segunda-feira, 9 de junho de 2025

Ajuste fiscal estrutural só virá quando contrariar - Bruno Carazza

Valor Econômico

Presidentes da Câmara e do Senado exigem um ajuste fiscal permanente, mas ele só virá se estiverem dispostos a desagradar interesses poderosos

Na semana passada completaram-se vinte anos da eclosão do escândalo do Mensalão. Nas diversas matérias que relembram o esquema de compra de votos no primeiro mandato de Lula, justo destaque foi dado ao célebre furo de reportagem obtido pela jornalista Renata Lo Prete, que extraiu do ex-deputado Roberto Jefferson as declarações que desencadearam as investigações.

Numa conversa que teve com a colega Carol Pires para o episódio “Remake Impossível” do podcast Rádio Novelo Apresenta, Lo Prete repetiu uma frase que se ouvia na redação da Folha de S.Paulo, onde ela trabalhava à época: “do interesse contrariado nasce a notícia”.

A máxima, digna de ser inscrita nos manuais do jornalismo investigativo, além de revelar um dos métodos de trabalho da atual apresentadora do Jornal da Globo, pode muito bem ser adaptada ao último impasse econômico brasileiro. Nossas lideranças políticas e empresariais ainda não perceberam que é do interesse contrariado que nasce o ajuste fiscal permanente.

Desde que foi institucionalizado na Inglaterra como um instrumento para conter o poder absoluto dos monarcas em criar tributos, o orçamento público é o fórum de debates para definir as prioridades dos países. Ao exigir equilíbrio entre receitas e despesas, as Constituições travam a sanha arrecadatória do governo e forçam o Congresso escolher onde é melhor gastar o dinheiro público.

No Brasil fugimos dessa discussão fundamental por dois canais principais, ampliados nas últimas décadas: de um lado, grandes empresas e as classes mais altas obtêm isenções e benefícios tributários para si, enquanto se tornou obrigatória a aplicação de montantes cada vez maiores de recursos em políticas voltadas em geral para os mais pobres (saúde, educação, previdência e assistência social).

Desde 2014 essa conta não fecha, e as tentativas recentes de equilibrar receitas e despesas fracassaram. O teto de gastos sucumbiu diante das inúmeras pressões eleitoreiras pós-pandemia - as PECs dos Precatórios e Kamikaze, com Bolsonaro, e da Transição, depois da vitória de Lula.

Mais recentemente, ao alertar no projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias que o orçamento será inteiramente consumido por despesas obrigatórias a partir de 2027, o governo admitiu que o arcabouço fiscal fracassará se nada for feito até lá.

Haddad até tentou empurrar o problema para o futuro com o aumento do IOF, mas a reação política e do mercado foi forte. Parece que, agora, governo e parlamentares terão que desagradar a interesses para evitar o colapso fiscal.

Vivemos tempos estranhos. A solução que normalmente se busca em momentos como esse - comprimir os gastos sociais - está encontrando resistências. Tanto a esquerda quanto o Centrão temem mexer nas despesas obrigatórias que atendem os mais pobres. Rever as transferências do Fundeb para Estados e municípios, tirar a indexação de benefícios assistenciais ao salário-mínimo e desvincular os pisos de despesas com saúde e educação à arrecadação são opções eleitoralmente sensíveis com 2026 à espreita.

Diante do impasse, tem-se mencionado com frequência incomum no Congresso a necessidade de se cortar benefícios fiscais. De fato, o volume de isenções e renúncias tributárias (chamamos tecnicamente de “gastos tributários”) subiu de 2,8% do PIB em 2006 para uma estimativa de 4,7% do PIB neste ano. E esse montante pode ser ainda maior, conforme indicado pela Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades (Dirbi) que agora as empresas são obrigadas a apresentar à Receita.

Para piorar, a maioria desses programas tributários especiais é concedida sem critério. Em estudo que preparei para a iniciativa Imagine Brasil, da Fundação Dom Cabral, analisei as regras de 73 benefícios tributários em vigor de 2019 a 2024 para diversos setores da economia, do agro à indústria automobilística.

A frouxidão é gritante: 61,4% dos incentivos não tinham prazo para acabar, 65,8% sequer tinham atribuição de um órgão para fiscalizar o uso do benefício e 80,8% não exigiam nenhuma contrapartida - seja de geração de emprego, investimentos ou exportações. Ou seja, a União abre mão de centenas de bilhões de reais todos os anos, e as empresas não oferecem nada em troca.

Não é de hoje que o tema das renúncias e isenções preocupa. Em 2021, o próprio Congresso Nacional determinou, com a Emenda Constitucional nº 109, que o montante dos gastos tributários fosse reduzido a uma taxa de 10% ao ano, até chegar ao patamar de 2% do PIB em 2029.

Para ajudar nesse processo, o governo criou o Conselho de Monitoramento de Avaliação de Políticas Públicas (Cmap), que desde 2020 já enviou para deputados e senadores propostas de ajustes em mais de 50 programas de benefícios. Ou seja, o Congresso está descumprindo uma regra que ele próprio impôs, mesmo tendo à sua disposição indicações sobre quais programas funcionam (poucos) e são ineficientes (quase todos).

Para o ajuste fiscal estrutural, portanto, só falta os presidentes Hugo Motta e Davi Alcolumbre, em acordo com Lula, definirem a quais interesses eles vão desagradar.

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