Valor Econômico
Presidentes da Câmara e do Senado exigem um
ajuste fiscal permanente, mas ele só virá se estiverem dispostos a desagradar
interesses poderosos
Na semana passada completaram-se vinte anos
da eclosão do escândalo do Mensalão. Nas diversas matérias que relembram o
esquema de compra de votos no primeiro mandato de Lula, justo destaque foi dado
ao célebre furo de reportagem obtido pela jornalista Renata Lo Prete, que
extraiu do ex-deputado Roberto Jefferson as declarações que desencadearam as
investigações.
Numa conversa que teve com a colega Carol Pires para o episódio “Remake Impossível” do podcast Rádio Novelo Apresenta, Lo Prete repetiu uma frase que se ouvia na redação da Folha de S.Paulo, onde ela trabalhava à época: “do interesse contrariado nasce a notícia”.
A máxima, digna de ser inscrita nos manuais
do jornalismo investigativo, além de revelar um dos métodos de trabalho da
atual apresentadora do Jornal da Globo, pode muito bem ser adaptada ao último
impasse econômico brasileiro. Nossas lideranças políticas e empresariais ainda
não perceberam que é do interesse contrariado que nasce o ajuste fiscal
permanente.
Desde que foi institucionalizado na
Inglaterra como um instrumento para conter o poder absoluto dos monarcas em
criar tributos, o orçamento público é o fórum de debates para definir as
prioridades dos países. Ao exigir equilíbrio entre receitas e despesas, as
Constituições travam a sanha arrecadatória do governo e forçam o Congresso
escolher onde é melhor gastar o dinheiro público.
No Brasil fugimos dessa discussão fundamental
por dois canais principais, ampliados nas últimas décadas: de um lado, grandes
empresas e as classes mais altas obtêm isenções e benefícios tributários para
si, enquanto se tornou obrigatória a aplicação de montantes cada vez maiores de
recursos em políticas voltadas em geral para os mais pobres (saúde, educação,
previdência e assistência social).
Desde 2014 essa conta não fecha, e as
tentativas recentes de equilibrar receitas e despesas fracassaram. O teto de
gastos sucumbiu diante das inúmeras pressões eleitoreiras pós-pandemia - as
PECs dos Precatórios e Kamikaze, com Bolsonaro, e da Transição, depois da
vitória de Lula.
Mais recentemente, ao alertar no projeto de
Lei de Diretrizes Orçamentárias que o orçamento será inteiramente consumido por
despesas obrigatórias a partir de 2027, o governo admitiu que o arcabouço
fiscal fracassará se nada for feito até lá.
Haddad até tentou empurrar o problema para o
futuro com o aumento do IOF, mas a reação política e do mercado foi forte.
Parece que, agora, governo e parlamentares terão que desagradar a interesses
para evitar o colapso fiscal.
Vivemos tempos estranhos. A solução que
normalmente se busca em momentos como esse - comprimir os gastos sociais - está
encontrando resistências. Tanto a esquerda quanto o Centrão temem mexer nas
despesas obrigatórias que atendem os mais pobres. Rever as transferências do
Fundeb para Estados e municípios, tirar a indexação de benefícios assistenciais
ao salário-mínimo e desvincular os pisos de despesas com saúde e educação à
arrecadação são opções eleitoralmente sensíveis com 2026 à espreita.
Diante do impasse, tem-se mencionado com
frequência incomum no Congresso a necessidade de se cortar benefícios fiscais.
De fato, o volume de isenções e renúncias tributárias (chamamos tecnicamente de
“gastos tributários”) subiu de 2,8% do PIB em 2006 para uma estimativa de 4,7%
do PIB neste ano. E esse montante pode ser ainda maior, conforme indicado pela
Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades (Dirbi) que agora
as empresas são obrigadas a apresentar à Receita.
Para piorar, a maioria desses programas
tributários especiais é concedida sem critério. Em estudo que preparei para a
iniciativa Imagine Brasil, da Fundação Dom Cabral, analisei as regras de 73
benefícios tributários em vigor de 2019 a 2024 para diversos setores da
economia, do agro à indústria automobilística.
A frouxidão é gritante: 61,4% dos incentivos
não tinham prazo para acabar, 65,8% sequer tinham atribuição de um órgão para
fiscalizar o uso do benefício e 80,8% não exigiam nenhuma contrapartida - seja
de geração de emprego, investimentos ou exportações. Ou seja, a União abre mão
de centenas de bilhões de reais todos os anos, e as empresas não oferecem nada
em troca.
Não é de hoje que o tema das renúncias e
isenções preocupa. Em 2021, o próprio Congresso Nacional determinou, com a
Emenda Constitucional nº 109, que o montante dos gastos tributários fosse
reduzido a uma taxa de 10% ao ano, até chegar ao patamar de 2% do PIB em 2029.
Para ajudar nesse processo, o governo criou o
Conselho de Monitoramento de Avaliação de Políticas Públicas (Cmap), que desde
2020 já enviou para deputados e senadores propostas de ajustes em mais de 50
programas de benefícios. Ou seja, o Congresso está descumprindo uma regra que
ele próprio impôs, mesmo tendo à sua disposição indicações sobre quais
programas funcionam (poucos) e são ineficientes (quase todos).
Para o ajuste fiscal estrutural, portanto, só falta os presidentes Hugo Motta e Davi Alcolumbre, em acordo com Lula, definirem a quais interesses eles vão desagradar.
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