Rubio e Vieira abrem caminho promissor para negociações
Por O Globo
Compromisso de encontro de Trump e Lula deixa
clara boa vontade de ambos para superar as desavenças
Foi auspicioso o encontro entre o ministro
das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira,
e o secretário de Estado americano, Marco Rubio, em Washington. Representa mais
um passo no pedregoso caminho de reaproximação entre os dois países depois do
tarifaço de 50% imposto às exportações e das sanções contra autoridades
brasileiras, que esgarçaram uma relação de mais de dois séculos de boa
convivência. O encontro deu enfim inicio à negociação entre os dois países para
superar as desavenças. Comunicado conjunto informou que Vieira e Rubio
trabalharão para que ocorra em breve outro encontro, entre os presidentes Donald Trump e
Luiz Inácio Lula da
Silva. Ainda não há confirmação de data e local, mas, num cenário em que havia
apenas incerteza, não é pouco.
Vieira chamou a conversa com Rubio de “produtiva e cordial”. Relatou que o foco foi a agenda econômica e que os dois países já trabalham na montagem de um cronograma de reuniões. Afirmou ainda ter reiterado o pedido de Lula a Trump, em conversa na semana passada, de reversão das sanções aplicadas ao Brasil pelo governo americano. Rubio também considerou a conversa “muito positiva”.
É saudável que tenham ficado fora dela temas
sensíveis como o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, condenado pelo
Supremo Tribunal Federal a 27 anos e três meses de prisão por tentativa de golpe
de Estado e outros crimes. Quando anunciou o tarifaço, Trump citou como
justificativas o processo contra Bolsonaro e o tratamento dado pelo Judiciário
brasileiro às plataformas digitais americanas. O julgamento de Bolsonaro seguiu
todos os ritos legais, a Justiça brasileira é independente, e é inaceitável que
sofra qualquer ingerência de quem quer que seja. Nada há que Lula possa fazer
em relação a tudo isso, portanto o melhor é mesmo evitar o tema.
O encaminhamento do diálogo entre os dois
países ganha relevância diante de um cenário que até então se apresentava
árido. O governo brasileiro costumava alegar que não encontrava canais de
negociação com os americanos para tratar do tarifaço. Do outro lado, Trump
também não emitia sinais de abertura. O gelo começou a derreter no breve
encontro entre Lula e Trump durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, em
Nova York. Numa reviravolta do roteiro, Trump afirmou ter havido “química
excelente” com Lula. No dia 6 de outubro, os dois conversaram por telefone, e
Trump indicou Rubio como interlocutor para continuar a negociação.
Há ainda muitos degraus a escalar. Mas as
perspectivas são boas. É fundamental que o governo brasileiro mantenha a
serenidade e se empenhe ao máximo para que o eixo das conversas fique restrito
aos temas de comércio e à agenda bilateral. É não apenas desejável, mas
perfeitamente viável alcançar muitos consensos deixando de lado as questões
políticas. Há interesses mútuos e um campo promissor de negociação nas áreas tecnológica,
científica, empresarial, comercial e, especialmente, mineral. Lula precisa
buscar incansavelmente um acordo que reverta as sanções americanas e resgate as
boas relações comerciais com os Estados
Unidos, segundo maior destino das exportações brasileiras. O
encontro entre Vieira e Rubio deixou claro que o caminho está aberto.
Apuração sobre venda de sentenças no STJ
fortalece o Judiciário
Por O Globo
Inquérito é essencial num momento em que a
Justiça está vulnerável à infiltração do crime organizado
As investigações da Polícia Federal (PF)
sobre um esquema de venda de sentenças criado em gabinetes de ministros do
Superior Tribunal de Justiça (STJ)
são graves não apenas pelos fatos que têm revelado, mas também pelo que
significam no atual contexto de combate ao crime organizado.
Já seriam preocupantes, por si sós, as
evidências de ilegalidade em sentenças da penúltima instância do Judiciário,
abaixo apenas do Supremo Tribunal Federal (STF).
Quando se multiplicam evidências da infiltração de organizações criminosas na
economia formal, a investigação precisa servir de referência para proteger o
Judiciário de interferências externas. Só uma Justiça íntegra terá capacidade
de enfrentar as máfias.
