domingo, 8 de setembro de 2019

O que pensa a mídia – Editoriais

Marcha às trevas – Editorial | Folha de S. Paulo

Governantes desvirtuam o conservadorismo rumo à censura e à ignorância

A semana recém-encerrada se mostrou tristemente pródiga em episódios nos quais governantes se valeram do poder do Estado para impor preconceito e intolerância, à custa da liberdade de expressão e da difusão do conhecimento.

A investida do prefeito do Rio contra um gibi foi apenas o caso mais grotesco —e, até por isso, menos danoso. Na quinta-feira (5), Marcelo Crivella (PRB) meteu-se a anunciar o recolhimento de uma publicação em quadrinhos, exposta na Bienal do Livro, devido a uma imagem de dois rapazes se beijando. Vestidos, ressalte-se.

Apresentada como medida destinada a proteger a família e os menores de idade, a tentativa canhestra de censura deu em nada.

A organização da Bienal não atendeu à notificação extrajudicial em que o alcaide pedia que os exemplares da obra fossem lacrados. No dia seguinte, uma liminar judicial impediu a prefeitura de apreender livros no evento. Crivella, afinal, ainda se prestara ao ridículo de enviar fiscais ao local em busca de algum artigo inapropriado.

Desfecho bem menos feliz ocorreu em Porto Alegre, na quarta (4). Uma exposição de charges e cartuns políticos foi retirada da Câmara de Vereadores a mando da presidente da Casa, Mônica Leal (PP), com argumentos que misturam despotismo e bajulação.

A parlamentar disse ser inconcebível uma mostra “que ofenda o presidente da nação” —Jair Bolsonaro (PSL) era, naturalmente, o alvo de grande parte das obras.

O primeiro mandatário não deixaria, claro, de comparecer ao festival de obscurantismo da semana. Na terça (3), relatou ter encomendado ao Ministério da Educação um projeto de lei destinado a proibir a abordagem de questões de gênero no ensino fundamental.

Talvez sirva de consolo o fato de Bolsonaro ter ao menos previsto o devido debate da estultice no Congresso —onde provavelmente o tema será esquecido. O mesmo não se aplica, porém, ao governador de São Paulo, João Doria (PSDB).

Naquele mesmo dia, o tucano mandou recolher, com estardalhaço, apostila usada por alunos do 8º ano da rede estadual que conteria propaganda da fantasmagórica “ideologia de gênero”.

O material em questão nada mais oferecia que uma descrição sucinta das diferenças entre sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual, além de uma proposta de discussão sobre diversidade.

Parece razoável interpretar o chilique de Doria como um aceno ao eleitorado mais à direita, cujo apoio disputará com Bolsonaro para levar adiante sua ambição de trocar o Bandeirantes pelo Planalto.

A ser assim, a aposta nesse conservadorismo desvirtuado e convertido em apologia da ignorância implicará graves riscos às políticas públicas nos próximos anos.

Lideranças no Legislativo – Editorial | O Estado de S. Paulo

Não é de hoje o diagnóstico indicando a falta de lideranças na vida pública nacional. É um problema que vem de longa data - costuma-se associar o esmorecimento da participação e do protagonismo das lideranças civis nos rumos do País ao golpe militar de 1964 - e acarreta consequências nefastas para a sociedade em muitas áreas.

Em entrevista ao Estado, o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches notou, por exemplo, que “está vazia uma centro-esquerda e até um centro mais moderado, com uma visão mais social, um posicionamento contemporâneo, reformista, que tenha consciência da crise do emprego, dessa nova economia, que entenda que a globalização é inevitável e que o mundo hoje é mais cosmopolita. Há uma demanda para lideranças progressistas que pensem saídas para a frente, e não saídas para trás”. No campo político, a falta de lideranças deixa vazios importantes espaços de representação e de negociação, o que traz dificuldades adicionais no enfrentamento dos problemas nacionais.

Ao mesmo tempo, é de justiça reconhecer que houve importantes progressos no Poder Legislativo. As eleições do ano passado promoveram uma profunda renovação da Câmara dos Deputados e do Senado, que vem produzindo resultados muito positivos. Há hoje no Congresso pessoas capazes de aglutinar esforços em torno de ideias e propostas, bem como de promover maiorias e consensos em relação a soluções concretas para os problemas nacionais. Tal fenômeno é extremamente benéfico para o País.

Não é obra do acaso, por exemplo, que a reforma da Previdência esteja, apesar das confusões oriundas do Executivo federal, avançando no Congresso. O que se vê hoje na Câmara e no Senado é consequência direta de uma mudança promovida pelo cidadão, que elegeu lideranças políticas dispostas a cumprir seu papel institucional.

