quinta-feira, 4 de março de 2021

Poesia | Joaquim Cardozo - Recife Morto

Recife. Pontes e canais.

Alvarengas, açúcar, água rude, água negra.

Torres da tradição desvairadas, aflitas,

Apontam para o abismo negro-azul das estrelas.

Pátio do Paraíso. Praça de São Pedro.

Lages carcomidas, decrépitas calçadas.

Falam baixo na pedra as vozes da alma antiga.

Gotas de som sobre a cidade,

Gritos de metal

Que o silêncio da treva condensa em harmonia.

As horas caem dos relógios do Diário,

Da Faculdade de Direito e do Convento

De São Francisco:

Duas, três, quatro... a alvorada se anuncia.

Agora ao ouvir as horas que as torres apregoam

Vou navegando o mar de sombra das vielas

E o meu olhar penetra o reflexo, o prodígio,

A humilde proteção dos telhados sombrios,

O equilíbrio burguês dos postes e dos mastros,

A ironia curiosa das sacadas.

As janelas das velhas casas negras,

Bocas abertas desdentadas, dizem versos

Para a mudez imbecil dos espaços imóveis.

Vagam fantasmas pelas velhas ruas

Ao passo que em falsete a voz fina do vento

Faz rir os cartazes.

Asas imponderáveis, úmidos véus enormes.

Figuras amplas dilatadas no tempo,

Vultos brancos de aparições estranhas.

Vindos do mar, do céu... sonhos!... evocações!...

A invasão! Caravelas no horizonte!

Holandeses! Vryburg!

Motins. Procissões. Ruído de soldados em marcha.

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Os andaimes parecem patíbulos erguidos.

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Vão pela noite na alva do suplício

Os mártires

Dos grandes sonhos lapidados.

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Duendes!

Manhã vindoura. No ar prenúncio dos sinos.

Recife,

Ao clamor desta hora noturna e mágica,

Vejo-te morto, mutilado, grande,

Pregado à cruz das novas avenidas.

E as mãos longas e verdes

Da madrugada

Te acariciam. (CARDOZO, 2007, p. 161-163)

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