O inquérito tramita em sigilo no STF e é
presidido pelo ministro Cristiano
Zanin. Tem como alvos advogados, empresários e ex-servidores de
gabinetes dos ministros Og Fernandes, Isabel Gallotti e Nancy Andrighi. É
fundamental destacar que a PF não encontrou nenhuma evidência de envolvimento
dos ministros — eles não são sequer investigados. Tudo transcorreu, de acordo
com o que se apurou até agora, sem o conhecimento deles.
A PF divide a investigação em três núcleos. O
primeiro apura a atuação no esquema de servidores do STJ, incluindo ex-chefes
de gabinete dos ministros. O segundo trata de advogados e lobistas,
responsáveis por aliciar clientes para o esquema, principalmente no agronegócio
e entre donos de empresas em processo falimentar. O terceiro núcleo reúne os
beneficiados pela compra de sentenças.
Em apenas um caso, revelado
pelo blog da colunista Malu Gaspar, do GLOBO, há menção a um
parente de ministro, a advogada Catarina Buzzi, filha do ministro Marco Buzzi,
acusada de ter recebido uma transferência de R$ 1,12 milhão, segundo indícios
descobertos no celular do lobista Andreson de Oliveira Gonçalves. Relatório
preliminar da PF identifica o advogado Roberto Zampieri, assassinado em Cuiabá
(MT) em dezembro de 2023, e o empresário Haroldo Augusto Filho como próximos de
Catarina. O conteúdo do celular de Zampieri foi essencial para o início das
investigações — há nele uma mensagem de Catarina que despertou a suspeita da
PF. Haroldo, sócio de consultoria especializada no agronegócio, é investigado
sob a acusação de comprar sentenças também no Tribunal de Justiça de Mato
Grosso.
Caso se confirmem ramificações do esquema em Cortes estaduais, o inquérito ganhará ainda mais relevância para ajudar a blindar a Justiça contra a influência de organizações criminosas. O Judiciário sairá mais forte das investigações se elas elucidarem os fatos de modo exaustivo e se, confirmados os crimes, as condenações forem exemplares.
Governo gastador paga mais ao mercado
Por Folha de S. Paulo
Títulos do Tesouro chegam a ser vendidos com
juros de 8%; causa é o descontrole das despesas e da dívida
Taxas caem na América Latina e na Ásia, com a
expectativa de cortes nos EUA; aqui, a Selic está em 15% com diminuta
perspectiva de corte
Em um cenário global de alívio monetário, o
Brasil se mantém preso a juros estratosféricos,
em razão, fundamentalmente, do desajuste orçamentário do governo federal.
A
administração petista promove mais gastos e promessas
eleitoreiras, enfraquece o arcabouço fiscal que nem completou dois anos de
vigência e permite que a dívida pública se aproxime de 78% do Produto Interno
Bruto —no ritmo atual, estima-se que ela subirá até 95% em 2033.
Esse descontrole erode a confiança dos
investidores e impõe um prêmio de risco que encarece o financiamento do déficit
persistente da União. Não por acaso, o Tesouro Nacional paga hoje 8% ao ano
mais a inflação nos
títulos indexados ao IPCA com vencimento em 2029 e 7,7% nos papéis com prazo
até 2035.
São taxas superiores às do fechamento do ano
passado, quando a cotação do dólar estava em R$ 6,17, muito acima dos R$ 5,40.
Um país cuja economia cresce a 3% ao ano ou menos não tem como suportar tais
encargos por tempo indeterminado.
A pressão altista sobre o custo do dinheiro
de médio e longo prazo ainda tem sido acentuada por emissões de títulos
privados incentivados, entre eles as debêntures de infraestrutura isentas
de Imposto de
Renda. Projetadas para fomentar investimentos em estradas, ferrovias
e saneamento, as emissões têm atraído maior demanda, graças às melhorias
regulatórias dos últimos anos.
Para o mercado, trata-se opção atraente
devido à alíquota zero de IR, ante a
taxação de 15% a 22,5% nos títulos públicos. Na prática, há uma
competição com os papéis do Tesouro, que assim precisa pagar algo mais para
rolar sua dívida —e, diante da alta nas taxas, reduziu o volume de leilões nas
últimas semanas.
A situação poderia ser ainda pior se não
tivesse caído, na semana passada, a mais recente medida provisória de elevação
de impostos do governo Luiz Inácio Lula da
Silva (PT).
Nas negociações com a Câmara dos
Deputados, o Executivo havia concordado em manter os incentivos à
parte dos papéis privados e elevar a taxação sobre outros, agravando a
assimetria atual.
