sábado, 27 de março de 2021

Acânio Seleme - Tudo tem limite. Tudo!

- O Globo

Em dois meses na presidência da Câmara, Lira falou mais alto, mais duro e mais grosso do que Rodrigo Maia em dois anos

Arthur Lira não é nenhum santo. Ao contrário, o presidente da Câmara cometeu tantos pecados que dificilmente sairia do confessionário sem uma dúzia de rosários para rezar como penitência. Por isso mesmo, por todas as limitações do principal líder do Centrão, o sabão que passou no presidente Jair Bolsonaro tem mais valor. Em dois meses na função, Lira falou mais alto, mais duro e mais grosso do que Rodrigo Maia em dois anos. Você pode dizer que o Centrão é assim mesmo, morde forte para depois assoprar e levar alguma coisa em troca. É verdade. Mas o sinal amarelo de Lira tem outro efeito. O dissuasório.

Não se trata de Ernesto Araújo, uma porcaria que não vale nada. O que o presidente da Câmara divisou foi o seu futuro e o de seu grupo político. Dar apoio a um presidente fraco é a especialidade do Centrão. É disso que ele se alimenta e se fortalece. Aliar-se a um estorvo em franca decadência não faz parte do seu receituário. Foi assim com Dilma Rousseff, de cujo governo desembarcou tão logo percebeu que aquela canoa não chegaria até a outra margem. Será assim com Bolsonaro. Não é possível imaginar Arthur Lira, Ciro Nogueira e Aguinaldo Ribeiro ao lado de Jair Bolsonaro na proa de um navio afundando. Este é o cenário que se avizinha, e dele estes senhores farão tudo para se afastar.

Bolsonaro mandou dizer que não há nenhum problema entre os dois, e assessores palacianos afirmaram que o deputado segue sendo “fiel ao presidente”. Bobagem, os termos do texto não deixam dúvida do seu destinatário. Embora tenha deixado saídas honrosas, citando todos os Poderes e suas instâncias, o discurso mirou especialmente o Planalto ao mencionar “erros primários, erros desnecessários, erros inúteis”. E é para o seu principal ocupante que estão reservados os “remédios amargos e fatais” mencionados por Lira.

O discurso pode ser lido como uma ameaça explícita ao presidente. Todos os termos que constroem este sentido estão lá. “A política é cruel e busca culpados (...) é um terreno fértil para linchamentos”, disse o deputado. No caso, o culpado todos sabemos quem é, não precisa vasculhar muito para descobrir em quem pode ser aplicado o remédio fatal. Se deixou algumas portas de saída aqui e ali, o discurso aperta Bolsonaro ao pedir “autocrítica, instinto de sobrevivência, sabedoria, inteligência emocional e capacidade política” para curar as anomalias geradas pelo ineficiente combate à pandemia. Deste pacote, o capitão dispõe apenas de um débil instinto de sobrevivência.

“Tudo tem limite”, disse Lira, que em seguida exclamou: “Tudo!”. Poderia ter dito “Chega!”, o sentido seria o mesmo. Acabou o espaço no Congresso para a política genocida de Bolsonaro. O sinal amarelo foi claro, o presidente precisa agora agir. O papel dissuasório do discurso está dado, cabe ao Planalto tomar medidas no sentido sugerido. Não basta demitir o olavista Ernesto Araújo ou o moleque supremacista que afrontou o Senado, mas ambos têm que deixar o governo. Se não deixarem, Arthur Lira será mais do que desautorizado, sairá desmoralizado do episódio. A mesma desmoralização sofrerá Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, em cujas costas o moleque racista fez o gesto que alguns entenderam apenas como obsceno.

É preciso redirecionar o governo. Trocar ministros esdrúxulos, como o citado Araújo e também Ricardo Salles. Sim, o discurso de Lira também o alcançou ao afirmar que “esforços no meio ambiente precisam ser reconhecidos”. O problema é que para reconhecê-los é preciso primeiro produzi-los, o que não se fará com Salles. O governo precisa mudar. E já. O Centrão tem tempo, sabe comer pelas beiradas, já provou isso ao longo dos anos. Mas para isso, precisa sobreviver. E ele não sobreviverá se continuar abraçado ao negacionismo burro de Bolsonaro.

Desarranjo?

Há quem diga que as decisões do Supremo sobre Lula desarranjaram o jogo político. Que alvoroçaram e desalinharam o cenário desenhado para 2022. Prefiro um outro termo. Mesmo correndo o risco de ser chamado injustamente de petista, vejo os dois episódios como uma rearrumação do tabuleiro. Vão dizer que estou defendendo um político que foi preso por corrupção e, que embora a sentença tenha sido exarada por um juiz considerado suspeito pelo STF, durante o seu governo deixou aliados meterem a mão na cumbuca pública. Ainda assim, contando todos os seus pecados, não dá para compará-lo ao nefasto.

