segunda-feira, 9 de junho de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Resultados tímidos tornam necessária revisão do Fies

O Globo

Candidatos a crédito educativo caíram de 1,1 milhão para 167 mil — e inadimplência chega a 62%

O Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) tem sido assunto permanente na agenda de problemas do Ministério da Educação. Criado em 2001, no governo Fernando Henrique Cardoso, para substituir o Crédito Educativo, o sistema de financiamento a alunos que cursam universidades privadas registra índice de inadimplência de 62% — o dobro dos 31% alcançados em 2014. Enquanto 1,1 milhão de estudantes se candidataram ao empréstimo em 2016, no ano passado foram apenas 167 mil. Em mais de duas décadas, o Fies tem sido vítima de mudanças de regras com objetivos políticos, depois corrigidas por normas que o afastaram do público-alvo, o estudante de baixa renda. Diante de resultados tão tímidos, é forçoso reconhecer que ele precisa de correção de rumo.

O Fies se inspira em sistemas de financiamento a estudantes existentes em vários países. Os formados pagam a dívida que contraíram, e os recursos são destinados a financiar a faculdade de novos alunos. Com inadimplência tão alta — graças ao incentivo a não pagar parcelas em dia, criado por sucessivos perdões às dívidas estudantis —, tal modelo não tem como funcionar.

O auge das facilidades oferecidas pelo Fies ocorreu no governo Dilma Rousseff, quando o risco de inadimplência foi repassado à União. De 2011 a 2016, o Fies liberou R$ 61,9 bilhões em empréstimos, crescimento em torno de 1.000%. Na época, o custo fiscal anual do programa para o governo atingia 0,5% do PIB. Houve casos de universidades privadas, atraídas pelo dinheiro fácil, cobrando mensalidades mais elevadas de estudantes do Fies, pois sabiam que o pagamento era garantido pelo governo. O risco nos empréstimos é baixo, porque eles estão sob a proteção do seguro do fundo do crédito educativo (FGEDUC).

À liberalidade reinante na gestão Dilma, seguiram-se medidas de ajuste no governo Michel Temer. Acabou o financiamento a 100% das mensalidades. Os alunos passaram a ter de pagar pelo menos 30% das parcelas. Pouco mais de 90% dos inscritos no Fies têm renda de até um salário mínimo e meio mensal (R$ 2.277) e, em razão da regra, precisam pagar uma mensalidade que gira em média em torno de R$ 400. Está aí a razão mais apontada para a evasão e menor procura pelo programa. “A gente tem monitorado a inscrição do aluno, e podemos notar que ele desiste quando vê os valores com que precisa arcar todo mês”, diz Adilson Santana de Carvalho, diretor de Políticas e Programas de Educação Superior da Secretaria de Educação Superior do MEC. “O que havia em 2014 era insustentável, pelo menos do ponto de vista financeiro. Mas talvez as reformas tenham errado a mão.”

Entre as alternativas aventadas pelo MEC está condicionar a cobrança da dívida à renda do formando. Se ele tiver sucesso no mercado de trabalho, pagará o Fies em menor tempo. Caso contrário, receberá desconto ou até perdão da dívida. Tais regras constam da lei que reformou o Fies em 2017, mas jamais foram adotadas. Outra alternativa, mais sensata, seria mudar o foco do programa: o Fies ficaria restrito a quem tem renda acima de três salários (R$ 4.554), e aos de renda mais baixa seriam destinadas bolsas de estudos integrais oferecidas pelo Programa Universidade para Todos (Prouni). É essencial levar em consideração que a conta de subsídios do Tesouro é alta. E também que o critério do mérito não pode ser desprezado na concessão das bolsas.

Proposta para Novo Código Civil consolida avanço no Direito familiar

O Globo

Reconhecimento a casamentos do mesmo sexo e a divórcios fora da Justiça representa progresso

A principal transformação trazida pelo Novo Código Civil, em tramitação no Congresso, está no Direito de Família, responsável por estabelecer parâmetros para casamentos, uniões estáveis, partilha de bens e divórcios. O texto consolida diversos avanços, adequando a lei a práticas consagradas.

