sábado, 27 de março de 2021

Marco Aurélio Nogueira* - O caos que nos rouba a vida

- O Estado de S. Paulo

Crise da pandemia e do desgoverno Bolsonaro atirou o País num poço do qual será difícil sair

Toda sociedade precisa de sistemas técnicos e administrativos. Quanto mais complexas e diversificadas, maior a necessidade. Sociedades desiguais, como a brasileira, dependem dramaticamente deles. O Estado, poder condensado, deveria funcionar como coordenador dos sistemas, em nome da vida comunitária, das liberdades e da justiça social. O próprio mercado é um vasto universo de sistemas. A vida coletiva, a rigor, é inconcebível sem recursos sistêmicos.

Há duas possibilidades de convivência entre os indivíduos (grupos, famílias, empresas) e as estruturas sistêmicas. A primeira seria aquela em que as pessoas acumulam recursos éticos e políticos para domesticar os sistemas e forçá-los a trabalhar em seu benefício sem sobrecargas desnecessárias.

A segunda é a que tem prevalecido na vida moderna: os sistemas submetem os indivíduos, roubando-lhes espaços de autonomia e defesa. Com sua progressiva burocratização, os sistemas crescem, blindam-se com normas e procedimentos, erguem muros que os afastam dos indivíduos. Processa-se o que o filósofo alemão Jürgen Habermas chamou de “colonização da vida” pelos sistemas. Sua conclusão é que nos entregamos ao que não podemos dispensar. Um belo dia descobrimos que estamos enredados nas malhas das estruturas que nos prestam serviços.

Comunidades com boas democracias e sociedades civis ativas conseguem maior sucesso na contestação dos sistemas, modelando-os para que atendam às necessidades coletivas. Munidos de capacidade de diálogo, elaboração discursiva e interpelação política dos poderes, os cidadãos se organizam e abrem janelas que “recolonizam” os sistemas.

Especialmente quando são complexos, os sistemas tendem a fugir de comandos autoritários, que se dedicam a desorganizá-los. São energizados pelas ideias de independência e autossuficiência. Agarram-se às suas expertises e à dedicação abnegada, muitas vezes heroica, de seus profissionais, que continuam a prestar serviços, salvar vidas, cuidar e educar.

É o caso, exemplar, do SUS e da rede de hospitais, centros de saúde e UPAs, do Butantan e da Fiocruz, para ficar no terreno sanitário. Sem o esforço descomunal que despendem para cumprir sua missão estaríamos em situação muito mais dramática. São elos de uma cadeia que sofre para agir, mas não desiste, mesmo tendo pela frente uma pandemia que bate ruidosamente à porta e faz o sistema conviver com o colapso, assoberbado pela profusão de casos e carente de recursos operacionais básicos.

Com Bolsonaro o ataque aos sistemas atingiu o auge. Muitos foram sucateados, perderam parte de sua potência positiva. O presidente não preside, age para impedir que o governo governe. A inteligência desapareceu, rejeitada por uma equipe ministerial pouco qualificada e desorientada pela ausência de um plano concatenado de governo. Os sistemas foram atingidos no coração. Não só na saúde. A corrosão atinge também a educação, a cultura, a ciência e a tecnologia, o meio ambiente.

O governo atual, em vez de atuar como vértice supremo dos sistemas, age deliberadamente para desorganizá-los, recusa-se a coordenar suas peças e as impede de funcionar. Forma-se assim uma nuvem tóxica, de rara perversidade, que provoca caos sistêmico geral, impulsiona a disseminação do vírus e aumenta o número de doentes e mortos. É um crime.

Hoje olhamos para o SUS sufocado, o Ministério da Saúde cortado pela incompetência, e vemos o tamanho do estrago. A cultura está em pandarecos, o sistema educacional vive espremido entre a “guerra cultural”, a religiosidade postiça e a falação sobre homeschooling. O sistema de Justiça claudica, o sistema político funciona aos trancos, mergulhado num mar de mediocridade.

A crise provocada pela pandemia e pelo desgoverno Bolsonaro atirou o País num poço, do qual será difícil sair.

Não temos uma sociedade que “atue sobre si mesma de modo democrático”, como diz Habermas. Não estamos, como cidadãos, conseguindo nos reunir num âmbito coletivo que nos dê força para intervir. Falta-nos solidariedade cívica, sobra fragmentação política, as “dissonâncias cognitivas” nos paralisam, o palavreado tosco e agressivo de quem deveria prezar pela serenidade causa horror. Ficou muito mais difícil um agir consciente sobre o mundo.

Ao nos isolar e assustar, a pandemia explica muita coisa, mas não serve de justificativa. O Estado, hoje, no Brasil não é uma comunidade política organizada, assentada nos interesses comuns de seus integrantes. Faltam-nos elites qualificadas e boas estruturas associativas. Está submetido aos desmandos, à incompetência e à incúria perversa de um governo desqualificado, que manipula e amplia a pandemia, em vez de combatê-la com firmeza e inteligência. A demolição é abrangente: institucional, ética, política, econômica, ambiental, existencial.

A luta contra essa situação e uma resposta articulada ao caos que nos rouba a vida serão as principais tarefas dos próximos anos. Quanto antes começarmos a cumpri-las, melhor.

*Professor titular de teoria política da Unesp

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