sexta-feira, 26 de março de 2021

Flávia Oliveira - Sem o Censo, é o fim

- O Globo

O apagão estatístico sempre esteve à espreita do Brasil no governo Jair Bolsonaro. Mais de uma vez, tanto o presidente da República quanto integrantes do primeiro escalão lançaram dúvida, tentaram interferir ou desqualificaram órgãos e profissionais responsáveis pelo arcabouço de estatísticas e dados essenciais ao autoconhecimento da sociedade brasileira. Ainda anteontem, o Ministério da Saúde, recém-assumido pelo cardiologista Marcelo Queiroga, tentou alterar o sistema de registro de óbitos por Covid-19 — recuou por pressão de secretários estaduais e municipais. Por complexa, a manobra alteraria, para baixo, o total de vítimas, retardando a confirmação da marca macabra de 300 mil pessoas mortas em um ano de pandemia, atestado da incompetência e da indiferença genocida do mandatário federal e de seus aliados civis e militares.

Desde 2019, seguidos episódios atestaram o desapreço da gestão federal pelos que produzem informações sobre o Brasil. O presidente já pôs em dúvida a taxa de desemprego do IBGE e a medição do desmatamento da Floresta Amazônica pelo Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). O então ministro da Cidadania, Osmar Terra, censurou pesquisa da Fiocruz sobre uso de drogas pela população. Tinha convicção, mas não provas, de que, ao contrário do que o levantamento demonstrava, havia uma epidemia de dependência química no país. “Eu andei nas ruas de Copacabana, e estavam vazias. Se isso não é uma epidemia de violência que tem a ver com as drogas, eu não entendo mais nada”, afirmou Terra, hoje dedicado a minimizar os efeitos da devastadora pandemia.

Agora, se avizinha a mais grave ameaça à produção de diagnósticos socioeconômicos, à elaboração de políticas públicas e à repartição de receitas orçamentárias entre os entes da Federação. Está por um fio o Censo Demográfico 2021. A combinação de risco sanitário e estrangulamento orçamentário deve levar à suspensão da pesquisa, que, por causa da pandemia, foi cancelada em 2020. Foi a terceira vez desde 1920 que o Censo não se realizou num ano zero, como é padrão mundo afora. Antes, acontecera pela Revolução de 1930 e pelo choque recessivo do Plano Collor, de 1990.

A Comissão Mista de Orçamento (CMO), ontem à tarde, reduziu a R$ 71 milhões a verba para realização da pesquisa, estabelecida em R$ 2 bilhões, após readequação do orçamento original, de R$ 2,3 bilhões. O caraminguá proposto pela CMO equivale a R$ 1 por domicílio a ser visitado pelos recenseadores, 182 mil ao todo, segundo edital do concurso (ainda em elaboração). Confirmada a sentença nos plenários da Câmara e do Senado (até o fechamento deste artigo, as votações estavam pendentes), o Brasil não terá Censo este ano, com consequências nefastas para a gestão pública e para o bem-estar dos brasileiros. “Sem este ano, a gente corre o risco muito grande de não ter Censo nesta década, porque 2022 é ano eleitoral. Será um prejuízo enorme para o Brasil, com custo muito maior que a economia proporcionada pelo corte”, alerta o demógrafo José Eustáquio Alves.

O IBGE não se manifestou ontem sobre a tramitação do Orçamento, mas, em artigo publicado na última segunda-feira no GLOBO, a presidente, Susana Cordeiro Guerra, e o diretor de Pesquisas, Eduardo Rios-Neto, alertaram para o risco de cancelamento. “Além de ser um instrumento fundamental para o pacto federativo e a calibragem da democracia representativa, a contagem da população permite a determinação dos públicos-alvo de todas as políticas públicas nos âmbitos federal, estadual e municipal”, escreveram. Em 2019, dos R$ 396 bilhões transferidos pela União a estados e municípios, dois terços (R$ 251 bilhões) tomaram por base dados apurados pelo instituto. As contas já vinham defasadas em razão do cancelamento da contagem populacional em 2015 — ou seja, já são 11 anos sem informação nova.

Sem o golpe orçamentário, a realização da pesquisa já estava ameaçada pelo agravamento da pandemia neste início do ano. A pesquisa é sempre realizada em agosto, tendo julho como mês de referência para as respostas, mas a preparação começa meses antes. O sindicato dos servidores, a ASSIBGE, tem defendido o adiamento para 2022. Medo de contágio, atraso na vacinação dos brasileiros, ampliação do número de domicílios fechados, resistência de moradores a receber os recenseadores, cortes no orçamento de comunicação sobre a pesquisa foram motivos elencados pela entidade para reivindicar a remarcação —até então, recusada pela administração.

Roberto Olinto, ex-presidente do IBGE, vê pouco espaço para realização do Censo este ano, seja por razões orçamentárias ou sanitárias. E tem dúvidas sobre condições fiscais e políticas para realização no próximo ano, de eleição presidencial. “O Censo é um retrato que exige estabilidade, porque a sociedade trabalhará com os resultados por dez anos. A pandemia trouxe mudanças demográficas, deformações geográficas importantes. O quadro sanitário se agravou. Por tudo isso, já não é absurdo adiar. A questão é que a possibilidade não haver pesquisa também em 2022 é imensa. Se acontecer, será uma tragédia”, dispara.

Não há resposta pronta nem solução fácil para equacionar o risco de apagão estatístico, mas o país poucas vezes precisou tanto de um Censo. A pandemia desencadeou processos migratórios, alterações no mercado de trabalho e no nível de rendimentos, choque na demanda por saúde, educação e assistência social, mudança na composição das famílias, necessidades nas condições de habitação e acesso a serviços. Da pesquisa que visita casa por casa, de Norte a Sul, que guarda as informações e viabiliza os diagnósticos. Há um Brasil por conhecer. E um governo movido a fake news, pouco interessado em descobri-lo. Sem Censo, será o fim.

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