Uma delas é o reconhecimento à união entre casais do mesmo sexo, referendada pelo Supremo Tribunal Federal desde 2011 e regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça em 2013. Também representa um passo adiante a possibilidade legal de pais em separação resolverem o pagamento de pensões e a guarda de filhos menores de 18 anos sem apelar à Justiça. “Se aprovada a reforma, quando houver consenso entre as partes, um divórcio com filhos poderá ser gerido 100% de forma extrajudicial”, afirma Rose Meireles, professora de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

O cartório em que for registrada a separação notificará o Ministério Público, para que possa atuar em defesa dos menores de idade caso necessário. Como grande parte das separações é consensual, o aperfeiçoamento reduzirá o número de processos nas Varas de Família. “O ideal é que o Judiciário fique somente com as demandas que as partes não conseguem resolver por si mesmas”, diz Rose Meireles.

Pela versão do Novo Código Civil que tramita no Senado, também será autorizado o divórcio extrajudicial unilateral, situação em que um cônjuge está em local desconhecido e precisa ser notificado. Se aprovada, a lei estabelecerá que a ausência deliberada de uma parte não poderá impedir o divórcio. Outro avanço será a revogação da obrigatoriedade do regime de separação de bens no casamento de maiores de 70 anos. O aumento da expectativa de vida justifica o ajuste.

As principais controvérsias que cercam a nova lei estão nos artigos relativos à herança. Um dos pontos criticados é a retirada do cônjuge da condição de “herdeiro necessário”, com direito garantido a parte do patrimônio. O atual Código Civil coloca nessa condição filhos, netos, pais, avós, marido e mulher. A proposta no Congresso retira os cônjuges dessa posição. A alteração costuma ser justificada sob o argumento de que a inclusão do cônjuge como “herdeiro necessário” criou problemas. “Principalmente em razão das mudanças verificadas nas novas concepções de família”, diz o desembargador Mairan Gonçalves Maia Júnior.

Para Rose Meireles, não deveria haver mudança, e a renúncia à condição de herdeiro deveria ser feita em “pacto antenupcial”. “Há uma questão de gênero muito forte”, diz ela. “A parte mais fragilizada, a mulher, ficará sem herança.” Também há críticas ao uso do termo “remanescentes da família parental” para designar quem poderá morar em imóvel deixado de herança. Maia Júnior considera a definição vaga.

O Congresso deve fazer os devidos ajustes e garantir que o projeto seja aprovado com todos os avanços. É preciso também que Câmara e Senado façam a maior divulgação possível de proposta tão sensível para a população.

É preciso se preparar para a revolução da IA no trabalho

Valor Econômico

Ao contrário da maioria das inovações no passado, a penetração da IA ameaça empregos mais especializados e bem pagos

Há sinais crescentes de que a inteligência artificial (IA) está começando a afetar de maneira importante o mercado de trabalho. Nas últimas semanas, houve vários anúncios de cortes e congelamento de vagas relacionados à adoção mais intensa de IA por empresas. O tema, no entanto, tem ganhado pouco destaque no debate público, tanto no Brasil como no exterior, apesar dos alertas de especialistas e de executivos do setor. Já passou da hora de a sociedade começar a discutir o que pode ser feito no caso de essa nova tecnologia causar uma disrupção no emprego.

O fundador e CEO da Meta, Mark Zuckerberg, previu que já em 2025 as empresas começariam a substituir programadores e engenheiros de nível médio por IA. Em seguida, a Meta anunciou o corte de 5% de sua força de trabalho, ou 3.600 funcionários. Em maio, a Microsoft anunciou nos EUA o corte de 6.000 funcionários. Algumas empresas citam explicitamente a IA como causa de demissão, como fez a americana CrowdStrike, da área de cibersegurança, que demitiu 5% de seus empregados em maio. Outras mencionam a IA, mas isso fica subentendido. Foi o caso da varejista Walmart, que dispensou 1.500 funcionários nos EUA, quase todos da área de tecnologia e suporte. O fundo soberano da Noruega informou que vai congelar a abertura de vagas na área de análise financeira.

Ao longo da história, revoluções tecnológicas sempre ensejaram previsões alarmistas de que a substituição de trabalhadores por máquinas causaria desemprego em massa. Houve sim, perda de empregos em certos setores. Mas novas atividades, indústrias e empregos acabaram surgindo em função dessas novas tecnologias e da riqueza que elas geravam, o que mais do que compensou as vagas perdidas.

Muitos executivos, tanto do setor de IA como de áreas que podem ter uso intensivo de IA, acreditam que esse roteiro tradicional se repetirá. Mas e se agora for diferente? E se realmente as previsões mais pessimistas desta vez se confirmarem? E se a transição for tão rápida a ponto de gerar um desequilíbrio de longo prazo no mercado de trabalho?

