Gostaria
de chamar a atenção do leitor para um sutil deslocamento retórico na maneira
como Bolsonaro se refere a quem defende as políticas de distanciamento social.
Há pelo menos uma semana, Bolsonaro tem dito que não vai adotar políticas de
lockdown como a maioria pede. A expressão “maioria” aplicada a adversários não
é usual para Bolsonaro e é um sinal importante de fissura na sua estratégia
populista.
A
literatura recente da ciência política tem convergido para uma definição de
populismo centrada na estratégia retórica de contrapor o povo às elites
corrompidas e em propor a derrota dessas elites por meio de uma conexão direta
do povo com o líder populista, sem a mediação de instituições como os partidos
políticos ou a imprensa.
O filósofo político Ernesto Laclau enfatizava que o povo, usado pela retórica populista, era um termo vago e indefinido e que, nessa imprecisão, residia a sua força. O “povo” não eram os trabalhadores, as pessoas mais pobres, os “de baixo” ou as pessoas “comuns”, mas uma sinalização muito ambígua de maioria social, que permitia articular diferentes antagonismos em torno de um projeto político comum. Por isso, ele se referia ao povo como um significante vazio, sem significado definido.
Apesar
de ser impreciso e vago, o “povo” deveria poder representar uma ampla maioria
contra uma pequena elite corrompida. Assim, na campanha eleitoral, Bolsonaro se
apresentou como representante do povo, ora enfatizando o povo conservador em
oposição a uma elite cultural encastelada nos meios de comunicação e nas
universidades, ora enfatizando o povo farto com o banditismo em oposição a uma
elite política corrupta.
Essa
articulação de pautas projetava a imagem de uma ampla maioria social, o povo.
Não era preciso que se tratasse efetivamente de uma maioria (Bolsonaro teve
apenas 39% dos votos — incluídos abstenções, brancos e nulos — e nunca teve
aprovação superior a 49%), mas que pudesse se apresentar convincentemente como
maioria.
É
exatamente essa capacidade de se apresentar convincentemente como maioria
social, isto é, como o povo, que está em xeque.
Segundo
o Datafolha (18/3), 71% dos brasileiros são a favor da restrição de horário do
funcionamento dos serviços. Quando instados a escolher entre deixar as pessoas
em casa, mesmo com prejuízo à economia, ou acabar com isolamento social para
incentivar a economia, 59% preferem ficar em casa e 30% preferem pôr fim ao
isolamento. Pesquisa do Ideia (26/3), mostra uma diferença ainda maior, com 56%
a favor de novas medidas restritivas, como suspensão de serviços e toque de
recolher, e apenas 16% contrários.
De
maneira consciente ou intuitiva, Bolsonaro sabe que não é mais possível
apresentar o povo contra o isolamento social. As manifestações recentes contra
as políticas dos governadores foram pequenas, restritas à franja militante e, à
medida que a pandemia fica mais fora de controle, vai se formando um consenso
em favor das políticas de distanciamento.
A capacidade do populismo de transfigurar a realidade está encontrando seus limites.
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