Jair
Bolsonaro mesmo admite que atua na contramão do desejo da maior parte dos
brasileiros
O
Brasil vem há dois anos se defendendo do presidente da República. A despeito do
resultado negativo de suas investidas na avaliação popular sobre a qualidade do
governo, ele não esmorece. Jair Bolsonaro mesmo admite que atua na contramão do
desejo da maior parte dos brasileiros quando desafia o país a convencê-lo a
mudar de comportamento: “Devo mudar meu discurso, me tornar mais maleável, devo
ceder? Fazer igual à grande maioria? Se me convencerem, faço, mas não me
convenceram ainda”.
Lançou
esse repto a propósito da cobrança por medidas mais severas para o combate à
pandemia, confessando que está em posição de minoria. Ele adianta ao mesmo
tempo que por ora pouco se importa com isso e não vai mudar. Portanto, não há
mais razão para aquelas dúvidas sobre se recuos e adaptações de discurso têm
efeito fugaz ou duradouro.
O jogo, então, está assim jogado: Bolsonaro no ataque, o Brasil na defensiva. Não me refiro aqui ao universo da oratória, da troca de insultos pertencente ao campo do exercício do ódio improdutivo que propicia graça, anima a plateia, mobiliza emoções, mas não move moinhos de maneira efetiva. Em outras palavras, cultiva ilusões que levam a coisa alguma. O elenco de impropérios não sensibiliza quem tem neles seu ambiente mais familiar (lato e stricto sensu).
Falo
da pandemia, mas também da ofensiva do presidente contra diversos avanços
civilizatórios, os quais o Brasil se viu obrigado a defender quando já os
considerava consolidados. Aqui vamos dos marcos legais em diversos setores como
o de armamentos, meio ambiente, cultura, educação, ao extemporâneo
questionamento sobre as normas da democracia consagradas no papel pela
Constituição e na prática pela adesão da sociedade à realidade pós-ditadura.
De
tal cenário, emerge a questão: a regra imposta pelo presidente mediante a qual
ele ataca e o país perde tempo e energia na defesa é imutável? Não
necessariamente. Indo além para parafrasear Bolsonaro, talvez tenha chegado (ou
até passado) o momento de perguntar se sociedade e instituições devem mudar,
tornar-se menos maleáveis, mais intransigentes? Repudiá-lo com veemência
semelhante à da maioria de 54% que na última pesquisa Datafolha consideram o
governo ruim ou péssimo?
“O
Brasil pode escolher se mantém ou inverte a regra de ataque e defesa imposta
por Bolsonaro”
Legalmente
nada impede que a dinâmica de defesa e ataque se inverta e os contendores
troquem de lugar. O instrumento mais contundente seria a abertura de um
processo de impedimento de continuidade do mandato contra o presidente.
Realística e politicamente, contudo, há a resistência do Congresso e a posição
contrária de 50% (46% a favor) da população registrada pelo Datafolha.
É
um quadro visto como favorável pelo presidente. O índice de 30% dos que
consideram ótimo ou bom incentiva Bolsonaro a falar na adoção de estado de
sítio, a evocar suposta atuação das Forças Armadas em prol das investidas dele,
a dizer que há gente “esticando a corda” e a lançar ameaças de adotar “medidas
mais duras” contra a normalidade institucional.
Do
ponto de vista da sociedade, não há o que temer. Se alguém precisa ter medo é o
presidente da República, cuja permanência no poder pode começar a sofrer forte
questionamento por parte de setores até então refratários à hipótese de
impedimento ou de abertura de processos de investigação nos âmbitos parlamentar
(CPI) e criminal.
O
presidente mesmo contrata esse risco quando envereda por um caminho que o
carrega a um ambiente que lhe é desfavorável, o da provocação antidemocrática.
Com isso, põe o pé num terreno minado, chama um debate cujo desenrolar não tem
chance de chegar a bom termo para ele. Quebra um tabu e transfere a reação do campo
da retórica para a arena da materialidade.
Quando
Bolsonaro conclama as instituições à ruptura, dificilmente será atendido. O
Congresso não irá ao estado de sítio, o Judiciário tampouco o acolherá, os
militares não embarcarão em aventuras e o mundo do dinheiro deixou claro o que
pensa sobre seu modo de agir, na carta recente dos 1 500 economistas,
banqueiros e empresários.
Na
pior das hipóteses (para ele), conseguirá convencer a maioria de romper o
contrato eleitoral de 2018. Na melhor, ficará falando sozinho em sua lógica de
caráter regressivo que objetivamente só interessa a um nicho e não encontra
identificação no eleitorado de maneira substancial de forma a lhe dar condições
competitivas de pleitear um novo mandato.
Publicado
em VEJA de 31 de março de 2021, edição nº 2731
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