A tributação das aplicações financeiras
continuará sendo objeto de debate necessário, mas a solução essencial para os
problemas de financiamento do Tesouro é o controle da gastança do governo, o
grande aspirador que suga a poupança nacional
e mantém os juros elevados.
Na América
Latina e na Ásia,
as taxas têm caído, seguindo a expectativa de cortes nos juros americanos, que
devem chegar a 3% ao ano até meados de 2026, de acordo com as projeções atuais.
No Brasil, enquanto isso, a Selic segue
em 15% com diminuta perspectiva de corte, para algo entre 12,5% e 13% no final
do próximo ano. Isso significa o pagamento de mais de R$ 840 bilhões aos
credores da dívida federal apenas nos últimos 12 meses —o que inclui um grande
presente para os famigerados rentistas.
Lula, o PT e o Congresso
Por Folha de S. Paulo
Presidente desqualifica legislatura, em
contexto de animosidade de seu partido contra o Parlamento
Petistas tratam resistências a propostas governistas de aumento de impostos como oposição à justiça social, o que tem muito de farsesco
O governo Luiz Inácio Lula da
Silva trouxe alívio à vida política e institucional do país ao pacificar as
relações do Planalto com o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso
Nacional. Com o primeiro, a proximidade pode ter ido além da conta;
com o segundo, mesmo sem maioria parlamentar segura, o petista soube manter diálogo
e negociação —ao menos até há pouco.
Na quarta-feira (15), Lula achou por
bem fazer uma
crítica desqualificante à atual legislatura em ato público e ao
lado do presidente da Câmara dos
Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB).
"Hugo é presidente desse Congresso e ele sabe que esse Congresso nunca
teve a qualidade de baixo nível como tem agora."
"Aquela extrema direita que se elegeu na
eleição passada é o que existe de pior", completou o presidente da
República, alegrando a plateia amistosa povoada por professores, no Rio de
Janeiro.
Deixe-se de lado o fato de que Motta, vaiado
no evento, não preside o Congresso, o que cabe ao chefe do Senado.
É difícil dizer se Lula deixou-se levar pelo entusiasmo durante o improviso ou
se calculou previamente o impacto da declaração. É certo, de todo modo, que ela
se deu num contexto de animosidade de seu partido contra o Legislativo.
De alguns meses para cá, o PT tem tratado as
resistências de parlamentares a propostas governistas de aumento de impostos
como defesa de interesses milionários ante tentativas de promover justiça
social. Essa
campanha, que tem muito de farsesca, foi reavivada recentemente
depois da derrubada de uma medida provisória que buscava R$ 20,9 bilhões em
novas receitas para 2026.
É evidente que o presidente da República tem
o direito de expressar suas opiniões —a questão é quando convém fazê-lo diante
das responsabilidades do cargo. A retórica de confronto anima a militância, mas
é inútil, se não contraproducente, quando se precisam aprovar projetos num
Parlamento onde as forças à esquerda não chegam a 25%.
Lula não questionou a legitimidade do
Legislativo, mas petistas caminham em terreno perigoso ao demonizar o Congresso
como "inimigo do povo" —o partido, aliás, é useiro e vezeiro em
radicalizar o discurso nos momentos de adversidade.
Se pode ajudar a disputar eleições, a polarização política atrapalha sobremaneira a tarefa de governar. Resta um ano até o pleito de 2026 e haverá medidas dificílimas a tomar no quadriênio seguinte, qualquer que seja o vencedor. Da perspectiva de Lula, nada indica que a próxima legislatura vá ser mais amigável que a atual.
O ‘golpe silencioso’ na internet brasileira
Por O Estado de S. Paulo
Em nome da ‘modernização regulatória’,
eufemismo para centralização estatal, modelo que fez da internet nacional uma
referência de liberdade e governança democrática está ameaçado
Em sua origem, a internet se apresentou como
a tradução digital da própria ideia de democracia. Sua arquitetura aberta e
descentralizada nasceu do princípio de que nenhum centro de poder deve
controlar o fluxo das ideias. Cada nó tem voz, cada usuário, autonomia, e cada
inovação pode surgir de baixo para cima. Essa engenharia da liberdade
transformou a rede em espaço global de criação e participação – um espelho
virtual dos valores democráticos.
