• Os indicadores da economia brasileira apontam para uma recessão prolongada. O tombo será ainda mais profundo caso o governo não recupere rapidamente a confiança dos investidores nem consiga evitar o rebaixamento da nota de crédito do país
Giuliano Guandalini e Bianca Alvarenga – Veja
As análises econômicas mais realistas e desapaixonadas indicavam, fazia algum tempo, que a crise na economia brasileira era um acidente prestes a acontecer. Por seis anos seguidos, o governo pisou fundo demais no acelerador dos gastos públicos e aliviou o pé no freio do controle da inflação. Em pouco tempo, arruinou a confiança construída em duas décadas de ajustes e reformas — sem falar nas manobras na contabilidade federal. Ao assumir o Ministério da Fazenda, Joaquim Levy apresentou um plano para evitar o desastre, como o personagem do filme Juventude Transviada que escapa da morte ao saltar do carro momentos antes da queda no desfiladeiro.
Por alguns meses, parecia que Levy seria bem-sucedido. O ministro procurou extinguir os trambiques do antecessor e propôs uma série de medidas para reforçar o caixa do governo e impedir um rombo ainda maior nas finanças públicas. A iniciativa seria um primeiro passo para arrumar a casa e retomar os projetos de longo prazo para incentivar o crescimento econômico. O clima político hostil, entretanto, atrapalhou os planos do ministro. Quanto mais frágil a situação da presidente Dilma Rousseff e maior o envolvimento de políticos da base aliada nas revelações da Lava-Jato, menor a disposição do Congresso para aprovar ajustes impopulares. O tempo sobre a economia brasileira já estava fechado. Agora, o país está sob a ameaça de lidar com uma verdadeira tempestade perfeita.
O Brasil não é tão vulnerável como no passado, mas entrou avariado na trovoada. O povo brasileiro já percebeu, em seu dia a dia, o aumento no custo de vida, a dificuldade para quitar dívidas, o desemprego de pessoas conhecidas.
O pior, entretanto, está por vir. Principalmente se as medidas de austeridade nas contas do governo não forem aprovadas. Na semana passada, a agência americana de classificação de risco Standard & Poor"s reduziu para negativa a avaliação do país. Existe agora uma probabilidade elevada de rebaixamento da nota do Brasil, possivelmente no próximo ano. Se assim for, o país perderá, na avaliação da S&P, o status de grau de investimento. E o que isso significa?
A economia deixará de ter acesso ao crédito farto e barato dos mercados internacionais. Os maiores fundos de pensão estrangeiros restringem a aplicação em países sem o grau de investimento. Em vez de ficar mais próximo de países como os Estados Unidos, a Alemanha ou o Chile, o Brasil seria rebaixado para o grupo de caloteiros contumazes, que inclui a Grécia, a Argentina e a Venezuela.
Não é apenas o governo que é afetado. As empresas brasileiras também serão vistas como investimentos especulativos. Ao pôr a nota do país em perspectiva negativa, a agência fez o mesmo para 41 empresas locais. Entre elas figuram companhias que, a despeito do cenário econômico adverso, estão entregando bons resultados e não têm dependência direta do Estado, como Ambev e NET. Isso acontece porque a nota de crédito do país é o teto de classificação das empresas. Raramente uma empresa pode ter nota melhor do que o país no qual ela opera, porque sempre existe o risco de ser afetada por alguma restrição na transferência de pagamentos.
No cenário de rebaixamento, as empresas e o governo, em vez de contarem com um mercado de 15 trilhões de dólares de crédito em condições favoráveis de prazo e juros, terão de disputar uma oferta mais modesta, de 5 trilhões de dólares, de capitais especulativos. "Com a perda do grau de investimento, haverá dois tipos de empresa: o primeiro, de companhias vistas com maior solidez que o próprio Brasil, conseguiria fazer ajustes para diminuir o custo de captação.
Já o segundo grupo, de empresas que não têm tantas garantias a oferecer, tende a sofrer mais", afirma Cid Oliveira, gestor de fundos globais da corretora XP Investimentos. Dada a deterioração da economia, as empresas brasileiras com selo de bom pagador que buscam recursos no exterior já estão desembolsando juros equivalentes aos de empresas de maior risco de investimento. O mesmo acontece com o Brasil, cujos títulos externos pagam atualmente juros de países considerados mais arriscados, como Rússia, Turquia e Hungria. "Caso perca o grau de investimento, o Brasil terá de fazer várias reformas antes de ser visto como confiável novamente. O processo demandará um esforço para melhorar os fundamentos econômicos, com foco na política fiscal e nas correções que tendem a aumentar a produtividade, reduzir a burocracia e tornar o país mais eficiente", diz Oliveira.
Em um cenário projetado por um modelo matemático desenvolvido pela consultoria Tendências, a cotação do dólar poderia passar dos 4 reais no próximo ano, a taxa Selic chegaria a 17% e o PIB teria mais um ano de retração. Melhor seria nem pensar nessa possibilidade, mas a imprudência dos anos Dilma a tornou factível demais. Tanto é assim que o Brasil já sofre uma queda no ingresso de capitais. As empresas passaram a ter restrições no mercado externo e pagam juros mais elevados para rolar as suas dívidas externas. O preço do dólar, um dos termômetros mais sensíveis para aferir a confiança dos investidores, subiu a valores não vistos em doze anos. A cotação aumentou mais de 50% nos últimos doze meses, e o real foi uma das moedas que mais perderam valor em relação à americana nesse período. É um reflexo do pessimismo generalizado e da perspectiva de crescimento fraco.
