sexta-feira, 26 de março de 2021

José de Souza Martins* - A opção do Brasil pelo atraso

- Valor Econômico

A pandemia desconstruiu e expôs contradições do modelo de capitalismo subdesenvolvido que há meio século nos puxa para baixo

A pandemia não é a causa primeira da orientação retrógrada que define a situação brasileira atual. Ela apenas agravou-lhe as tendências ao desfazimento da ordem e à institucionalização da crise. Sobretudo no retorno do Brasil à condição de país atrasado, com espasmos de economia moderna.

Fatores e interesses opostos ao desenvolvimento aqui de um capitalismo possível e diferente já vinham se manifestando há tempos. Desde os governos petistas, com uma vulnerabilidade clara aos ímpetos do capitalismo do crescimento econômico e não o do desenvolvimento econômico com desenvolvimento social.

Mas isso era coisa nascida com o golpe militar de 1964, com vários e crescentes desdobramentos para além da economia, na política, na sociedade, na cultura. Ao que as esquerdas não conseguiram antepor um projeto democrático de nação.

Não é de hoje que diferentes grupos, organizações, entidades e até igrejas atuam claramente em defesa de uma política do atraso econômico, político, social e cultural. Se ficar lá atrás, o Brasil que não pensa criticamente nem pensa com sua própria cabeça não incomodará ninguém. São grupos de ativistas que, pelos valores e pelas concepções antimodernas que os orientam, perfilham a opção preferencial pelo atraso.

Importante para desvendar o projeto do atraso, de Bolsonaro e de seu governo, é a entrevista da jornalista Amanda Klein com o general Hamilton Mourão no programa “É Notícia”, da RedeTV!, no dia 29 de outubro de 2018, dia seguinte ao da eleição. Sobretudo por contrastar com aquilo que o governo acabou fazendo, cujas premissas ideológicas ali expostas já indicavam o irrealismo messiânico da suposição de que o mundo caminhava para aquilo que Bolsonaro era e pensava.

As eleições mostraram que as esquerdas estavam profundamente despreparadas para compreender dialeticamente o que Bolsonaro e Mourão representavam: uma direita peculiar e despreparada. Por isso, capaz de agregar os setores residuais e autoritários da classe média e dar-lhes uma bandeira falsa, mas convincente.

A direita combateu e venceu uma esquerda que não existia porque, democrática, era outra coisa. A esquerda combateu uma direita que tampouco existia porque direita de mero condomínio político retrógrado e de ajuntamento de resíduos ideológicos desencontrados. Perdeu a oportunidade de questioná-la na ideologia servil do atraso e do projeto implícito de retrocesso do país. E batê-la na eleição.

A inesperada e mortal irrupção da pandemia expôs os efeitos das contradições do modelo de capitalismo subdesenvolvido que há mais de meio século nos puxa para baixo. Um subcapitalismo feito para sustentar o neocolonialismo que nos torna uma nação subalterna.

Minorias obscurantistas, com a irresistível ascensão de Bolsonaro e do bolsonarismo, ganharam o protagonismo público que nunca tiveram, quando muito reduzidas à insuficiente expressão eleitoral e nem a isso. O que se tornou possível porque os gestores e manipuladores das redes sociais descobriram neles a força política da nulidade, deram-lhes voz e expressão na ideologia da raiva, do ressentimento e da revanche.

Por esses meios, o poder tem sido historicamente assediado por aqueles que não têm o direito de nele influir e de orientá-lo em decisões que afetam a vida de todos. O atual presidente parece atrair, naturalmente, pessoas que se identificam com suas ideias limitadas a um horizonte imediatista e eleitoreiro, o do agora e só seu, e não o do sempre e de todos.

A política do atraso produziria um de seus mais perversos efeitos no governo de condomínio familial do poder. Um modo arcaico e antidemocrático de praticar o presidencialismo. Expressão de fragilidade política de quem desse modo exerce a Presidência. E desse modo molesta os direitos de todos.

O presidente da República age, o tempo todo, como se sua eleição não fosse para presidente, mas para ser apenas candidato à renovação do mandato ainda não exercido em nome da competência ainda não demonstrada. Nisso já fica evidente uma primeira indicação de uma opção política de extenso e diversificado grupo por um projeto de nação que é o do Brasil atrasado porque nega o que é próprio da modernidade democrática. É o indisfarçável projeto de voltar ao que há de mais retrógrado nas tradições brasileiras.

O governo atual conduz o Brasil a uma situação em que não temos nem a ordem nem o progresso proclamados na próprio bandeira nacional. O símbolo do dedo no gatilho que identificou a proposta eleitoral de quem seria o vencedor do pleito de 2018 substituiu-os na mentalidade política. Já dizia tudo. Era o anúncio de um projeto de nação cuja vida seria regulada pelo primado diabólico da morte. E tem sido.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).

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