Hoje esse modelo está sitiado. Em nome da
“soberania digital”, governos e reguladores erguem muros no ciberespaço. A
China exporta sua doutrina de “cibersoberania”, eufemismo para censura e
vigilância. A Europa multiplica regulações que inibem a inovação. Os EUA
oscilam entre liberdade e nacionalismo tecnológico. O resultado é uma internet
fragmentada em arquipélagos digitais. Já o Brasil sempre foi uma ilha de
excelência – até agora.
Desde 1995, o País construiu um modelo de
governança multissetorial – o Comitê Gestor da Internet (CGI.br) – que se
tornou referência mundial. Nele, governo, academia, empresas e sociedade civil
compartilham decisões técnicas e políticas. Dessa experiência nasceram
instituições de excelência – NIC.br, Registro.br, IX.br, Cert.br, Cetic.br –
que garantem a estabilidade e a segurança da rede. Em 2014, o Marco Civil da
Internet consagrou essa filosofia em três pilares: liberdade de expressão,
neutralidade de rede e privacidade.
Mas esse modelo está sob ameaça. Nos últimos
três anos, a Anatel vem ampliando seu poder sobre o ecossistema digital. A
pretexto de realizar uma “modernização regulatória”, a agência revogou a norma
4, que há décadas distinguia os serviços de telecomunicações – sob sua
jurisdição – dos serviços de valor adicionado, como a internet. Essa separação
foi o alicerce de uma rede livre da lógica centralizadora das telecomunicações.
Ao apagá-la, a Anatel abriu caminho para reivindicar controle sobre
infraestrutura e serviços fora de seu escopo: pontos de troca de tráfego,
domínios, provedores de nuvem.
O movimento culminou no Projeto de Lei
4.557/24, que propõe subordinar à burocracia estatal da Anatel o CGI.br, e com
ele a governança de uma rede construída sobre pluralismo e cooperação. A
Internet Society advertiu que o projeto mina o modelo que fez do Brasil
referência mundial. Como alerta Konstantinos Komaitis, ex-diretor da
organização, em artigo em seu blog (www.komaitis.org), trata-se de um “golpe
silencioso”, uma tentativa de submeter a rede brasileira à lógica burocrática e
centralizadora do Estado.
O modelo brasileiro não apenas funciona: ele
inspira confiança. Romper a separação entre telecomunicações e internet é
entregar um sistema descentralizado à hierarquia estatal – trocar a colaboração
pela autorização, a liberdade pela licença. Submeter a internet à estrutura de
uma autarquia é minar o princípio de sua resiliência: o do poder compartilhado,
nunca concentrado.
A ofensiva ocorre num ambiente já inclinado
ao controle. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o Supremo
Tribunal Federal têm ampliado a intervenção do Estado sobre o debate digital.
Entre decretos abusivos e decisões judiciais expansivas, o País corre o risco
de substituir a pluralidade pela tutela. O que se anuncia, no discurso de
“regulação das redes”, é uma burocratização da liberdade movida pelo apetite de
fazer do espaço digital mais um instrumento de poder político.
A internet brasileira prosperou porque foi
livre. O CGI.br mostrou que é possível combinar inovação e responsabilidade sem
sufocar o debate nem subordinar a técnica à política. Essa é a essência da
soberania aberta: participar do mundo sem se fechar ao mundo. A alternativa –
isolamento regulatório e captura institucional – é seguir o caminho dos que
confundem proteção com controle e soberania com obediência.
O Brasil tem diante de si uma escolha. Pode
preservar a arquitetura da liberdade que o tornou exemplo global, ou
transformar-se em mais um elo da corrente que aprisiona a rede sob um Estado
tutelar. Defender o CGI.br é defender a democracia digital – e a real. Porque a
internet, em última instância, não é uma infraestrutura: é uma ideia. E essa
ideia é liberdade.
Eficiência do Estado não pode ser tabu
Por O Estado de S. Paulo
Haddad compra briga com a esquerda ao
defender que servidores públicos devem ter regras de desempenho, como se cobrar
eficiência do funcionalismo fosse sinal de neoliberalismo
Enquanto o deputado Pedro Paulo (PSD-RJ)
concluía as propostas da reforma administrativa com a qual se pretende modernizar
as regras do funcionalismo, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, comprava
uma briga com seus colegas de esquerda ao sugerir a necessidade de atrelar a
estabilidade de servidores à qualidade e ao desempenho – como se cobrar
eficiência do funcionalismo fosse sinal de neoliberalismo.
