sexta-feira, 26 de março de 2021

Angela Alonso* - Desgoverno


- Folha de S. Paulo

Brasil é assombrado pela dissolução do Estado nas suas franjas, pela perda de suas capacidades para organizar a vida social

Três minutos presidenciais, um para cada centena de milhar de mortos, respondidos por réquiem de panelas. Foi a trilha sonora da leitura de fatos alternativos no teleprompter, em bairros de classe média em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Brasília Goiânia, Florianópolis, Vitória, João Pessoa, Porto Alegre, Recife, Fortaleza, Natal, Salvador e até Curitiba.

Já na surdina, grupo anônimo de marqueteiros lançou vídeos didáticos, atacando primeiro pela economia —o Bolsocaro—, depois pela pandemia —o “otário”. Enquanto as panelas predominaram entre os “anti-Bozo” raiz, os filmetes miram recalcitrantes. São peças de conversão dos arrependidos.

Estes protestos solteiros ganharam companhia graúda. Artistas, intelectuais, movimentos sociais são useiros de manifestos. A novidade é a adesão à técnica dos que raramente se manifestam juntos de público porque têm acesso individual à antecâmara dos Três Poderes. Protesto do dinheiro e dos que sabem lidar com ele, que acenderia luz vermelha no Planalto, se lá houvesse juízo.

Com a manifestação de estratos médios e altos, faltaria só combinar com o famoso “Povo”, este ente imaginário. Por aí se diz que bastaria riscar o fósforo da rua para desencadear o impeachment. Acontece que ninguém ainda o riscou.

O motivo é duplo. A retórica dos oponentes é o “fique em casa”. Se o esforço tem sido desestimular aglomerações, como chamá-las? Não há passeata segura na pandemia.

De outro lado, a rua foi colonizada pelos crentes no kit cloroquina-ivermectina e na magia do Mito para resolver problemas que ele mesmo criou. É rua a favor. Quem tem bom senso, e, portanto, se opõe ao governo, teme a gripezinha. Daí que um chamado à manifestação pública pela oposição poderia sair pela culatra. Lula voltou em evento pequeno, sinalizando que não convocará massas para o matadouro que denuncia.

Se não tem passeata, tem o quê? Nas democracias representativas, a política costuma andar por três avenidas. Além das manifestações públicas nacionais organizadas por movimentos sociais, interditada pela Covid, há a do Parlamento, que poderia desencadear processo de impeachment, mas deputados e senadores seguem reticentes. A terceira via é o protesto localizado, com menos organização e mais desespero: quebra-quebras e saques. É típico das crises agudas, que sobrepõem carestia econômica e vácuo político.

Quem viveu os anos 1980 sabe como funciona. Os próprios cidadãos operam como Estado. Redistribuem renda, retirando comida de supermercado, gasolina de posto, roupa de loja, remédio de farmácia. Punem os estratos altos quebrando, queimando, destruindo.

Até esta aparente desorganização se organiza. Sem a mediação de movimentos e Parlamento e ao desamparo do governo, as milícias passam a gerir a extração de recursos, controlam bens, território e pessoas, via violência direta. Os cidadãos do piso da escada social ficam à mercê de forças paroquiais, que exercem o governo de fato, onde o de direito inexiste.

O Brasil está assombrado por este fantasma venezuelano. Não apenas pela desdemocratização, mas pela dissolução do Estado nas suas franjas, pela perda de suas capacidades para organizar a vida social. O governo é falimentar, porque delega obrigações aos governadores, enquanto os atrapalha, porque destrói a burocracia pública, indispensável para suprir necessidades coletivas, porque é visceralmente incompetente. É o governo da desagregação do Estado, literalmente um desgoverno.

*Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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