sábado, 27 de março de 2021

Pablo Ortellado - Acuado, populismo de Bolsonaro encontra seus limites

- O Globo

Gostaria de chamar a atenção do leitor para um sutil deslocamento retórico na maneira como Bolsonaro se refere a quem defende as políticas de distanciamento social. Há pelo menos uma semana, Bolsonaro tem dito que não vai adotar políticas de lockdown como a maioria pede. A expressão “maioria” aplicada a adversários não é usual para Bolsonaro e é um sinal importante de fissura na sua estratégia populista.

A literatura recente da ciência política tem convergido para uma definição de populismo centrada na estratégia retórica de contrapor o povo às elites corrompidas e em propor a derrota dessas elites por meio de uma conexão direta do povo com o líder populista, sem a mediação de instituições como os partidos políticos ou a imprensa.

O filósofo político Ernesto Laclau enfatizava que o povo, usado pela retórica populista, era um termo vago e indefinido e que, nessa imprecisão, residia a sua força. O “povo” não eram os trabalhadores, as pessoas mais pobres, os “de baixo” ou as pessoas “comuns”, mas uma sinalização muito ambígua de maioria social, que permitia articular diferentes antagonismos em torno de um projeto político comum. Por isso, ele se referia ao povo como um significante vazio, sem significado definido.

Apesar de ser impreciso e vago, o “povo” deveria poder representar uma ampla maioria contra uma pequena elite corrompida. Assim, na campanha eleitoral, Bolsonaro se apresentou como representante do povo, ora enfatizando o povo conservador em oposição a uma elite cultural encastelada nos meios de comunicação e nas universidades, ora enfatizando o povo farto com o banditismo em oposição a uma elite política corrupta.

Essa articulação de pautas projetava a imagem de uma ampla maioria social, o povo. Não era preciso que se tratasse efetivamente de uma maioria (Bolsonaro teve apenas 39% dos votos — incluídos abstenções, brancos e nulos — e nunca teve aprovação superior a 49%), mas que pudesse se apresentar convincentemente como maioria.

É exatamente essa capacidade de se apresentar convincentemente como maioria social, isto é, como o povo, que está em xeque.

Segundo o Datafolha (18/3), 71% dos brasileiros são a favor da restrição de horário do funcionamento dos serviços. Quando instados a escolher entre deixar as pessoas em casa, mesmo com prejuízo à economia, ou acabar com isolamento social para incentivar a economia, 59% preferem ficar em casa e 30% preferem pôr fim ao isolamento. Pesquisa do Ideia (26/3), mostra uma diferença ainda maior, com 56% a favor de novas medidas restritivas, como suspensão de serviços e toque de recolher, e apenas 16% contrários.

De maneira consciente ou intuitiva, Bolsonaro sabe que não é mais possível apresentar o povo contra o isolamento social. As manifestações recentes contra as políticas dos governadores foram pequenas, restritas à franja militante e, à medida que a pandemia fica mais fora de controle, vai se formando um consenso em favor das políticas de distanciamento.

A capacidade do populismo de transfigurar a realidade está encontrando seus limites.

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