Haddad disse o óbvio, isto é, demonstrou
preocupação com a entrega de serviços de qualidade à população. Não defendeu o
fim da estabilidade no serviço público – ainda que devesse fazê-lo, já que, na
forma como ela existe hoje no Brasil, trata-se de uma anomalia –, e sim regras
de desempenho. Diante das reações entre progressistas, o economista Pedro
Fernando Nery, colunista do Estadão,
foi ao ponto: em algum momento será possível associar eficiência no serviço
público a uma visão progressista? Ou o conceito seguirá visto como uma pauta de
viés neoliberal?
Eis aí um debate que importa. Trata-se de um
dilema para o País e, mais ainda, para o governo do presidente Luiz Inácio Lula
da Silva. Afinal, o funcionalismo é historicamente uma base de apoio
considerável à qual o presidente costuma dispensar especial proteção.
Servidores, admite-se, temem perdas de direitos ou porta aberta para
precarização, mas há o outro lado da moeda, ou seja, uma sociedade que espera e
cobra serviços públicos mais eficientes. Recorde-se que, nos anos de oposição,
os petistas se dedicaram a denunciar como os “inimigos” dos servidores públicos
todos aqueles que cobravam destes um trabalho melhor.
E assim, com a decisiva contribuição da
militância petista, o Brasil viu debates imprescindíveis interditados por
décadas. A estabilidade e a avaliação do desempenho de servidores públicos foi
um deles. A responsabilidade fiscal, durante anos, foi outro. A lista se
estende às aposentadorias, ao papel das empresas estatais, à corrupção e à
busca de eficiência do setor público – preocupações que não se restringem aos
“neoliberais”. Entretanto, com essas interdições, eficiência tornou-se
palavrão, avaliação de desempenho é crime de lesa-pátria, e revisão de
privilégios só parece legítima quando dirigida contra “as elites” e a casta do
Poder Judiciário. Tal viés refreia qualquer amadurecimento democrático e
aperfeiçoamento do Estado.
Pois o Brasil ganharia com mais lideranças
capazes de enfrentar temas controvertidos e até mesmo impopulares para fazer o
que é certo. A análise da qualidade e do desempenho de servidores públicos é um
desses temas a enfrentar, mesmo que à custa da patrulha da militância
ideológica. Encará-la requer inevitavelmente tratar também das regras de
estabilidade do funcionalismo. Democracias preveem estabilidade de carreira para
garantir a continuidade dos serviços e a proteção de políticas de Estado e dos
servidores contra pressões dos governos de turno, mas em geral a estabilidade é
restrita a carreiras típicas de Estado, como juízes, diplomatas, policiais e
fiscais. Isso torna o modelo brasileiro único no mundo.
Como presidente e como sociólogo, Fernando
Henrique Cardoso argumentava que a reforma do Estado não seria apenas um
movimento incentivador da racionalização formal da máquina pública e de
incentivos a critérios de competição aberta, e sim um movimento democratizador,
destinado a assentar as bases de um Estado com efetiva presença na sociedade.
Em outras palavras, sua reformulação se prestaria não a obedecer aos cânones do
neoliberalismo, mas sim a torná-lo mais democrático no acesso. Ou seja, um novo
modelo de Estado é a condição para que seus serviços e benefícios sejam bons e
disponíveis para todos.
Eficiência, nesse caso, significa gerar maior
capacidade de prestar serviços básicos à população e garantir bens públicos ao
maior número possível de pessoas, com o menor custo, sem distorções que incitam
a descrença do cidadão em relação à política. É também uma forma de romper um
ciclo perverso que costuma unir, simultaneamente, a vitimização e a vilanização
dos servidores públicos. E, sobretudo, uma maneira de desfazer anos e anos de
mentiras e preconceitos difundidos na esquerda, que só perpetuaram privilégios
e desigualdades que se pretende combater.
A escalada da doutrina Trump
Por O Estado de S. Paulo
Ordem para ação da CIA na Venezuela escancara
a vocação imperialista do presidente
O presidente dos EUA, Donald Trump, confirmou
ter autorizado a CIA (agência de inteligência americana) a conduzir ações
secretas na Venezuela. O objetivo declarado é interromper o fluxo de drogas da
Venezuela para os EUA e contra-atacar uma suposta invasão de delinquentes
venezuelanos em território americano, que segundo Trump teria sido arquitetada
pelo governo do ditador Nicolás Maduro. Mas Trump não se esforçou para
desmentir que o objetivo final é derrubar Maduro, considerado por Washington
como chefe do tráfico de drogas da Venezuela e fugitivo da Justiça americana.
