A
imagem era de uma explosão de tinta azul. Uma mistura dos respingos de Jackson
Pollock com o azul cobalto de Yves Klein. Paredes, chão, vidros, fotos,
fachada, tapete, esquadrias, material de pilates, tudo respingado e manchado na
minha varanda. Caído, jazia um copo de plástico com tinta seca, responsável
pela bagunça pictórica. Arremessado com violência a partir do playground contra
o apartamento, na minha ausência. Na trajetória, até aterrissar, quebrou também
um abajur.
Eu
chegava de fora do Rio. Só pode ter sido um moleque, pensei. Não, não pode.
Para ser jogado com essa força e nessa altura, um andar acima, não foi uma
criança entediada com o isolamento. Antes fosse. Era uma tinta espessa e cara.
Só pode ter sido alguém que sabia do apartamento vazio, e à noite. De dia,
ninguém assumiria o risco de ser visto, disseram vizinhos que têm se confinado
em varandas. O play hoje é frequentado por criancinhas que brincam de casinha e
correm pelo espaço. À noite, só adultos usam sauna e piscina.
Mas por que isso? Por que essa agressão em meio a uma pandemia? Amigos, filhos e vizinhos me convenceram. É o que você escreve, Ruth. Todos do prédio sabem que você critica o Bolsonaro. Essa turma, quando não xinga em redes sociais, parte para a intimidação. Quem agiu assim sabia também que não havia câmeras, o que é absurdo. Todo prédio precisa ter câmeras no play, para proteger as crianças e o patrimônio.
Pensei
e repensei como reagir. Opiniões são diversas. Ruth, faz um boletim de
ocorrência, chama perito, denuncia, porque uma hora é tinta, daqui a pouco é
pedra ou coisa pior, se ficar quieta vão pensar que você se acovardou. Ruth,
esquece, melhor não dar trela a extremistas. Pensa na sua saúde e em limpar
logo o lugar preferido de sua casa, onde você toma sol, se exercita, cuida das
plantas. Lava a energia negativa! Afinal, o que é uma varanda conspurcada de
azul, diante de mais de 300 mil mortos e um presidente psicopata e mentiroso,
denunciado no Brasil e no mundo?
Entre
o tudo ou nada, decidi pela disciplina. Apelei à autoridade local: o síndico.
Mandei uma mensagem com fotos. Ele reagiu rápido e indignado: “É realmente
inadmissível o ocorrido e irei enviar uma circular criticando a ação e
reforçando o respeito aos vizinhos”. Fiquei descansada. Até ver a circular no elevador.
Talvez orientado por um advogado, minimizou e distorceu: “Solicito aos
senhores condôminos medidas para evitar acidentes deste tipo e suas possíveis
consequências”.
Expliquei
ao síndico que ele não poderia chamar de “acidente”, pois o copo de tinta não
caiu do céu. Ele foi lançado intencionalmente a partir do play. Manchas no chão
do play e na fachada do prédio, de fora para dentro, comprovam. Sugeri
reescrever o comunicado. E prometer instalar câmeras, que hoje só existem nos
elevadores. Chamar crimes de “acidentes” é a melhor forma de
desqualificá-los e deixar as vítimas ao relento. Vive acontecendo no Brasil.
Felizmente, o síndico me atendeu uma semana depois. Modificou a circular,
exigiu civilidade e ameaçou com penalidades quem violar regras da boa
convivência. Não podemos ser atacados por outros moradores.
Começo a olhar com certa simpatia esses azuis, como um statement contra o poder de textos escritos. As manchas e gotas até me lembram a action painting, arte abstrata livre e gestual em que Pollock era um dos maiores, já nos anos 1940. Eu pratico modestamente “action word”, a palavra concreta como arma de expressão ou legítima defesa. #forabolsonaro
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