“O câncer será curado, a economia vai crescer 10% ao ano, o orçamento público será equilibrado, e 20% das pessoas não terão empregos [devido à IA]”. Dario Amodei, CEO da Anthropic, empresa criadora de IA, formulou esse cenário como muito plausível (site Axios, 28/05). Segundo ele, a IA poderá eliminar em um a cinco anos metade das vagas de colarinho branco que seriam normalmente abertas para recém-formados.

Ao contrário da maioria das inovações no passado, a penetração da IA ameaça empregos mais especializados e bem pagos. Além das áreas de tecnologia, muitas atividades em direito, medicina, mercado financeiro e funções administrativas poderão ser realizadas por IA a um custo incrivelmente menor. Segundo Amodei, os CEOs já perceberam isso e estão acelerando a introdução de IA nas empresas.

Ao mesmo tempo, as empresas de IA estão numa intensa disputa para sofisticar cada vez mais seus modelos, o que, por sua vez, permitirá a substituição de humanos em mais atividades. Empresas e países temem ficar para trás e buscam avançar o mais rapidamente possível, sem considerar o impacto no mercado de trabalho.

Estudo da LCA 4Intelligence divulgado nesta semana (Valor, 03/06) indicou que a IA tem o potencial de afetar 31,3 milhões de empregos no Brasil, sendo que 5,5 milhões enfrentam um risco maior de serem eliminados.

Um aumento repentino e significativo de desemprego devido à IA teria profundas consequências sociais e políticas. Tenderia, por exemplo, a agravar ainda mais a desigualdade de renda, pois elevaria a remuneração do capital e achataria a massa salarial. Isso geraria insatisfação e tensão sociais, que poderiam ser canalizados para movimentos populistas e extremistas, o que seria um risco para as democracias.

Uns poucos países começaram a adotar iniciativas para se preparar para uma possível reviravolta no mercado de trabalho. O governo de Cingapura criou o SkillsFuture, um programa que visa a capacitar as pessoas a usar a IA e a treiná-las para atividades que serão mais exigidas na transição econômica. No Canadá, a Pan-Canadian AI Strategy busca não só estimular a adoção de IA de forma responsável, como também treinar trabalhadores e pequenos empreendedores a usar a IA. A Alemanha tem programa similar.

Essas iniciativas sugerem que a requalificação e a educação contínuas terão um papel vital em qualquer estratégia de combate ao desemprego gerado pela IA. Possivelmente será inevitável reforçar a rede de assistência social. Isso tudo terá um custo. Parte dele, segundo Amodei, deveria ser coberta por novos impostos que recairiam sobre empresas de IA, empresas que mais se beneficiam da IA e pessoas que enriqueceram com a IA, os ganhadores dessa revolução tecnológica.

Mas as mudanças com a revolução da IA estão acontecendo rapidamente e parecem inevitáveis. Não é possível ignorá-las por mais tempo. E o primeiro passo é envolver trabalhadores, empresas, políticos e governos num debate franco e transparente sobre os riscos e as alternativas para mitigá-los.

Sem privatizar, governo Lula afunda os Correios

Folha de S. Paulo

Retirada do plano de desestatização, estatal tem prejuízo de R$ 1,7 bi no primeiro trimestre, depois de R$ 2,6 bi em 2024

Acontece nos Correios o que era previsível desde que o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afastou a possibilidade de privatização da empresa —aumento acelerado dos rombos financeiros e dos riscos de apagão operacional.

Só no primeiro trimestre deste 2025, a estatal registrou um prejuízo alarmante de R$ 1,7 bilhão, mais que o dobro do apurado no mesmo período do ano passado. Isso depois de fechar 2024 com R$ 2,6 bilhões no vermelho.

A degradação dos balanços aparece tanto na menor geração de receitas como no aumento de custos —especialmente folha de pagamento de pessoal.

Parte da queda de 12% nas vendas de produtos e serviços, para R$ 3,9 bilhões, pode ser atribuída ao menor volume de encomendas internacionais de pequeno valor, agora mais tributadas.

O cerne do problema, entretanto, está na incapacidade de competir com empresas privadas que investem dezenas de bilhões de reais em tecnologia, robotização e eficiência logística.

A promessa de criação de um marketplace próprio e da expansão para novos mercados, como banco digital, soam como delírios diante da insuficiência de recursos financeiros e administrativos, dadas as travas e os vícios do regimento estatal.

Quanto às despesas, também observa-se o padrão petista. Salários e encargos aumentaram 8,7%, para R$ 2,7 bilhões no período, impulsionados por reajustes, gratificações e benefícios previstos em acordo coletivo.

