Há 50 anos, era fundado o semanário independente que reuniu nomes célebres do jornalismo brasileiroe incomodou a ditadura
Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo
O Pasquim foi sobretudo Tarso de Castro e Jaguar. Tarso foi seu criador e seu dínamo, embora por pouco tempo: um ano e oito meses ou 84 números; e Jaguar, seu padrinho (emplacou o nome Pasquim) e obstinado animador, seu “último moicano”, o “almirante batavo” que só abandonou o navio quando ele foi a pique, em novembro de 1991, com o número 1.072 gravado no casco.
Gênio do humor gráfico, talvez o mais engraçado dos desenhistas, Jaguar criou o mascote do jornal – Sig, o perverso polimorfo em forma de rato –, inventou, sem querer, seu estilo revolucionário de montar uma entrevista e esteve sempre presente nos grandes e não tão grandes momentos de sua história, iniciada 50 anos atrás.
Além de cartuns, ilustrava todos os espaços baldios e tapava buracos de última hora com ousados improvisos, como uma página com a palavra “blá-blá-blá” de alto a baixo, assinada por Tarso mas bolada por ele, com a edição quase a caminho da gráfica. Muitos leitores viram a brincadeira como uma reação à Censura, daquela vez, porém, inocente: Tarso simplesmente não entregara seu texto em tempo hábil.
Era Jaguar quem aturava as “otoridades” do regime militar, negociava pessoalmente com os censores os cortes a serem feitos e, com uma boa conversa (ou mal-intencionadas overdoses de uísque), desfeitos. Foi a ele, por mérito, que o Exército, em março de 1975, com o número 300 em gestação, comunicou, por telefone, que a censura ao jornal fora suspensa.
Coincidiu de ser no dia do aniversário de 40 anos de Jaguar que Miguel Paiva, o fotógrafo Bruno Barreto (ainda “de menor”) e este escriba fomos presos pela ditadura, melando a festa programada para aquela noite. Mas claro que não foi para se vingar desse involuntário boicote à sua festa que Jaguar, provavelmente borracho, me demitiu, sete anos depois. Ele ameaçou voltar atrás, não deixei. Nunca brigamos por causa disso. Jaguar é imbrigável.
Tão forte era sua influência na edição do jornal, que mais de uma pessoa lhe atribuiu a paternidade de um cartum histórico, imaginado por Ziraldo e feito em cima do quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo, com D. Pedro, às margens do Ipiranga, a gritar “Eu quero mocotó!!”, mote de uma abobrinha musical de grande apelo popular na época. O fato é que os milicos julgaram a brincadeira um ultraje a um “símbolo da pátria” e prolongaram por mais duas semanas a pena de dois meses que a redação cumpriu na Vila Militar, em Realengo, zona norte da cidade.
Se quando o cartum saiu publicado, no número 72, a redação (ou 70% dela: Jaguar, Tarso, Ziraldo, Paulo Francis, Sérgio Cabral, Fortuna, Luiz Carlos Maciel, o fotógrafo Paulo Garcez e o factotum gráfico Haroldo Zager) já estava encarcerada, outra coisa motivou aquele arrastão. Como nenhum processo foi aberto, nunca se soube o real motivo da punição, na certa corvejada havia meses pela linha dura do governo Médici.
Alguns dos punidos foram buscados em casa, por militares em trajes civis; outros, como Cabral e Fortuna, viajavam pelo interior do Estado e voltaram às pressas para se entregar; Millôr não pôde ser encontrado no endereço que os beleguins traziam no bolso, e ficou por isso mesmo. Tarso refugiou-se na casa de Nelson Motta e, em seguida, na suíte de um motel na Barra da Tijuca, e só se rendeu depois que a polícia o chantageou, detendo sua mulher, Barbara Oppenheimer. Jaguar, também escondido, sensibilizou-se com um telefonema de Francis (“Eles falaram que só soltam a gente se você se entregar. A sua consciência responde.”), chamou um táxi e rumou para os cafundós da Vila Militar. Foi o único que pagou para ser preso.
Quem mais saiu perdendo naquela dominical condução coercitiva foi Garcez, preso em plena lua de mel, ao ir à padaria comprar o pão do café da manhã. No desembarque na Vila, o mais prejudicado foi Maciel, que de cara teve seus longos cabelos tosqueados por ordem do oficial encarregado de vigiá-los e, se necessário, puni-los.
Nunca foram hostilizados nem sofreram maus tratos. Pelas histórias contadas, o séjour prisional derivou, muitas vezes, para a galhofa: Francis de cuecão lendo Freud, reclamando da qualidade da comida mas limpando o prato; Ziraldo liderando a caça às baratas que infestavam as celas; soldados exibindo seus dotes musicais a Cabral – um dia, espero, Jaguar contará tudo em suas “memórias do cárcere”, incluindo a letra do samba A Vila Não é Mais Aquela, parceria improvisada por quatro dos nove ilustres detentos.
“Os nove do Pasquim agora são um”, brincou o jornal, que, sem poder explicitar o ocorrido, atribuía a ausência dos colegas a uma metafórica gripe coletiva. A duras penas editado pelos que haviam ficado do lado de fora – Millôr, Henfil, Martha Alencar e Miguel Paiva – o jornal não deixou de sair. Ainda mais censurado, perdeu leitores, mas sobreviveu galhardamente.