Será
novidade se processo for adiante sem as ruas
O
analfabetismo e o alienamento político no Brasil nos últimos anos foram
substituídos ou rivalizados por um tipo de comportamento orgulhoso que opera
por meio de comandos simples, toscos, sem vergonha do próprio desconhecimento.
A ignorância não se resume à falta de saber. É insensibilidade, truculência,
brutalidade, desumanidade. Está no poder, nas ruas e nas redes sociais, onde
conseguiu transformar o verbo compartilhar em informação falsa e ameaça à vida.
Em 1999, nos tempos de deputado do baixo clero, Jair Bolsonaro, em sua fixação pela morte e pelo autoritarismo, defendeu um novo golpe militar e uma guerra civil para matar “uns 30 mil”, “começando com [o então presidente] FHC”. Durante a atual pandemia, em que o adjetivo de genocida vai grudando na imagem do ocupante do Planalto, os óbitos pelo coronavírus passaram dos 300 mil, depois de um ano de descaso.
Devido
às subnotificações, o massacre pode ser bem maior e já alcançaria 400 mil
mortos, segundo dados do Observatório Covid-19, publicados ontem pelo Valor. Nem na África inteira,
continente com quase 60 países e indicadores socioeconômicos lamentáveis, a
pandemia fez tantos estragos. Lá, morreram 111 mil pessoas - um terço do que
aqui - para uma população de 1,36 bilhão de habitantes, seis vezes a
brasileira. Ainda que também haja um alto grau de subnotificação do outro lado
do oceano, a comparação não leva ao engano.
Terceiro
mundo, se for. Alarme no exterior. O Brasil, que já se esforçava em ser um
pária da comunidade internacional, tornou-se epicentro da pandemia, um
criadouro de variantes e cepas do vírus letal. Falta liderança e boa cultura
política. Até perder força, a ponto de exaurir as energias do país, a corrente
de opinião que sustenta o presidente obrigará o brasileiro a se arrepender e a
reaprender.
No
Congresso, reflexo interessado da sociedade, a cartilha do pragmatismo tardio
ensina que é hora de Lira virar a chave do governismo. Bolsonaro está na mira
do presidente da Câmara que, talvez mais rápido do que o imaginado, insinua
apeá-lo do poder. O aviso de que “tudo tem limite” e de que está apertando o
“sinal amarelo” mostra que o líder do Centrão começa a reunir as condições que
ainda careciam ao antecessor Rodrigo Maia.
Numa
entrevista em fins de janeiro, às vésperas de ser eleito ao comando da Câmara
sob o patrocínio de Bolsonaro, Lira analisava a possibilidade com realismo
lapidar: “O impeachment é processo político. Nenhum presidente pauta um
impeachment; um impeachment pauta um presidente. Se tivermos inflação de 200%,
protestos nas ruas, caos social, isso vem naturalmente”.
Para
sorte de Bolsonaro não há no radar manifestações de rua. Seus críticos não
estão dispostos a abusar da mesma insanidade de seus apoiadores, contumazes
aglomeradores em meio à pandemia. Será uma novidade se um processo de
impedimento for adiante sem as ruas. Mas quem disse que a ascensão do
ex-capitão também não se deu de maneira anômala? Quase tudo que diz respeito a
Bolsonaro é fora da curva, anormal.
Crível
ou não, a ameaça de Lira causou mais medo do que as peitadas de Maia. Essas
eram respondidas prontamente com a campanha de ataques massivos disparados pelo
gabinete do ódio bolsonarista. A reação agora beirou o silêncio. Nunca o temor
do impeachment foi tão presente no Planalto. Se faltam protestos de anônimos a
pé, a raiva e a indignação vêm das janelas com panelaços, das pesquisas com
queda de popularidade, das propagandas negativas com qualidade de publicidade
profissional que têm se multiplicado, conforme o consenso anti-Bolsonaro vai se
formando.
O
jogo mudou. Se não há ruas, há o fantasma da entrada em cena de Lula, o maior
adversário político, e dos maiores agentes econômicos, na carta aberta assinada
por próceres do PIB nacional, exigindo correções de rumo. O desembarque das
elites formadas por economistas, empresários e banqueiros é que acendeu o sinal
amarelo. Lira só apertará o botão atômico quando (quase) todo mundo estiver de
acordo.
O
apoio da oposição de esquerda, especialmente o PT, ao impeachment, contudo, não
é evidente. Eleitoralmente, deixar Bolsonaro sangrar até o ano que vem pode ser
mais producente do que ver o tabuleiro bagunçado novamente, com o surgimento ao
centro e à direita de uma alternativa mais competitiva que o bolsonarismo.
A
quem tem a esperança dessa terceira via falta o nome. A volta de Lula desanimou
a concorrência, sobretudo pela sua anunciada e astuta intenção de buscar
ex-aliados entre os partidos do Centrão. O apresentador Luciano Huck, por
exemplo, estaria hoje mais inclinado a se tornar o novo rei das tardes e noites
do domingo da TV Globo, no lugar de Faustão, do que se aventurar a uma
empreitada política de moer reputações. Dois políticos do Rio que estiveram
recentemente com Huck, segundo apurou a coluna, saíram com o sentimento de que
ele não será candidato. Como estabelece a lei, ou máxima, de Vanderlei
Luxemburgo: “O medo de perder tira a vontade de ganhar”.
Bolsonaro
tem vontade até demais de vencer, passando por cima de amigos, inimigos e, se
pudesse, da Constituição. Mas vai experimentando, cada vez mais, o medo. Foi
assim quando se abraçou ao Centrão, depois da prisão do amigo Fabrício Queiroz,
operador do esquema de “rachadinhas” do filho Flávio Bolsonaro, segundo
denúncia do MP fluminense. Foi assim quando se viu forçado a tirar Pazuello do
Ministério da Saúde, a usar máscaras e a criar um comitê de combate à covid -
um ano depois do início da pandemia.
A
essas pressões se juntam agora a cobrança pela exoneração do chanceler Ernesto
Araújo, a pedido de Lira, e do assessor internacional da Presidência, Filipe
Martins, ambos da ala mais ideológica e radical do bolsonarismo. A saída de
Martins é exigência do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que considerou
inaceitável o gesto racista e obsceno feito às suas costas pelo assessor,
enquanto falava numa sessão da Casa.
Antes
de qualquer impeachment, o Congresso reserva a Bolsonaro o papel que ele sempre
dizia temer como presidente: o de pulha.
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