É óbvia a gestão leniente, incapaz de conter o inchaço do quadro de pessoal. A promessa de economizar R$ 1,5 bilhão com novo programa de demissões voluntárias é tardia e insuficiente.

Desde o primeiro dia de mandato, ao retirar a estatal do Programa Nacional de Desestatização (PND), Lula apenas ratificou sua obsolescência ideológica.

É perfeitamente possível manter a natureza pública dos serviços postais com a necessária inserção privada num mercado competitivo e intensivo em capital. Baseado em experiencias internacionais bem sucedidas, o plano de privatização abandonado pelo petista buscava exatamente essa combinação positiva.

Ademais, a universalização do serviço postal, embora relevante, não justifica prejuízos bilionários que oneram o contribuinte.

Em nota explicativa do último balanço, a direção argumenta que 90% dos custos diretos do manejo dos volumes postais diz respeito ao cumprimento da obrigação de universalização, numa aparente tentativa de justificar os prejuízos —mas que apenas releva o amplo escopo para melhoria operacional.

O governo Lula, ao priorizar o controle político sobre a racionalidade econômica, perpetua um ciclo de déficit financeiro e caos administrativo que degrada cada vez mais o patrimônio público. A privatização não é apenas uma opção nesse caso; é uma necessidade urgente para salvar os Correios do colapso.

Censo relembra como a demografia religiosa muda

Folha de S. Paulo

IBGE indica desaceleração do crescimento de evangélicos, que são 26,9% da população; imaginava-se que já seriam um terço

Censo 2022 trouxe uma surpresa para quem acompanha a evolução dos segmentos religiosos no Brasil: houve uma desaceleração no ritmo de crescimento dos evangélicos, o que já levou especialistas no tema a rever suas projeções para as próximas décadas.

Imaginava-se que, a esta altura do século 21, os brasileiros que professam alguma fé evangélica teriam alcançado cerca de um terço do país —hipótese razoável quando se considera que o contingente era de 6,5% em 1980 e saltou para 21,6% em 2010. Mas não foi o que aconteceu.

De acordo com os dados que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) acaba de divulgar, os evangélicos são 26,9% da população. Constituem, assim, o segundo maior bloco religioso, atrás dos católicos, que montam a 56,7%. Ambos os grupos ficam muito à frente de espíritas (1,8%) e de praticantes da umbanda e do candomblé (1%).

Mas há uma imprecisão no recorte. O "bloco" não deve ser entendido como um grupo homogêneo de pessoas que manifestam a religiosidade da mesma maneira.

Sabe-se há bastante tempo que, entre os católicos, a fé se expressa de modos muitos distintos, a ponto de ser conhecida a figura do "católico não praticante". Entre os evangélicos, a existência de inúmeras denominações talvez seja a evidência mais óbvia contra interpretações monolíticas.

Uma pesquisa do Datafolha em junho de 2024 captou bem essa diversidade. Depois de ouvir eleitores paulistanos que se declaram evangélicos, o instituto identificou divergências expressivas entre a opinião dos entrevistados e algumas pautas que o bolsonarismo defende para supostamente contentar esse público.

Mas isso não significa que inexista uma aproximação, e é natural que Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados procurem explorá-la eleitoralmente. Até porque outra pesquisa do Datafolha, esta de 2022, mostrou que 49% dos brasileiros dizem dar muita importância à religião ou à fé do candidato na hora de definir o voto.

Cientes disso, faz tempo que políticos de todos os partidos se lançam em romarias nas eleições. Visitas desse tipo costumam proporcionar gafes e cenas de hipocrisia explícita, mas, como regra, fazem parte do jogo democrático.

O que não se pode aceitar é que a laicidade do Estado seja questionada. Os cidadãos têm o direito de escolher sua crença, e o poder público tem o dever de respeitar todas elas, pouca importa o tamanho que alcancem. Como o Censo mostra, a demografia muda, e um grupo majoritário hoje pode ser minoritário amanhã.

PT não sabe o que fazer sem Lula

O Estado de S. Paulo

Lamento de Gleisi, para quem, ‘infelizmente, Lula tem de ser candidato’, expõe impasse da esquerda, encurralada entre o passado e o risco de ser irrelevante por falta de novas ideias

A esquerda brasileira está encurralada entre o passado e o risco de se tornar irrelevante, dada sua profunda dependência da reeleição do presidente Lula da Silva para continuar no poder. Em recente entrevista ao programa Conversa com Bial, a ministra de Relações Institucionais e ex-presidente do PT, Gleisi Hoffmann, reconheceu, sem disfarçar um certo tom de lamento, que, “infelizmente, Lula terá de ser candidato” em 2026. Segundo ela, seu partido e a esquerda até “têm quadros políticos”, mas nenhum com “pegada popular” nem tampouco força eleitoral para “fazer disputa e ganhar da extrema direita” na próxima eleição presidencial.