Alucinado

É alucinante o ritmo com que o governo cria fatos negativos e dispara torpedos contra o próprio pé. As encrencas se empilham e as mais novas acabam sufocando as antigas. Tanto que o uso indiscriminado da Lei de Segurança Nacional já vai saindo da pauta. Mas ela é recorrente. Logo voltará para tentar calar outro crítico do tenente que virou capitão quando foi aposentado compulsoriamente pelo Exército por indisciplina. O STF, quase 40 anos depois, vai derrubar trechos da lei por incompatibilidades com a Constituição. Melhor tarde do que nunca.

O bode

Nenhuma dúvida, Ernesto Araújo é o pior ministro do governo desde a saída de Abraham Weintraub. Mas nem por isso os problemas do país se encerram com a sua demissão. Ele é o bode da sala. Vai ser um alívio retirá-lo do ambiente político, ceifar seu poder executivo em área tão sensível quanto a das relações externas. Demitir ministro ruim é importante, e se Bolsonaro seguir por este caminho sobrarão apenas dois ou três na Esplanada. Mas isso não basta. Apenas com o corte da cabeça apodrecida da cobra o país voltará a caminhar unicamente com os seus sobressaltos naturais.

Malcriado

O menino olavista, supremacista e malcriado era dono de um cursinho preparatório para candidatos ao Instituto Rio Branco antes de virar assessor internacional de Bolsonaro. Além de inexperiente, é um desqualificado e apenas por isso deve ser varrido do serviço público.

Deslocado

José Maria da Silva Paranhos Júnior (Barão de Rio Branco), Otávio Mangabeira, Afrânio de Melo Franco, Osvaldo Aranha, Horácio Lafer, Afonso Arinos, San Tiago Dantas, Evandro Lins e Silva, Magalhães Pinto, Azeredo da Silveira, Raimundo Saraiva Guerreiro, Olavo Setúbal, Celso Lafer, Francisco Rezek, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Felipe Lampreia, Celso Amorim, José Serra e Ernesto Araújo. Que tal esta galeria? Tem alguém deslocado aí?

Protocolos

É correto dar uma chance ao Marcelo Queiroga. O novo ministro produziu uma das melhores frases da pandemia, e que pode ser lida de várias maneiras. “É hora de produzir luz, não calor”, disse ele. Boa vontade o ministro tem. Conhecimento também. Seus primeiros passos foram símbolos importantes, como a visita a hospitais públicos e faculdades de Medicina e Farmácia de São Paulo. Ele aprendeu a usar a máscara. Antes era frouxa e ficava o tempo todo escorregando do nariz. Agora são duas. Outra coisa, em época de epidemia não se abraça as pessoas, nem mesmo o doutor Kalil.

Funciona, sim

Bobagem dizer que não se deve decretar um lockdown porque não funcionaria, que ficaria apenas no papel, como afirmou o vice-presidente Hamilton Mourão. Vamos considerar que 10% desobedeçam a orientação. Ainda assim, 90% atenderiam a ordem e ficariam em casa. Ou 20% contra 80%, não importa, a maioria obedeceria o decreto. Veja o exemplo das praias do Rio. Você anda pela orla e encontra aqui e ali pessoas na areia, na água, sentadas numa canga. Mas são poucas, teimosas e negacionistas, que não representam o fracasso da restrição. Ao contrário, provam a sua eficiência. Lockdown + Vacinação = Solução.

Nosso Rio

Não se pode negar que o prefeito Eduardo Paes quer o melhor para o Rio. É verdade que ele demorou a se mexer contra a Covid, mas enfim agiu dura e corretamente. Atacá-lo por impor restrições no funcionamento da cidade é fazer o jogo do negacionismo e do bolsonarismo. Paes, que até chegou a se nomear “parceiro” de Bolsonaro no Rio, afinal acordou.

Jabuticaba

Não se trata de uma jabuticaba. Segundo o advogado Hélio Saboya Filho, cobrar direitos autorais de hotéis por execução de música em seus quartos ocorre em todo o mundo, não apenas por aqui. O STJ aceitou o argumento e decidiu que a cobrança é legal, encerrando longa batalha entre hoteleiros e autores musicais.

O leitor pergunta

Paulo Pereira, assinante do jornal, escreveu perguntando em que pé estão as investigações do derramamento de óleo no mar do Nordeste, de 2019. Já vamos para dois anos desde o desastre que enlameou praias de 11 estados, inclusive do Rio. A pergunta deve ser enviada para a Marinha, almirante Ilques Barbosa Júnior, já que o país não pode contar mesmo com Ricardo Salles, o ministro do Meio Ambiente, originário da mesma cepa de Araújo e Weintraub.

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