domingo, 30 de junho de 2019

Vitória da democracia: Editorial / O Estado de S. Paulo

Segunda-feira, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu liminarmente o trecho da Medida Provisória (MP) 886 que transferiu da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura a prerrogativa de demarcar terras indígenas. No dia seguinte, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM), devolveu esta parte da MP para o Poder Executivo. Embora o ato se trate de uma prerrogativa da Presidência do Senado, sua ocorrência não é trivial.

Há quem interprete esses dois atos como manifestações de hostilidade do Judiciário e do Legislativo em relação ao Executivo. É um equívoco, no entanto, tratar dos casos à luz de um suposto embate entre os Poderes. O revés imposto ao governo é menos uma “derrota” para o presidente Jair Bolsonaro do que um evidente sinal de vitalidade de nossa democracia republicana, em especial pelo bom funcionamento do sistema de freios e contrapesos. Ademais, a decisão do ministro Barroso é liminar e nada impede que o governo, se assim desejar, reapresente a matéria ao Congresso por meio de projeto de lei.

O presidente Jair Bolsonaro já havia tentado tirar da Funai a competência para demarcar terras indígenas por meio de outra MP, que fora rejeitada pelo Legislativo. Logo, nova MP sobre o mesmo tema fere o artigo 62, § 10, da Lei Maior. Segundo Barroso, a “transferência da competência para a demarcação das terras indígenas foi igualmente rejeitada na atual sessão legislativa. Por conseguinte, o debate, quanto ao ponto, não pode ser reaberto por nova Medida Provisória. A se admitir tal situação, não se chegaria jamais a uma decisão definitiva e haveria clara situação de violação ao princípio da separação dos Poderes”.

O senador Davi Alcolumbre, por sua vez, também justificou a decisão de considerar “não escrito” o referido trecho da MP 886, devolvendo-o ao Poder Executivo, invocando a Constituição. “Estou considerando não escritas as alterações (nas competências do Ministério da Agricultura), devolvendo-as ao senhor presidente da República”, disse o presidente do Senado. “Informo que a Constituição é claríssima ao afirmar que é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de Medida Provisória que tenha sido rejeitada ou tenha perdido eficácia por decurso de prazo”, concluiu.

A demarcação de terras indígenas é tema dos mais complexos por envolver exigências constitucionais e ter muitas implicações sociais, políticas e econômicas. Há bons argumentos em defesa da manutenção de competência da Funai como os há para a transferência para o Ministério da Agricultura. O problema é que ambos são partes que têm muitos interesses envolvidos nessa questão. Tanto é assim que tramita no Congresso uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) - 215/2000 - para atribuir ao Poder Legislativo a competência para “aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e a ratificação das demarcações já homologadas”. A proposta, cujo objetivo é conter abusos na demarcação dessas terras, aguarda desde 2015 a aprovação em dois turnos pelas duas Casas Legislativas.

Já há expressiva porção do território nacional demarcada como reserva indígena. Nada justifica, portanto, que o tema seja tratado com pressa. A complexidade do processo de demarcação de terras impõe a devida cautela.

Mas, se o presidente da República entende ser melhor para o País que o Ministério da Agricultura, e não mais a Funai, seja o responsável por demarcar as áreas de reservas indígenas, tem todo o direito de levar adiante a sua proposta. Mas que o faça com respeito à Constituição. Sob este prisma, as decisões do ministro Luís Roberto Barroso e do senador Davi Alcolumbre afiguram-se como educativos anteparos aos arroubos legiferantes do presidente Jair Bolsonaro. Ele pode fazer muito para levar adiante a agenda que defendeu durante a campanha eleitoral, da qual saiu vitorioso. Mas não pode tudo. Acima de suas vontades, como das de quaisquer brasileiros, há a Constituição.

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