O apagão estatístico sempre esteve à espreita do Brasil no governo Jair Bolsonaro. Mais de uma vez, tanto o presidente da República quanto integrantes do primeiro escalão lançaram dúvida, tentaram interferir ou desqualificaram órgãos e profissionais responsáveis pelo arcabouço de estatísticas e dados essenciais ao autoconhecimento da sociedade brasileira. Ainda anteontem, o Ministério da Saúde, recém-assumido pelo cardiologista Marcelo Queiroga, tentou alterar o sistema de registro de óbitos por Covid-19 — recuou por pressão de secretários estaduais e municipais. Por complexa, a manobra alteraria, para baixo, o total de vítimas, retardando a confirmação da marca macabra de 300 mil pessoas mortas em um ano de pandemia, atestado da incompetência e da indiferença genocida do mandatário federal e de seus aliados civis e militares.
Desde
2019, seguidos episódios atestaram o desapreço da gestão federal pelos que
produzem informações sobre o Brasil. O presidente já pôs em dúvida a taxa de
desemprego do IBGE e a medição do desmatamento da Floresta Amazônica pelo
Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). O então ministro da Cidadania, Osmar
Terra, censurou pesquisa da Fiocruz sobre uso de drogas pela população. Tinha
convicção, mas não provas, de que, ao contrário do que o levantamento demonstrava,
havia uma epidemia de dependência química no país. “Eu andei nas ruas de
Copacabana, e estavam vazias. Se isso não é uma epidemia de violência que tem a
ver com as drogas, eu não entendo mais nada”, afirmou Terra, hoje dedicado a
minimizar os efeitos da devastadora pandemia.
Agora,
se avizinha a mais grave ameaça à produção de diagnósticos socioeconômicos, à
elaboração de políticas públicas e à repartição de receitas orçamentárias entre
os entes da Federação. Está por um fio o Censo Demográfico 2021. A combinação
de risco sanitário e estrangulamento orçamentário deve levar à suspensão da
pesquisa, que, por causa da pandemia, foi cancelada em 2020. Foi a terceira vez
desde 1920 que o Censo não se realizou num ano zero, como é padrão mundo afora.
Antes, acontecera pela Revolução de 1930 e pelo choque recessivo do Plano
Collor, de 1990.
A
Comissão Mista de Orçamento (CMO), ontem à tarde, reduziu a R$ 71 milhões a
verba para realização da pesquisa, estabelecida em R$ 2 bilhões, após
readequação do orçamento original, de R$ 2,3 bilhões. O caraminguá proposto
pela CMO equivale a R$ 1 por domicílio a ser visitado pelos recenseadores, 182
mil ao todo, segundo edital do concurso (ainda em elaboração). Confirmada a
sentença nos plenários da Câmara e do Senado (até o fechamento deste artigo, as
votações estavam pendentes), o Brasil não terá Censo este ano, com
consequências nefastas para a gestão pública e para o bem-estar dos
brasileiros. “Sem este ano, a gente corre o risco muito grande de não ter Censo
nesta década, porque 2022 é ano eleitoral. Será um prejuízo enorme para o
Brasil, com custo muito maior que a economia proporcionada pelo corte”, alerta
o demógrafo José Eustáquio Alves.
O
IBGE não se manifestou ontem sobre a tramitação do Orçamento, mas, em artigo
publicado na última segunda-feira no GLOBO, a presidente, Susana Cordeiro
Guerra, e o diretor de Pesquisas, Eduardo Rios-Neto, alertaram para o risco de
cancelamento. “Além de ser um instrumento fundamental para o pacto federativo e
a calibragem da democracia representativa, a contagem da população permite a
determinação dos públicos-alvo de todas as políticas públicas nos âmbitos
federal, estadual e municipal”, escreveram. Em 2019, dos R$ 396 bilhões
transferidos pela União a estados e municípios, dois terços (R$ 251 bilhões)
tomaram por base dados apurados pelo instituto. As contas já vinham defasadas
em razão do cancelamento da contagem populacional em 2015 — ou seja, já são 11
anos sem informação nova.
Sem
o golpe orçamentário, a realização da pesquisa já estava ameaçada pelo
agravamento da pandemia neste início do ano. A pesquisa é sempre realizada em
agosto, tendo julho como mês de referência para as respostas, mas a preparação
começa meses antes. O sindicato dos servidores, a ASSIBGE, tem defendido o
adiamento para 2022. Medo de contágio, atraso na vacinação dos brasileiros,
ampliação do número de domicílios fechados, resistência de moradores a receber
os recenseadores, cortes no orçamento de comunicação sobre a pesquisa foram
motivos elencados pela entidade para reivindicar a remarcação —até então,
recusada pela administração.
Roberto
Olinto, ex-presidente do IBGE, vê pouco espaço para realização do Censo este
ano, seja por razões orçamentárias ou sanitárias. E tem dúvidas sobre condições
fiscais e políticas para realização no próximo ano, de eleição presidencial. “O
Censo é um retrato que exige estabilidade, porque a sociedade trabalhará com os
resultados por dez anos. A pandemia trouxe mudanças demográficas, deformações
geográficas importantes. O quadro sanitário se agravou. Por tudo isso, já não é
absurdo adiar. A questão é que a possibilidade não haver pesquisa também em
2022 é imensa. Se acontecer, será uma tragédia”, dispara.
Não há resposta pronta nem solução fácil para equacionar o risco de apagão estatístico, mas o país poucas vezes precisou tanto de um Censo. A pandemia desencadeou processos migratórios, alterações no mercado de trabalho e no nível de rendimentos, choque na demanda por saúde, educação e assistência social, mudança na composição das famílias, necessidades nas condições de habitação e acesso a serviços. Da pesquisa que visita casa por casa, de Norte a Sul, que guarda as informações e viabiliza os diagnósticos. Há um Brasil por conhecer. E um governo movido a fake news, pouco interessado em descobri-lo. Sem Censo, será o fim.
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