Vale notar que a atual composição do Congresso produz consequências que vão muito além da pauta econômica ou da questão fiscal, temas naturalmente decisivos. A atual legislatura foi capaz de promover mudanças em áreas sensíveis para o desenvolvimento do País que apresentavam não pequenos desequilíbrios. Por exemplo, o Congresso aprovou em 2019 o projeto de lei sobre o abuso de autoridade e o marco jurídico das agências reguladoras.

Por óbvio, o Congresso tem ainda muito a melhorar, e tampouco os avanços ocorridos autorizam desatenção aos trabalhos legislativos. A vigilância é sempre necessária. É inegável, no entanto, que surgiu um novo panorama político no Legislativo federal, que convém não menosprezar. A responsabilidade agora é manter e fortalecer o novo cenário político nas eleições dos próximos anos. Por exemplo, seria muito oportuno que semelhante renovação ocorresse no Executivo e Legislativo municipais.

É fundamental, portanto, continuar estimulando o aparecimento e a formação de novas lideranças. São várias as iniciativas que colaboram com essa tarefa. Recentemente, o Estado noticiou que o processo seletivo de líderes promovido pela Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps) recebeu neste ano mais que o dobro de interessados do que na edição anterior. Foram 7.030 pessoas inscritas para participar do curso de capacitação da Raps voltado para políticos com mandato e pessoas que pretendem se candidatar nos próximos anos, em todos os níveis de governo.

Uma democracia saudável exige envolvimento da sociedade, seja para escolher bem seus candidatos, seja para entusiasmar pessoas dos mais variados estratos sociais e de diferentes opiniões políticas a participar do processo político-partidário, candidatando-se. O que ocorreu no Legislativo federal deve servir de estímulo ao eleitor e aos futuros candidatos. Também pode e deve ser estímulo para que muitos cidadãos exerçam, com espírito público, liderança social em suas comunidades. O País precisa de lideranças - e não apenas na política.

Apagão na ciência terá consequências para o país – Editorial | O Globo

Brasil não chegará a lugar algum sem projeto setorial, limitado a contingenciamentos administrativos
É fato que não se pode ignorar a realidade de um a crise fiscal, com Orçamento apertado. E que, assim, contingenciamentos e cortes nas mais diversas áreas da administração são decisões esperadas. Mas atesourada aplicada pelo governo de Jair Bolsonaro no setor de pesquisa preocupa, pelo risco de apagão na ciência. No início do mês, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) anunciou um corte de 5.613 bolsas de pós-graduação em todo o país. O número representa 6% dos 92.680 incentivos desse tipo mantidos pelo órgão.

Diante do contingenciamento de R$ 819 milhões no orçamento de R$ 4,2 bilhões para 2019, a Capes optou por preservar os atuais bolsistas e bloquear os novos. As bolsas canceladas seriam oferecidas de setembro a dezembro deste ano. Os estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro foram os mais afetados, perdendo, respectivamente, 1.673, 725 e 684 incentivos.

Se as perspectivas são ruins neste segundo semestre, ficarão ainda
mais sombrias no ano que vem. Na proposta enviada pelo governo ao Congresso, o orçamento previsto para a Capes em 2020 só daria para bancar 47.249 bolsas de pós-graduação, metade do número atual.

A ameaça de paralisia ronda também o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), órgão vital para o desenvolvimento científico e tecnológico do país. A instituição informou que só tem dinheiro para pagar as cerca de 80 mil bolsas ativas até meados deste mês. Não que tenha havido contingenciamento. Nesse caso, a penúria decorre de um orçamento deficitário, de R$ 784 milhões, o menor desde 2010.

Como mostrou reportagem do GLOBO, uma das pesquisas em risco está sendo desenvolvida pela Universidade de Brasília (UnB). Trata-se de uma máquina portátil (Rapha) que utiliza a fototerapia e a ação regenerativa do látex para tratar úlceras em pés de pacientes diabéticos. São sete anos de estudos que podem ser perdidos, se o trabalho for interrompido.

Outras perdas consideráveis seriam a paralisação dos estudos sobre áreas endêmicas no Rio de Janeiro para o vírus mayaro, espécie de “primo” do chicungunha, e a investigação sobre coinfecção por dengue tipo 2, — um dos mais agressivos — com outros arbovírus. Coordenador do Laboratório de Virologia Molecular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que desenvolve as pesquisas, Amílcar Tanuri dá a dimensão do estrago que está por vir: “Perderemos o bonde, enquanto o chicungunha está se espalhando pelo mundo numa velocidade grande”.

Compreende-se a imposição de cortes em momentos de queda na arrecadação. Mas é preciso ter consciência. Países que deram saltos desenvolvimentistas investiram pesado em educação, ciência e tecnologia. E o Brasil não chegará a lugar algum sem projeto setorial, limitado ao apagão administrativo. É questão de escolha política. Por ora, resolve-se o problema das contas. Mas uma outra fatura virá adiante. E será pesada.

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