Crise
da pandemia e do desgoverno Bolsonaro atirou o País num poço do qual será
difícil sair
Toda
sociedade precisa de sistemas técnicos e administrativos. Quanto mais complexas
e diversificadas, maior a necessidade. Sociedades desiguais, como a brasileira,
dependem dramaticamente deles. O Estado, poder condensado, deveria funcionar
como coordenador dos sistemas, em nome da vida comunitária, das liberdades e da
justiça social. O próprio mercado é um vasto universo de sistemas. A vida
coletiva, a rigor, é inconcebível sem recursos sistêmicos.
Há
duas possibilidades de convivência entre os indivíduos (grupos, famílias,
empresas) e as estruturas sistêmicas. A primeira seria aquela em que as pessoas
acumulam recursos éticos e políticos para domesticar os sistemas e forçá-los a
trabalhar em seu benefício sem sobrecargas desnecessárias.
A segunda é a que tem prevalecido na vida moderna: os sistemas submetem os indivíduos, roubando-lhes espaços de autonomia e defesa. Com sua progressiva burocratização, os sistemas crescem, blindam-se com normas e procedimentos, erguem muros que os afastam dos indivíduos. Processa-se o que o filósofo alemão Jürgen Habermas chamou de “colonização da vida” pelos sistemas. Sua conclusão é que nos entregamos ao que não podemos dispensar. Um belo dia descobrimos que estamos enredados nas malhas das estruturas que nos prestam serviços.
Comunidades
com boas democracias e sociedades civis ativas conseguem maior sucesso na
contestação dos sistemas, modelando-os para que atendam às necessidades
coletivas. Munidos de capacidade de diálogo, elaboração discursiva e
interpelação política dos poderes, os cidadãos se organizam e abrem janelas que
“recolonizam” os sistemas.
Especialmente
quando são complexos, os sistemas tendem a fugir de comandos autoritários, que
se dedicam a desorganizá-los. São energizados pelas ideias de independência e
autossuficiência. Agarram-se às suas expertises e à dedicação abnegada, muitas
vezes heroica, de seus profissionais, que continuam a prestar serviços, salvar
vidas, cuidar e educar.
É
o caso, exemplar, do SUS e da rede de hospitais, centros de saúde e UPAs, do
Butantan e da Fiocruz, para ficar no terreno sanitário. Sem o esforço
descomunal que despendem para cumprir sua missão estaríamos em situação muito
mais dramática. São elos de uma cadeia que sofre para agir, mas não desiste, mesmo
tendo pela frente uma pandemia que bate ruidosamente à porta e faz o sistema
conviver com o colapso, assoberbado pela profusão de casos e carente de
recursos operacionais básicos.
Com
Bolsonaro o ataque aos sistemas atingiu o auge. Muitos foram sucateados,
perderam parte de sua potência positiva. O presidente não preside, age para
impedir que o governo governe. A inteligência desapareceu, rejeitada por uma
equipe ministerial pouco qualificada e desorientada pela ausência de um plano
concatenado de governo. Os sistemas foram atingidos no coração. Não só na
saúde. A corrosão atinge também a educação, a cultura, a ciência e a
tecnologia, o meio ambiente.
O
governo atual, em vez de atuar como vértice supremo dos sistemas, age
deliberadamente para desorganizá-los, recusa-se a coordenar suas peças e as
impede de funcionar. Forma-se assim uma nuvem tóxica, de rara perversidade, que
provoca caos sistêmico geral, impulsiona a disseminação do vírus e aumenta o
número de doentes e mortos. É um crime.
Hoje
olhamos para o SUS sufocado, o Ministério da Saúde cortado pela incompetência,
e vemos o tamanho do estrago. A cultura está em pandarecos, o sistema
educacional vive espremido entre a “guerra cultural”, a religiosidade postiça e
a falação sobre homeschooling.
O sistema de Justiça claudica, o sistema político funciona aos trancos,
mergulhado num mar de mediocridade.
A
crise provocada pela pandemia e pelo desgoverno Bolsonaro atirou o País num
poço, do qual será difícil sair.
Não
temos uma sociedade que “atue sobre si mesma de modo democrático”, como diz
Habermas. Não estamos, como cidadãos, conseguindo nos reunir num âmbito
coletivo que nos dê força para intervir. Falta-nos solidariedade cívica, sobra
fragmentação política, as “dissonâncias cognitivas” nos paralisam, o palavreado
tosco e agressivo de quem deveria prezar pela serenidade causa horror. Ficou
muito mais difícil um agir consciente sobre o mundo.
Ao
nos isolar e assustar, a pandemia explica muita coisa, mas não serve de
justificativa. O Estado, hoje, no Brasil não é uma comunidade política
organizada, assentada nos interesses comuns de seus integrantes. Faltam-nos
elites qualificadas e boas estruturas associativas. Está submetido aos
desmandos, à incompetência e à incúria perversa de um governo desqualificado,
que manipula e amplia a pandemia, em vez de combatê-la com firmeza e
inteligência. A demolição é abrangente: institucional, ética, política,
econômica, ambiental, existencial.
A
luta contra essa situação e uma resposta articulada ao caos que nos rouba a vida
serão as principais tarefas dos próximos anos. Quanto antes começarmos a
cumpri-las, melhor.
*Professor titular de teoria política da Unesp
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