A
pandemia desconstruiu e expôs contradições do modelo de capitalismo
subdesenvolvido que há meio século nos puxa para baixo
A
pandemia não é a causa primeira da orientação retrógrada que define a situação
brasileira atual. Ela apenas agravou-lhe as tendências ao desfazimento da ordem
e à institucionalização da crise. Sobretudo no retorno do Brasil à condição de
país atrasado, com espasmos de economia moderna.
Fatores
e interesses opostos ao desenvolvimento aqui de um capitalismo possível e
diferente já vinham se manifestando há tempos. Desde os governos petistas, com
uma vulnerabilidade clara aos ímpetos do capitalismo do crescimento econômico e
não o do desenvolvimento econômico com desenvolvimento social.
Mas isso era coisa nascida com o golpe militar de 1964, com vários e crescentes desdobramentos para além da economia, na política, na sociedade, na cultura. Ao que as esquerdas não conseguiram antepor um projeto democrático de nação.
Não
é de hoje que diferentes grupos, organizações, entidades e até igrejas atuam
claramente em defesa de uma política do atraso econômico, político, social e
cultural. Se ficar lá atrás, o Brasil que não pensa criticamente nem pensa com
sua própria cabeça não incomodará ninguém. São grupos de ativistas que, pelos
valores e pelas concepções antimodernas que os orientam, perfilham a opção
preferencial pelo atraso.
Importante
para desvendar o projeto do atraso, de Bolsonaro e de seu governo, é a
entrevista da jornalista Amanda Klein com o general Hamilton Mourão no programa
“É Notícia”, da RedeTV!, no dia 29 de outubro de 2018, dia seguinte ao da
eleição. Sobretudo por contrastar com aquilo que o governo acabou fazendo,
cujas premissas ideológicas ali expostas já indicavam o irrealismo messiânico
da suposição de que o mundo caminhava para aquilo que Bolsonaro era e pensava.
As
eleições mostraram que as esquerdas estavam profundamente despreparadas para compreender
dialeticamente o que Bolsonaro e Mourão representavam: uma direita peculiar e
despreparada. Por isso, capaz de agregar os setores residuais e autoritários da
classe média e dar-lhes uma bandeira falsa, mas convincente.
A
direita combateu e venceu uma esquerda que não existia porque, democrática, era
outra coisa. A esquerda combateu uma direita que tampouco existia porque
direita de mero condomínio político retrógrado e de ajuntamento de resíduos
ideológicos desencontrados. Perdeu a oportunidade de questioná-la na ideologia
servil do atraso e do projeto implícito de retrocesso do país. E batê-la na
eleição.
A
inesperada e mortal irrupção da pandemia expôs os efeitos das contradições do
modelo de capitalismo subdesenvolvido que há mais de meio século nos puxa para
baixo. Um subcapitalismo feito para sustentar o neocolonialismo que nos torna
uma nação subalterna.
Minorias
obscurantistas, com a irresistível ascensão de Bolsonaro e do bolsonarismo,
ganharam o protagonismo público que nunca tiveram, quando muito reduzidas à
insuficiente expressão eleitoral e nem a isso. O que se tornou possível porque
os gestores e manipuladores das redes sociais descobriram neles a força
política da nulidade, deram-lhes voz e expressão na ideologia da raiva, do
ressentimento e da revanche.
Por
esses meios, o poder tem sido historicamente assediado por aqueles que não têm
o direito de nele influir e de orientá-lo em decisões que afetam a vida de
todos. O atual presidente parece atrair, naturalmente, pessoas que se identificam
com suas ideias limitadas a um horizonte imediatista e eleitoreiro, o do agora
e só seu, e não o do sempre e de todos.
A
política do atraso produziria um de seus mais perversos efeitos no governo de
condomínio familial do poder. Um modo arcaico e antidemocrático de praticar o
presidencialismo. Expressão de fragilidade política de quem desse modo exerce a
Presidência. E desse modo molesta os direitos de todos.
O
presidente da República age, o tempo todo, como se sua eleição não fosse para
presidente, mas para ser apenas candidato à renovação do mandato ainda não
exercido em nome da competência ainda não demonstrada. Nisso já fica evidente
uma primeira indicação de uma opção política de extenso e diversificado grupo
por um projeto de nação que é o do Brasil atrasado porque nega o que é próprio
da modernidade democrática. É o indisfarçável projeto de voltar ao que há de
mais retrógrado nas tradições brasileiras.
O
governo atual conduz o Brasil a uma situação em que não temos nem a ordem nem o
progresso proclamados na próprio bandeira nacional. O símbolo do dedo no
gatilho que identificou a proposta eleitoral de quem seria o vencedor do pleito
de 2018 substituiu-os na mentalidade política. Já dizia tudo. Era o anúncio de
um projeto de nação cuja vida seria regulada pelo primado diabólico da morte. E
tem sido.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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