O
caminhão chegou em casa seguido por um bando de gente disposta a ajudar a
descarregar
Para Thomaz Souto Corrêa
Alci,
Miguelzinho e Lazinho trouxeram espigas de milho, as primeiras colhidas no
milharal de Ivo e Sueli, amigos e vizinhos, e Rosilene colocou na panela. Mais
tarde, Alci voltou com imensa abóbora logo transformada em doce e ainda será
quibebe e sopa, tudo em fogão de lenha. Neste recanto do sul de Minas,
descoberto há cinco anos, conseguimos construir um pequeno refúgio. Marcia,
arquiteta, decidiu que a casa teria grandes janelas e portas de vidro, abrindo
para a floresta, para vales e montanhas e, do lado direito, para o Pico do
Papagaio, um dos símbolos de Minas Gerais.
Fugimos de São Paulo e aqui estamos, evitando o colapso da covid. Momento exato. Minha idade me torna vulnerável e quero ainda gozar os anos que me restam. Não professo a teoria do genocida. Aqui, aos poucos, viemos penetrando na atmosfera da comunidade, lentamente porque é preciso ir com jeito. O mineiro é bom, solidário, generoso, mas confia com cautela. Marcia e Rita já apanharam o modo de eles falarem, as contrações, prêle, os termos próprios, o LI quando querem dizer ALI, e dezenas de expressões poéticas. Nossa casa é conhecida como a casa da dona Marcia e foi construída velozmente por três homens, não mais. Das fundações aos acabamentos, hidráulica, pintura, Marcinho, Geovanni e Genildo cuidaram de tudo. O muro de pedra foi erguido pelo Fortunato, que manejou pedras pesadíssimas. José Messias se encarrega da horta e ali buscamos couve, feijão, alface, almeirão, vagem macarrão, couve chinesa e já temos limão plantado. Ele é daqueles que têm mão santa, planta, germina, cresce. Os governantes não conhecem o interior do Brasil, é outro mundo distante de Brasília, ninho de escorpiões.
Véspera
de Natal, fim de ano. Não resistimos, viemos com a casa inacabada. Faltavam
móveis e geladeira. A loja não teve como cumprir prazos. Logo a notícia se
espalhou, eu diria que aqui é uma espécie de condado com suas casas espalhadas,
bistrô da Nilda, o Florença, onde se come truta fresca e se tomam boas cervejas
artesanais, algumas pousadas (desertas com a pandemia), igreja, pequena vila,
chamada Maria, a piscinona da Lurdes, um campo de futebol, um empório, o do
Horlando, onde você encontra tudo, ou quase tudo. A mulher dele, Dalila, e a
filha Camila ajudam a tomar conta e tudo é posto na caderneta, digo no
computador. Ali é ponto de encontro, troca de informações, concentração dos
times que jogam no domingo no campo vizinho
Todos
os dias vinha a pergunta: “Chegaram os móveis da Marcia? E a geladeira?”. Os
motoristas de cada caminhão que passava pelo Horlando ouviam a mesma indagação
ansiosa: “Trouxe os móveis da Marcia? E a geladeira?”. As festas de final de
ano chegavam. Suspense geral. Criou-se um clima, todos inquietos. A estrada de
terra para nossa casa passa frente ao Horlando e um dia por ali circulou um
caminhão-baú vindo de Lagoa Dourada e Camila gritou: “É a geladeira?”. O
motorista respondeu: “Não, são os móveis da dona Marcia”.
Alegria.
O caminhão seguiu rumo a nossa casa. Mas sendo estrada de terra, tinha chovido,
a carga era pesada, em uma ladeira enlameada, ele atolou. E agora? Bem, o
Miguelzinho passou por ali de moto, olhou, viu que eram os móveis, voou em
busca do Alci com o trator, desencalharam o caminhão. Este chegou em casa à
noite seguido por um bando de gente disposta a ajudar a descarregar. O que
deveria ter durado três horas com o motorista e seu ajudante, virou menos de 40
minutos, todo mundo levando mesa, cadeiras, sofás, colchões, armários, rindo e
brincando. Foi linda a solidariedade, a disposição, o companheirismo.
Sentimo-nos aceitos.
Passamos
o Natal sem geladeira. Certo dia, passou pelo Horlando uma caminhoneta com uma
geladeira na traseira. Tomou nosso caminho. Camila deu o alerta: “Chegou a
geladeira da Marcia”. Teve gente que veio verificar. Quem veio, tomou cerveja.
Preciso dizer que um dia trouxe um livro meu para o Horlando. Ele tirou uma
foto, ampliou, está no “shopping”, alertando que sou imortal em duas academias,
a Paulista e a Brasileira. Pretendo trazer livros para todo mundo, montar uma
biblioteca aqui que será cuidada pela Vitória, que adora literatura. Ah, sim
acabaram de trazer amendoim e pinhões recém-colhidos. Este é um Brasil cordial
que ainda existe.
Lembrem-se:
Faixa
negra nas janelas no Movimento Luto pela vida.
*É
jornalista e escritor, autor 'Zero' e 'Não verás país nenhum'
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