É de reconhecer que a ministra está certa em um ponto. De fato, sem o nome de Lula nas urnas, um candidato que sempre será competitivo – e ainda mais com a força de incumbente movendo a máquina pública federal a seu favor –, não apenas o PT como a esquerda em geral amargarão anos a fio, é possível inferir, sem ter uma perspectiva de poder em âmbito nacional. Basta lembrar quão difícil foi até para Lula derrotar Jair Bolsonaro, um dos piores presidentes da Nova República, na eleição passada. Gleisi, no entanto, omitiu um fato e distorceu outro em sua análise da conjuntura política de seu campo ideológico.

Se o destino da esquerda, para o bem ou para o mal, é profundamente atrelado ao destino de Lula, e não de hoje, a responsabilidade por essa dependência é exclusivamente do presidente. Lula sempre sabotou qualquer movimento de renovação tanto no PT quanto no chamado “campo progressista” – seja o arejamento de lideranças, seja de ideias. Todos os que ousaram, ainda que timidamente, projetar sombra sobre Lula foram logo abatidos no nascedouro, restando ao incauto o culto à personalidade do demiurgo e/ou a posição de “poste” acaso desejasse ter alguma projeção política. Aí estão os exemplos de Dilma Rousseff e Fernando Haddad para desencorajar qualquer um que queira pôr à prova a lulodependência da esquerda.

Outra malandragem de Gleisi foi omitir que a razão para a esquerda “até ter quadros políticos”, mas nenhum deles ser eleitoralmente competitivo, é o fato de a esquerda não ter um projeto para o País, e sim, se tanto, um projeto para aferrar Lula ao poder sabe-se lá até quando. A esquerda brasileira é atrasada. Não enxerga nem o Brasil nem o mundo pelas lentes do século 21. Há uma profusão de análises e pesquisas, na imprensa profissional e na academia, demonstrando a desconexão que se estabeleceu entre a esquerda, em suas múltiplas derivações, e o eleitorado que, historicamente, sempre apoiou seus candidatos. O exemplo mais notório dessa desconexão, claro, é o próprio Lula, que, malgrado estar em seu terceiro mandato presidencial, é recalcitrante em reconhecer erros e se mostra incapaz de oferecer à sociedade um mero esboço de plano coerente, exequível e sustentável para o desenvolvimento do País.

Diante desse deserto propositivo, não resta alternativa a Lula, em particular, e à esquerda, em geral, a não ser apelar para essa suposta ameaça de retorno do que chamam de “extrema direita” à Presidência da República. Foi exatamente o que Gleisi vocalizou na entrevista, antecipando o tom da campanha eleitoral de Lula ou de quem ele ungir em 2026. Qualquer adversário do PT no ano que vem será invariavelmente tratado como o representante das forças do atraso, do golpismo e “das elites” – tudo isso empacotado como “extrema direita”.

Ocorre que o verdadeiro representante da extrema direita, Bolsonaro, está inelegível. Logo, não representa mais ameaça alguma à ordem democrática. A rigor, não é improvável que ao tempo da eleição o ex-presidente esteja preso por ordem do Supremo Tribunal Federal. Assim, será muito difícil formar uma nova “frente ampla” em torno da candidatura petista sob a bandeira da “defesa da democracia”, que, como é notório, prevaleceu sobre seus inimigos.

Sem a retórica do medo, quase nada sobra para uma esquerda anacrônica e incapaz de inspirar esperança para a maioria dos brasileiros. E sem propostas concretas para lidar com os reais problemas do País, resta-lhe o risco de desaparecer como força de transformação social, reduzida a um grupo fechado em torno de Lula e de um discurso vazio de sentido.

