O
abismo entre o que somos e o que gostaríamos de ser
A
vida anda difícil para qualquer pessoa que tenha pelo menos um mindinho fincado
na realidade. Presos numa reprise macabra de 2020, tudo parece uma consequência
de dois problemas: a nossa dessensibilização e a aversão à realidade.
É
preciso algum grau de insensibilidade para sobreviver num país como o nosso.
Alguns passos nas calçadas das grandes cidades e, mantida a nossa humanidade no
seu mais alto grau, choraríamos de desespero. Nossos olhos se acostumaram ao
absurdo, mas, em algum momento, nós perdemos o pé: 1.840
mortos num só dia, e uma parte de nós segue fingindo que o problema não
é o vírus, mas as medidas de contenção.
O Congresso que se organiza rapidamente para defender os próprios interesses segue omisso nas providências em relação ao maior dos negacionistas: o presidente. Não faço parte do grupo que condena sem possibilidade de perdão quem ajudou a eleger Bolsonaro. Foi preciso fechar os olhos para suas declarações de admiração por torturadores, seu desejo pelo fuzilamento de adversários políticos, seu projeto de Brasil de "matar uns 30 mil", mas, se naquela época era possível dizer que estávamos no campo da retórica, agora temos vítimas reais: mil setecentas e vinte e seis. Um dia.
Vargas
Llosa escreveu que a fantasia humana é um dom demoníaco. Deve ser. Temos vivido
num estado de delírio coletivo, e não se chega a esse estado de uma hora para a
outra. Foram 500 anos construindo a nossa capacidade de conviver com o horror,
e a nossa história nos convenceu de que, na ausência de um pensamento
republicano, a alternativa era o salve-se quem puder. E, assim, egocêntricos e
individualistas, aprofundamos o nosso abismo traumatizados pelo descaso, pela
violência e pelo abandono.
Em vez de negar a realidade com a fantasia, poderíamos usar a fantasia para construir a realidade. O brasileiro se acostumou a pensar sobre si como um povo alegre, sensível, solidário, gentil. É hora de nos transformarmos nesse desejo.
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