Milton Friedman dizia: “Se colocarem o governo para administrar o Deserto do Saara, em cinco anos faltará areia”. Os liberais na economia já foram mais descrentes de governos do que agora. Ninguém de bom senso advoga que o mercado sozinho tem solução para todos os problemas das sociedades contemporâneas. O conceito dominante agora é que o mercado regulado sabiamente por governos é a arrumação que melhor combina com a democracia. Entretanto, a começar pelas vacinas contra o vírus causador da Covid-19, todas elas concebidas ao cabo de processos com algum grau de cooperação entre iniciativa privada e instituições de pesquisa governamentais, nem mesmo esse arranjo garante sucesso na vitória definitiva sobre o problema básico da vida material — a escassez.
Sabemos,
todos os brasileiros, a imensa amargura que significa escassez de vacinas. Um
estudo recente da ONU, porém, mostrou que, em países avançados, muita coisa
está escasseando, entre elas, quem diria, areia. Essa deixaria até Milton
Friedman espantado. Falta também papelão para embalagens, faltam semicondutores
para a indústria de computadores. Faltam diversos tipos de remédios. Muitas
dessas mercadorias serão repostas quando a dinâmica das fábricas for retomada,
e as cadeias de comércio, reabertas com o fim da pandemia. Mas outras
mercadorias continuarão com baixa oferta. A escassez de semicondutores deve
continuar por muitos anos. O preço da tonelada de papelão para embalagens no
mercado europeu aumentou dez vezes desde o início da pandemia, e esse gargalo
não parecer ser temporário.
Faltar
areia para construção é um susto para muita gente, não apenas para os
economistas. “É pra ficar em pânico? Bem, isso certamente não vai ajudar, mas é
hora de mudar nossa percepção sobre algo tão simples, que parecia um recurso
inesgotável, quanto a areia”, disse Pascal Peduzzi, diretor do Global Resource
Database, braço da ONU que monitora os bens naturais do planeta. O mundo
consome dez vezes mais areia para construção do que cimento. São cerca de 40
bilhões de toneladas de areia por ano. Em torno de 18 quilos de areia por
habitante. É quantidade suficiente para construir a cada ano uma muralha de 27
metros de altura por 27 metros de largura dando a volta inteira no planeta.
Como
tragicamente ficamos sabendo no desabamento do edifício Palace II, em 22 de
fevereiro de 1998, areia de praia não pode ser usada sem tratamento como
agregado do concreto. A areia do deserto é fina, e seus grãos, muito
arredondados para uso em construções. A areia mais apropriada para fazer casas,
prédios, represas e viadutos vem do leito de rios e, principalmente na Ásia e
na África, de pedreiras. Diz Peduzzi: “A urbanização acelerada nesses
continentes está levando ao esgotamento das reservas de areia num ritmo mais
rápido do que podem ser repostos”.
A
escassez de areia, mesmo sendo um problema menos agudo no Brasil, é a metáfora
perfeita para o momento em que vivemos. A pandemia apenas dramatizou a escassez
geral, lembrando que ela se aprofundará e permanecerá por muito tempo — pelo
menos até que a imensa capacidade de reciclagem, criação de novos materiais e a
utilização nova de materiais tradicionais tragam um novo ciclo de abundância.
“Um problema central é que escassez gera escassez e, se não houver reação adequada, cria-se um círculo vicioso difícil de escapar”, diz Sendhil Mullainathan, professor de Economia da Universidade Harvard, coautor, com Eldar Shafir, do livro que é considerado o alicerce de um novo campo de investigação científica: “Escassez: por que ter muito pouco significa tanto” (2013). Os autores mostram que, em períodos de escassez como o atual, em que as vacinas para prevenir a Covid-19 são ambicionadas e raras, os comportamentos individuais e coletivos entram em parafuso. O resultado é o que estamos vivenciando na pandemia: impulsividade, baixo desempenho, decisões adiadas e “uma avalanche de pensamentos esmagadores e incontroláveis”.
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