A destruição da História

O Estado de S. Paulo

Tentando mostrar que é digno de herdar os votos de Bolsonaro, o governador de Minas questiona a natureza ditatorial do regime militar, espelhando a mentalidade da extrema direita

Antes, durante e depois de seu mandato presidencial, Jair Bolsonaro não só jamais deixou de manifestar o espírito golpista que orientou sua trajetória, como também tratou de cultuar, sempre que pôde, aquilo que mais o inspirou como mau militar e mau presidente da República que foi: a ditadura militar brasileira. Inspirada na eterna ameaça comunista, fantasia que formou a geração do capitão reformado e dos generais que gravitaram ao seu redor na Presidência, a mentalidade bolsonarista promoveu heresias históricas as mais diversas: enalteceu notórios torturadores, elogiou o AI-5 (ato institucional com o qual o regime de exceção assumiu sua face mais autoritária) e determinou a comemoração apologética do golpe militar de 1964 – como se pudesse ser objeto de festejo um período em que o Brasil ficou sem eleições diretas para presidente e conviveu com cassações arbitrárias, censura prévia sobre a imprensa e as artes e prisões e tortura de adversários do regime.

Ocorre que agora, com Bolsonaro inelegível e prestes a ser julgado pela trama golpista de 2022, não são poucos os políticos que, dispostos a herdar seus votos, lambem-lhe as botas e participam de sua empreitada liberticida, que inclui reescrever a História para fazê-la caber no discurso bolsonarista. Há poucos dias, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, declarou à Folha de S.Paulo que a existência da ditadura militar é “uma questão de interpretação”. Prometendo indulto ao padrinho político caso seja presidente, Zema lançou a dúvida: “Não foram concedidos indultos a assassinos e sequestradores aqui, durante o que eles chamam de ditadura?”. Para o governador, decidir se houve ou não uma ditadura em 1964 é papel de historiadores, e não de um presidenciável.

Zema não merecia que dele se escrevesse uma única linha, ainda mais porque História e cultura nunca foram seu forte mesmo – basta lembrar que, numa entrevista a um podcast de Divinópolis, cidade natal da poeta Adélia Prado, uma das mais importantes de Minas, o indigitado perguntou: “Ela trabalha aqui?”. Mas sua declaração sobre a ditadura militar serve para mostrar até que ponto os bolsonaristas se dispõem a ir, mesmo aqueles que gostariam de ser vistos como “moderados”, caso de Zema. E também serve para provar que o bolsonarismo, como qualquer movimento de vocação ditatorial, deseja fazer da História um de seus campos de batalha preferidos.

Negar o caráter ditatorial do regime de exceção iniciado com o golpe militar de 1964 é um evidente desrespeito à História, às vítimas da ditadura e ao bom senso. O que aconteceu em 31 de março de 1964 foi um golpe, em 1968 deu-se “um golpe dentro do golpe” e até 1985 vivemos numa ditadura. Pode-se discutir a natureza daquela ditadura, reavaliar fatos históricos à luz de novas evidências ou interpretações, revisitar o grau e a intensidade da repressão, modular os diferentes momentos de arbítrio, separando, por exemplo, o que foram os dez anos sob o instituto do AI-5, momento mais agudo do cerceamento das liberdades civis e dos direitos individuais, e o que foram outros períodos de distensão, como o vigente entre 1979 e 1985. Mas não é objeto de dúvida, nem de historiadores nem de qualquer democrata, decidir se naquele regime lidamos com censura à imprensa, cassações em massa, fechamento do Congresso e restrições eleitorais.

O mais grave, contudo, é saber que Zema não está só. É parte da guerra cultural bolsonarista forjar inimigos, definir o Brasil como corrompido por uma “falsa democracia” e manter as massas digitais mobilizadas e a militância mais extremista em constante excitação. É a arquitetura da destruição, marca d’água do bolsonarismo: quando o passado é desmontado e tudo passa a ser discutível – se a Terra é redonda, se a vacina salva ou mata ou se o regime de 1964 foi ou não uma ditadura – abrem-se as portas para o autoritarismo. Afinal, este é o sonho das mentes autoritárias, à direita ou à esquerda: reescrever a História e estabelecer o que é verdade ou não. O extremismo e o autoritarismo se alimentam da instabilidade – institucional, política e histórica – para se apropriar do passado e redesenhar o futuro a seu favor. Mas não é obra de engenharia, e sim de demolição.

Justiça sem juízo

O Estado de S. Paulo

Soltura de traficante confesso despreza inteligência policial e mina combate ao crime

A mão suave de um magistrado desferiu um duríssimo golpe no combate ao crime organizado no Brasil, em particular ao tráfico de drogas. Como se isso não bastasse, ainda conspurcou a imagem de todo o Poder Judiciário perante uma sociedade angustiada pela incapacidade do Estado de ao menos atenuar a sensação de insegurança.

