Vacinas,
como smartphones, nascem de cadeias produtivas globais
Boris
Johnson envolveu-se num escândalo menor ao explicar, a camaradas do Partido
Conservador, que as vacinas surgiram “por causa do capitalismo, por causa da
ganância”.
O
primeiro-ministro britânico tem alguma razão: na origem das vacinas predominantes
encontra-se a mistura capitalista da ganância (das empresas farmacêuticas) com
subsídios estatais de risco (dos EUA e do Reino Unido). Mas ele esqueceu de
dizer que o nacionalismo
ameaça travar a imunização global, prolongando a pandemia.
Trump invocou a Lei de Produção de Defesa, promulgada na Guerra da Coreia (1950-53), para sujeitar exportações de vacinas, insumos e suprimentos para imunização a autorização federal. O Reino Unido copiou os EUA de modo menos deselegante, firmando contratos de prioridade de entrega com a AstraZeneca, cuja vacina nasceu de uma torrente de subsídios públicos.
Sob
escassez de imunizantes, a União
Europeia acaba de impor controles de exportação de vacinas e insumos. A
Índia, pátria do Instituto
Serum, maior fabricante mundial de imunizantes, também limita
exportações, como
sabe o Brasil por experiência própria.
Só
os EUA, entre as nações populosas, nadam nas águas mornas do excesso de
vacinas. A oferta interna da Pfizer, da Moderna e da Johnson & Johnson é
tão grande que o país desistiu de usar o produto da AstraZeneca. Oficialmente,
são 7 milhões de doses estocadas. De fato, como apurou o New York Times,
existem várias dezenas de milhões de doses prontas em duas fábricas, em Ohio e Maryland.
Canadá,
México, Brasil, União Europeia e a Covax, da OMS, disputam a chance de adquirir
o tesouro desprezado. Joe Biden (“vacinas americanas são, primeiro, para braços
americanos”) reflete sobre o tema.
EUA
e Reino Unido subsidiaram a fundo perdido a pesquisa e desenvolvimento de
imunizantes pois calcularam corretamente os custos mirabolantes dos lockdowns
nacionais.
A
União Europeia preferiu ir à feira, como quem compra maçãs. Firmou contratos
com diversas farmacêuticas que cobrem várias vezes sua população. No papel,
está segura; na prática, as vacinas chegam em ritmo quase brasileiro, enquanto
sucessivos lockdowns aquecem um caldeirão de tensões sociais. Daí, a sedução do
nacionalismo vacinal.
Agora,
a Comissão
Europeia descobriu 29 milhões de doses da AstraZeneca armazenadas nas
instalações de uma subcontratada nas cercanias de Roma e parcialmente destinado
a terceiros países. Capturado pelos carabinieri, o lote foi transformado em
arma no cabo de guerra entre a União Europeia e a farmacêutica.
“A
Europa não deve ser um idiota útil na batalha contra o vírus”, reagiu um alto
assessor do francês Macron, clamando pelo salto rumo ao controle de
exportações. Na era do neonacionalismo, a idiotia não tem fim.
Vacinas,
como smartphones, nascem de cadeias produtivas globais. O processo produtivo
depende da oferta de equipamentos (biorreatores, bombas, unidades de
filtração), insumos bioquímicos (material celular, lipídios, substâncias
farmacêuticas) e suprimentos de envase (máquinas, frascos, rolhas,
congeladores).
Tudo
isso, assim como seringas e agulhas para vacinação, é fabricado em plantas
espalhadas por inúmeros países. As farmacêuticas não arriscarão multiplicar
suas capacidades produtivas num cenário em que os intercâmbios internacionais
tornaram-se reféns do nacionalismo vacinal.
Os EUA flutuam num lago de vacinas graças à Operação Warp Speed, o colossal programa de subsídios que, desde maio de 2020, articulou cadeias produtivas completas no território americano. Nenhuma outra nação, com a possível exceção da China, é capaz de replicar o esforço produtivo dos EUA. A escalada da oferta mundial de imunizantes exige coordenação multilateral, comércio livre e segurança contratual. O rótulo de idiotas –mas inúteis– aplica-se aos governos de todas as grandes potências.
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