato econômico eleitoral do qual Paulo Guedes está se tornando
cúmplice, é a pandemia que acelera perigosa desmoralização.
A
confluência de crise econômica, tragédia de saúde pública e incapacidade de
liderança política (com seus graves riscos de populismo fiscal) compõe a
“tempestade perfeita” mencionada por agências de classificação de risco ao
publicarem no começo da semana cenários a curto prazo para o Brasil. O
agravamento da crise de saúde pública faria as demandas sociais crescerem em
ritmo mais rápido do que o “tempo político” necessário para a aprovação de
medidas de contrapartida à continuidade da ajuda emergencial, trazendo ainda
mais insegurança aos agentes na economia.
Bolsonaro
está no modo de sempre, dedicado a buscar culpados e livrar-se de
responsabilidades. A aparente tranquilidade com que enfrenta um quadro que se
agrava nitidamente vem de dois fatores proporcionados por sua estreita visão da
realidade. O primeiro é a percepção de garantia política dada pela dupla de
primeiros ministros – que, na verdade, mal controlam as próprias casas, como ficou
demonstrado no episódio da PEC da imunidade ou impunidade dos
parlamentares.
O
segundo é o aparente conforto trazido pelo aparelhamento das instâncias
superiores do Judiciário – nomeações “casadas” para o STJ e STF, em estreito
entendimento com os movimentos políticos evangélicos. Percalços jurídicos
policiais de curto prazo em relação à família do presidente estão afastados, ao
mesmo tempo em que não existe nada remotamente parecido à presença de uma Lava Jato para criar dificuldades
políticas agudas para o atual governo (como aconteceu com Dilma).
Desmoralização é um fenômeno político forte e de difícil reversão, que costuma nascer e se propagar primeiro nos vários componentes de elites (administração pública, setores empresariais e financeiros, profissionais liberais, elites culturais em sentido amplo). A perda de autoridade de Bolsonaro já se fazia sentir antes da pandemia, fato demonstrado pela maneira como o Legislativo e o STF encurtaram seu poder. A pandemia, como se diz, acelerou o que já existia.
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