No dia 4 passado, o juiz Luciano Silva, da 2.ª Vara Federal de Araçatuba (SP), inocentou o piloto Wesley Evangelista Lopes, preso em flagrante no final de 2024 por transportar nada menos do que 435 quilos de cocaína em um avião de pequeno porte. Malgrado ter confessado o crime, pelo qual teria recebido R$ 100 mil, segundo relato do próprio aos policiais que o prenderam, Wesley foi solto e agora pode voltar a cruzar os céus livremente.

Para o juiz, não havia “fundadas suspeitas” que justificassem a abordagem dos policiais à aeronave. Logo, para o sr. Luciano Silva, todas as provas contra o piloto colhidas a partir da intervenção policial no local são nulas. “O sentimento, ao ler e reler os autos, é de livro começado pelo meio”, escreveu o magistrado na sentença absolutória. “Se inicia com a aeronave do réu sendo abordada de maneira espetaculosa pela Polícia Militar (PM), sem que exista motivo claro para a mobilização de diversas forças na captura do mencionado avião.”

Para qualquer cidadão minimamente sensato, resta evidente que o aparato policial paulista não foi mobilizado por acaso para se dirigir ao local de pouso da aeronave. Havia a informação de que Wesley Lopes transportava drogas ilícitas. E essa informação veio da Polícia Federal (PF). Mas, para o juiz Luciano Silva, a cooperação entre as duas forças policiais não tem valor legal porque, pasme o leitor, a origem da informação repassada pela PF “é ignorada”.

Com uma só canetada, o juiz federal não apenas obliterou um bem-sucedido trabalho de integração das polícias nas esferas federal e estadual – algo que deve ser valorizado num país tão violento como o nosso, e não desprezado –, como ainda aniquilou a ação de inteligência da PF, que sabia exatamente que o avião carregava drogas, o que foi confirmado, e informou o fato à autoridade competente em solo. Mas nada disso valeu, a despeito de o juiz federal reconhecer que “não há dúvida do caráter criminoso das atividades perpetradas pelo réu, que merece reprimenda”. Beira o escárnio.

Por óbvio, não se defende aqui o atropelo de garantias legais. O devido processo legal é um pilar do Estado Democrático de Direito. Mas a filigrana não pode servir de substrato para decisões que afrontam a razão e o interesse público. A Justiça, para ser digna do nome, não pode estar alienada da realidade. Quando um juiz reconhece o crime, admite a culpa, mas solta o criminoso porque a origem da informação policial não é conhecida, o que se vê não é justiça, é um desatino. O que está em jogo é muito sério: a confiança dos cidadãos na capacidade das instituições de prover justiça, proteger a sociedade e enfrentar o crime com firmeza e responsabilidade.

Ao desqualificar uma ação coordenada entre as polícias com base num formalismo extremo, o magistrado mostra que o bom combate ao crime exige mais do que leis, exige juízo.

Potencial científico do país precisa de mais investimento

Correio Braziliense

A carência massiva que as academias brasileiras encaram compromete a entrega de conteúdo por parte dos docentes e dos discentes

Na última semana, dois acontecimentos marcaram o universo científico no Brasil. Divulgado na segunda-feira passada, levantamento internacional sobre instituições de ensino superior revelou um quadro preocupante. Segundo a edição 2025 do ranking do Center for World University Rankings (CWUR), 87% das universidades nacionais, na classificação das 2 mil melhores do mundo, registraram declínio. Dois dias depois, Niède Guidon, fundadora do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, morreu aos 92 anos, depois de dedicar sua vida à arqueologia e dar relevância mundial à pré-história brasileira. Ao mesmo tempo em que se fortalece o alerta da urgência de um debate amplo sobre a importância dos estudos acadêmicos, o país é lembrado do potencial de produção de excelência que possui.

De acordo com a análise do CWUR, das 53 universidades brasileiras presentes na lista mundial, 46 tiveram queda — somente sete subiram. Quatro pilares sustentam a avaliação aplicada pela organização não governamental: educação (com peso de 25%), empregabilidade (25%), corpo docente (10%) e pesquisa, o fator mais importante, que corresponde a 40% da nota. É claro que, cada vez mais presente, a competição global eleva os níveis da disputa, mas o desempenho comparativo ruim mostrado pelas instituições no país não pode ser minimizado. A possibilidade de investimentos públicos e de contribuições do setor privado também são pontos relevantes e devem servir como estímulo para a busca de soluções, não como justificativas às questões enfrentadas no cenário nacional.

