sábado, 27 de março de 2021

Carlos Góes - Meu herói economista

- O Globo

Pérsio Arida foi um exemplo de resistência ao regime militar

O economista Pérsio Arida é meu herói da resistência ao regime militar. Você provavelmente conhece ele como uma das mentes por trás do Real. Talvez você não saiba que Pérsio foi torturado nos calabouços do regime militar.

Pérsio nunca foi terrorista. Nunca matou um soldado. Nunca explodiu uma bomba. Mas era membro da seção estudantil da VAR-Palmares. Seu crime foi ter pendurado uma faixa com os dizeres “Luta armada contra a Ditadura dos Patrões!” numa avenida.

Depois de se esconder numa quitinete durante semanas, foi capturado ao se encontrar com amigos de colégio (considerados “terroristas” pelo regime). Pérsio foi torturado em São Paulo. Ele é asmático. Ter sobrevivido aos choques e ao pau-de-arara é algo fortuito.

O maior problema do autoritarismo é que ele não tem limites. Como compreender um regime que usa toda a força da violência estatal para torturar um estudante inocente? Quem pode isso, pode qualquer coisa.

Mas essa história tem um final feliz. Após ser torturado, Pérsio contribuiu para acabar com outro método de tortura, mais silencioso, dos militares: a bomba de hiperinflação sedimentada por políticas do regime militar.

Entre 1964-84, a inflação média no Brasil foi de 64,5% ao ano. Os militares adotaram um sistema que ajustava automaticamente preços com base na inflação passada: a indexação econômica. Esta foi uma condição necessária para a hiperinflação da década de 1984-94.

Em 64, os militares criaram o Banco Central (Bacen). Até então, era o Banco do Brasil (BB) — que atuava comercialmente — quem agia como emprestador de última instância. Para acomodar interesses políticos, os bancos estaduais, controlados pelos governadores, continuaram sob a tutela do BB.

Para solucionar o impasse, os militares criaram a “conta movimento”, que balanceava desequilíbrios entre o BB e o Bacen ao fim de cada dia. Na prática, a conta movimento significava que os políticos estaduais e federais poderiam imprimir quantidades ilimitadas de moeda: havia múltiplas autoridades monetárias. Ministérios podiam ordenar operações de crédito no BB, e os governadores poderiam fazer o mesmo com os bancos estaduais. No fim do dia, o Bacen era obrigado a compensar.

A alta inflação foi o resultado óbvio. O regime militar tentou controlá-la por um método arbitrário: o “arrocho salarial”. Em bom português, a política significava que uma parcela menor da renda nacional ficava com os trabalhadores e uma parcela maior ficava com o governo. Esse era um método que só era possível sob autoritarismo. Só a perspectiva de um governo que torturava seus opositores poderia desincentivar as pessoas de protestarem contra uma política que roubava delas a capacidade de comprar o que queriam e ter vida melhor.

Ao fim do regime, com as pessoas acostumadas com uma inflação alta e reajustes anuais, a economia plenamente indexada e uma revolta acumulada pelo arrocho salarial, a bomba-relógio estava prestes a explodir. E explodiu. É aqui que nosso herói economista volta à cena.

Trinta anos após o Golpe, Pérsio ajudou a construir uma Revolução. A estabilização macroeconômica brasileira foi, de fato, uma Revolução. Ela modificou completamente as possibilidades das pessoas. A Revolução de 1994 tornou possível que empresários e consumidores fizessem planos e investimentos e que governantes pudessem engendrar políticas públicas de uma forma mais ordinária e transparente.

Em dois anos, o Plano Real tirou cerca de 9 milhões de pessoas da miséria. Na década seguinte, uma combinação de crescimento econômico, mudanças demográficas favoráveis e políticas sociais direcionadas aos mais pobres retiraria mais 20 milhões de pessoas da miséria.

Inflação e desequilíbrios macroeconômicos são armas de destruição em massa. São armas que condenam pessoas à miséria, à fome e, consequentemente, à própria morte. E o desastre hiperinflacionário brasileiro foi gestado pelos militares.As repercussões humanitárias do golpe alcançaram muito além dos calabouços e dos alicates dos torturadores (hoje confessos). Elas alcançaram cada pessoa que teve seu salário comprimido, seu poder de compra destruído, suas importações encarecidas, suas oportunidades tolhidas.

Hoje, 57 anos após o Golpe, celebro meu herói economista que, apesar de torturado, iniciou, anos mais tarde, a Revolução da Estabilidade Macroeconômica e contribuiu para a superação do legado de autoritarismo, nacionalismo, “exclusionismo” comercial e estatismo da ditadura.

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