Valor Econômico
Cabe ao Executivo o papel de comandar o processo de ajuste fiscal, que exigirá medidas impopulares como desvincular aposentadorias e benefícios assistenciais do salário mínimo
O arcabouço fiscal deu sinais claros do seu esgotamento precoce nas últimas semanas. Primeiro, com as estimativas do projeto de Orçamento de 2026, escancarando como a expansão dos gastos obrigatórios, se não for enfrentada, vai comprimir fortemente as despesas discricionárias (como o custeio da máquina pública e o investimento) nos próximos anos. Depois, com o anúncio da elevação do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para levantar com urgência R$ 20,5 bilhões neste ano e R$ 41 bilhões no ano que vem, iniciativa que descontentou políticos, empresários e investidores. Líderes do Congresso e do governo combinaram de discutir a adoção de medidas estruturais para tratar do problema, como na reunião entre eles ocorrida ontem à noite. Iniciativas de curto prazo também devem fazer parte do pacote para substituir a alta do IOF.
Sem reduzir o ritmo de crescimento das
despesas obrigatórias, não será possível equilibrar as contas públicas, que
também podem melhorar com a diminuição do volume elevado de benefícios
tributários. A dúvida é se há de fato disposição do governo e do Congresso em
adotar medidas nessa direção, que não são populares. Algumas iniciativas
deverão ser tomadas desta vez, como alguns cortes de isenções tributárias e
aumento da taxação de bets, mas uma estratégia de consolidação fiscal mais
ampla tende a ficar para 2027, no primeiro ano do próximo governo.
A situação fiscal do país é complexa e o
problema não é só do Executivo - o Congresso e o Judiciário também têm
responsabilidade. Além disso, os gastos de Estados e municípios cresceram a um
ritmo bem mais forte que os da União nos últimos cinco anos, como mostrou
reportagem de Marta Watanabe sobre estudo de Manoel Pires e Bráulio Borges,
pesquisadores do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas
(FGV), publicada no Valor na
semana passada.
As emendas parlamentares, por exemplo,
tomaram uma dimensão enorme, alcançando a casa de R$ 50 bilhões neste ano. Além
dos problemas de transparência, é um valor muito alto por padrões
internacionais, respondendo por uma fatia expressiva das despesas discricionárias
de 2025, de R$ 210 bilhões. Esse volume excessivo de emendas parlamentares
torna o gasto público menos eficiente, ao pulverizar despesas, atrapalhando o
planejamento e levando ainda a um desequilíbrio entre os Poderes, ao
hipertrofiar o papel do Congresso.
Outro ponto é que os parlamentares muitas
vezes resistem a aprovar medidas de contenção de gastos que sejam impopulares.
No pacote fiscal apresentado no fim do ano passado pelo governo, constava o
aperto dos critérios de concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC,
voltado para idosos e pessoas com deficiência de baixa renda), item que não foi
aprovado pelos congressistas.
O Judiciário, por sua vez, tem gastos
excessivos. Em 2023, as despesas com tribunais de Justiça somaram 1,43% do PIB,
de acordo com um relatório do Tesouro. O documento mostra que, com base em
números de 2022, para os quais há uma comparação com 50 países, o Brasil gastou
1,3% do PIB com tribunais, atrás apenas do 1,6% de El Salvador e muito acima da
média das 50 nações, de 0,3% do PIB. Penduricalhos inflam os salários de muitos
integrantes do Judiciário.
Outro ponto é que as despesas não financeiras
de Estados e municípios cresceram a um ritmo muito superior às da União de 2019
a 2024, segundo estudo de Pires e Borges. Com o aumento das transferências do
governo federal nesse período, os gastos dos governos regionais superaram os da
União. Isso torna mais complexa a política fiscal e o seu impacto sobre a
política monetária. Em 2024, as despesas federais perderam força ao longo do
ano, o que não ocorreu com as de Estados e municípios.
Esses fatores mostram que uma mudança
estrutural das contas públicas depende da colaboração do Legislativo e do
Judiciário - e também da de Estados e municípios. Não é uma tarefa exclusiva da
União. No entanto, sem a convicção do governo federal de que é preciso adotar
medidas estruturais de ajuste das contas públicas, exercendo a liderança na
apresentação de iniciativas de consolidação fiscal, essa agenda, difícil de
implementar politicamente, não avançará. Cabe ao Executivo o papel de comandar
o processo, que exigirá medidas impopulares como desvincular aposentadorias e
benefícios assistenciais do salário mínimo.
Um número divulgado pela Instituição Fiscal
Independente (IFI) no fim de maio evidencia o problema das contas públicas do
país - o resultado fiscal estrutural. Em 2024, o governo central teve um
déficit primário (não inclui gastos com juros) de 0,4% do PIB, uma melhora
considerável em relação ao rombo de 2,4% do PIB de 2023. Já o resultado
estrutural, que exclui os efeitos do ciclo econômico e receitas e despesas não
recorrentes, apontou uma piora, segundo cálculos da IFI. Por essa métrica, o
governo central teve um déficit de 1,7% do PIB em 2024, um buraco um pouco
maior que o 1,4% do PIB de 2023. Vários fatores atípicos, especialmente pelo
lado das receitas, influenciaram os números de 2024, que são excluídos do
indicador estrutural, diz relatório da IFI. É um sinal de que as contas
públicas dependem especialmente de medidas extraordinárias de arrecadação.
Ainda que não seja explosiva no curto prazo, a situação fiscal não é
sustentável.
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