A carência massiva que as academias brasileiras encaram compromete a entrega de conteúdo por parte dos docentes e dos discentes. A gestão da educação superior precisa encontrar caminhos para incentivar as políticas de apoio, proporcionando formação de alta aptidão. Ao mesmo tempo, a produção de conhecimento deve sair dos domínios das universidades, alcançando amplos setores — essa interação é fundamental porque fortalece o ensino e, especialmente, promove o desenvolvimento.

Os câmpus pelo país precisam de estrutura para ampliar as ações voltadas à inovação e ao intercâmbio internacional, aprimorar os processos e pensar sempre em garantir o bem-estar da comunidade estudantil. É primordial, ainda, o constante estímulo a projetos de impacto social. O ensino em sua instância de formação profissional precisa dialogar com o avanço da tecnologia, que causa mudanças marcantes no universo do trabalho e no cotidiano das pessoas. Além da ética, da preparação de mão de obra competente, o diploma precisa carregar a capacidade de criação inclusiva e de responsabilidade socioambiental. Sem se reinventar, acompanhar as melhores universidades do mundo vira uma tarefa difícil.

O compromisso com a qualidade e com a produção científica faz a diferença no âmbito acadêmico, mas principalmente, no crescimento do país. Uma nação se desenvolve a partir da educação — e ver indicadores brasileiros nesse quesito caírem exige reflexões. É fundamental unir o empenho dos governos, das instituições e dos cidadãos em favor de um ensino capaz de encontrar saídas para os desafios que a atualidade apresenta. Se o Brasil investir na vocação crítica e transformadora que está espalhada pelas salas de aulas de suas universidades, com certeza, o sucesso alcançado por pesquisadoras como Niède Guidon será multiplicado.

Um balanço da Lei da Ficha Limpa

O Povo (CE)

O surgimento da Lei da Ficha Limpa se deu num contexto de moralização da política, marcada por escândalos ainda recentes, como o do mensalão, de 2006, episódio responsável por um estrago na imagem do então presidente Lula (PT), à época em seu primeiro mandato.

De lá para cá, a legislação, aplicada pela primeira vez nas eleições municipais de 2012 e depois nas gerais de 2014, tornou-se peça fundamental na busca por impedir que condenados pela Justiça procurassem se albergar em cargos eletivos como forma de adiar o cumprimento de suas penas. Entre notáveis alvos da LFL, estão o ex-governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o próprio Lula em 2018.

Como toda lei, há inegavelmente aspectos que talvez mereçam um exame atento da comunidade, de modo a aprimorar o instrumento, e não inviabilizá-lo para atender a interesses de ocasião, como parece o caso agora.

Desde o início do ano, vê-se uma movimentação escancarada no Congresso Nacional, entre deputados e senadores, para abater a Lei da Ficha Limpa no que tem de maior repercussão no sistema político: o impedimento de que seus alvos possam concorrer a mandato por um prazo de oito anos, e não apenas de três, como era antes.

Trata-se de sanção severa, é verdade, mas sem dúvida compatível com a natureza do dano causado pelos atores políticos ao interesse coletivo, que variam com o tempo, sem nunca se refrearem nesse período de vigência da medida - o que pode eventualmente ser tomado como uma lacuna a ser corrigida no presente.

Afinal, a intenção da LFL, nascida sob comoção popular e resultado de mais de um milhão de assinaturas, era dissuadir agentes públicos de se servirem de seus postos para se beneficiarem pessoalmente e de maneira ilícita. Mesmo com os oito anos previstos como punição, as práticas pouco se alteraram, havendo mesmo um boom de condenações, de que é exemplo o estado do Ceará.

A cada chapa de prefeito vetada ou posteriormente cassada com base na LFL, segue-se uma nova eleição para o Executivo municipal, o que acaba por criar um embaraço para a Justiça Eleitoral, às voltas com a organização de um calendário de novas consultas pelo voto já fora do roteiro normal, sem coincidência de datas e com uma judicialização crescente dos pleitos. Esse engodo jurídico é apenas um entre tantos desafios para o aperfeiçoamento da lei.

Nenhum deles, por óbvio, autoriza relativizar a importância do texto em questão, sob crítica de uma parcela de congressistas mais preocupada em pavimentar a candidatura de quem se ache inelegível neste momento e que, para tanto, recorre a todo tipo de ginástica retórica na tentativa de fazer passar gato por lebre.

O canto da sereia está aí. Como se diz popularmente, cai quem quer, visto que não há sequer grande preocupação de legisladores em disfarçar os propósitos dessa articulação, por ora malfadada, para neutralizar a LFL a fim de colocar o Brasil em marcha à ré.

 

 

 

 

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