A revisão da Standard & Poor"s foi um recado explícito de que as reformas de Levy não cumpriram os objetivos originalmente previstos. Em março, há apenas quatro meses portanto, a mesma agência havia emitido um voto de confiança nos ajustes. Agora, entretanto, avalia que as circunstâncias políticas dificultam a execução do plano. Além do mais, o crescimento econômico foi castigado pelas investigações de corrupção, que tiveram impacto direto nos investimentos. Como resultado, as perspectivas para o Brasil se deterioram. O país está por um fio. As duas outras grandes agências de classificação de crédito, a Fitch e a Moody"s, ainda conferem notas mais elevadas ao país, mas estão em processo de revisão.
A capacidade de Levy de ser o fiador da economia foi posta em xeque, como indica a piora recente do humor dos investidores nacionais e estrangeiros em relação às perspectivas para a economia. O aprofundamento da recessão e o aumento do desemprego atingiram também o estado de ânimo dos consumidores e empresários brasileiros. Ficou evidente que a retomada será lenta e gradual. O Brasil corre o risco de amargar dois anos consecutivos de retração do produto interno bruto (PIB, o total de mercadorias e serviços produzidos), algo nunca visto antes na história nacional desde a década de 30. Sem novos solavancos nem surpresas negativas, a atividade econômica voltará a crescer apenas em meados de 2016, na melhor das hipóteses.
O mau tempo, desta vez, quase nada tem a ver com a conjuntura internacional. Com raras exceções, as principais economias mundiais passam por um momento favorável, superando as dificuldades do período da crise internacional. O PIB dos Estados Unidos deverá avançar 2,5% e o da Inglaterra, 2,4%, de acordo com as projeções mais recentes do Fundo Monetário Internacional. A média mundial ficará em torno de 3,3%, semelhante ao ritmo de 2014. A China enfrenta uma desaceleração e crescerá "apenas" 6,8%. Entre as principais economias internacionais, a brasileira é a única em recessão. O tombo no PIB em 2015 será ao redor de 2%.
Em uma inversão preocupante, os indicadores que deveriam subir estão em queda, enquanto aqueles que deveriam cair sobem. Mesmo com a recessão, o Banco Central, comandado por Alexandre Tombini, aumentou novamente a taxa básica de juros, a Selic, na semana passada, para 14,25% ao ano, o maior nível desde 2006. A alta foi necessária porque a inflação, que deveria ser cadente em uma economia retraída, permanece elevadíssima. Por quê? Culpa dos descuidos dos primeiros anos de Dilma. Os reajustes das tarifas de energia e dos combustíveis foram represados.
Agora eles estão sendo ajustados, contagiando os preços de outras mercadorias. A moeda americana mais cara não dói no bolso apenas dos turistas em viagem ao exterior. Diversos produtos, e não apenas os importados, possuem preço definido em mercados internacionais. A falta de credibilidade da atual gestão do BC também pesa contra. "É como a história do alcoólatra que passou os últimos quatro anos de pileque e agora diz que parou de beber", afirma um ex-diretor do banco. "Os juros precisam ser mais altos do que o necessário por causa da desconfiança de que a meta da inflação não será cumprida." Essa desconfiança custa caro. Cada aumento de 1 ponto na taxa Selic representa um gasto adicional com juros de 15 bilhões de reais ao ano.
A economia ficou presa a um ciclo vicioso difícil de ser rompido. "A baixa confiança do consumidor se reflete na diminuição da atividade da indústria e do comércio. Ao mesmo tempo, as baixas expectativas desses setores implicam menor criação de vagas, o que deprime o consumo", afirma Viviane Seda, coordenadora de sondagem do consumidor do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getulio Vargas. "É um efeito que se retroalimenta." Segundo a pesquisadora, o desemprego foi decisivo para a piora da confiança do consumidor nos últimos meses. Mais de 600 000 postos de trabalho foram fechados desde junho do ano passado. O desalento não chegou a índices tão baixos nem mesmo em 2009, ano em que a economia se retraiu 0,2%. Isso porque, na época, o estímulo ao consumo foi a ferramenta usada pelo governo para dar fôlego à retomada econômica. "No atual contexto, não há mais espaço para o crescimento do consumo. O endividamento, a inflação e o desemprego estão altos e afetam diretamente a renda familiar", diz Seda.
O Brasil precisa contar agora um pouco com a sorte para não sofrer ainda mais. Além da situação interna complicada, existem riscos externos que podem se materializar. O maior deles seria uma crise financeira na China. Outra ameaça, ainda felizmente fora do radar, seria um aumento mais acentuado dos juros nos Estados Unidos. Janet Yellen, a presidente do Federal Reserve (Fed), o banco central americano, vem postergando ao máximo o aumento da taxa, que permanece há anos próxima de zero. Se os juros subirem na economia americana, o investimento em países emergentes, como o Brasil, ficaria menos atrativo. A revoada dos dólares seria inevitável. Pairam ainda no ar eventuais complicações na Grécia e no restante da Europa.
A crise brasileira atual, contudo, é integralmente feita em casa. Superá-la exigirá o aperto do cinto da austeridade fiscal e a aprovação de ajustes profundos. O exemplo da índia mostra que essa receita funciona. O país asiático esteve prestes a perder o grau de investimento. Mas as reformas implementadas pelo atual primeiro-ministro, Narendra Modi, evitaram o rebaixamento da nota pelas agências. É a esperança de ver a tempestade dissipada.
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