Ainda que Trump tenha razão, isto é, ainda
que Maduro seja o principal chefe mafioso da Venezuela, ainda que muitas drogas
que chegam aos EUA tenham a Venezuela como origem e ainda que a queda do regime
chavista seria uma boa notícia, nada no Direito Internacional autoriza o
presidente americano a atuar dessa forma, de maneira unilateral, contra um
governo estrangeiro. Ao fazê-lo, Trump reedita os piores momentos dos EUA ao
longo da guerra fria, quando, em nome da luta contra o comunismo, os americanos
agiram direta ou indiretamente para derrubar diversos governos na América
Latina.
Mas Trump desconhece os limites do Direito,
como os americanos já se aperceberam. Sua vontade é soberana, e uma vez que ele
dita o que quer, seus assessores correm para elaborar o arcabouço legal que
supostamente dará suporte à decisão, em geral invocando leis obscuras dos
séculos 18 ou 19. No caso específico da Venezuela de Maduro, por exemplo, Trump
classifica os narcotraficantes como “terroristas”, contra os quais é possível
aplicar leis de guerra.
Por essa lógica, a entrada de imigrantes venezuelanos
nos EUA, classificados indistintamente por Trump como criminosos, é equiparada
pelo presidente americano a uma invasão hostil promovida pelo governo de
Maduro, contra a qual o governo dos EUA deve responder com sua força militar –
não só expulsando esses imigrantes, como também atacando o território
venezuelano.
Até aqui, os americanos se limitaram a
afundar, na costa venezuelana, barcos que supostamente levariam drogas para os
EUA. O próprio Trump, porém, anunciou que os EUA já dominam as águas venezuelanas,
mobilizando uma força naval considerável, razão pela qual só resta operar com
tropas em terra.
O Brasil precisa se preocupar com um conflito dessa natureza num país com o qual faz fronteira. Sabe-se que o Exército Brasileiro realizou recentemente exercícios militares na região, mas a Defesa garante que nada teve a ver com a crise entre EUA e Venezuela. De todo modo, o Brasil, por meio de sua diplomacia, deve atuar até onde for possível para evitar uma escalada – o que será particularmente desafiador, considerando a natureza do confronto, provocado pelo voluntarismo de Trump, e a inexistência de fóruns internacionais efetivos para estabelecer alguma forma de diálogo ou dissuasão diante de tão flagrante violação das leis internacionais por parte do impulsivo presidente americano.
Conflito com a Venezuela pode desestabilizar
a região
Por O Povo (CE)
Trump não pode se arvorar xerife do mundo,
decidindo quais ditaduras são aceitáveis — pois convive confortavelmente com
várias delas — e quais vai atacar com sua máquina de guerra
Depois de abrir uma guerra comercial contra o
mundo, com ataques aos mecanismos multilaterais, o presidente americano Donald
Trump parece não ter ficado satisfeito com os estragos provocados por ele na
economia mundial.
Agora, ameaça começar um conflito armado
contra a Venezuela, com potencial de atingir toda a região, com repercussões
que se espalhariam pelo mundo. Nas últimas semanas, aviões americanos
bombardearam vários barcos, supostamente oriundos da Venezuela, matando seus
ocupantes, em verdadeiras execuções extrajudiciais, sob a alegação de que as
embarcações transportavam drogas.
Para piorar, o presidente dos Estados Unidos
resolveu escalar os ataques contra a Venezuela. Ele autorizou a CIA (agência de
inteligência americana) a conduzir operações dentro do território venezuelano,
sob a mesma alegação de combater cartéis de drogas. Com esse pretexto, o
governo Donald Trump desloca soldados, navios e submarinos de guerra para a
costa venezuelana.
Como antecipou o jornal The New York Times,
informação confirmada oficialmente por Donald Trump, as ações da CIA no
território venezuelano podem incluir "operações letais", tendo como
alvos inclusive o presidente Nicolás Maduro e outros integrantes do governo
venezuelano.
Desta vez, portanto, o intento de Trump não
se limita a uma bravata, como o anúncio, logo após sua posse, de que iria
anexar o Canadá como o 51º estado dos EUA.
As ações na Venezuela são um recado de que
nenhum país da América Latina está a salvo de uma investida americana, caso não
se alinhe aos interesses dos Estados Unidos. Para isso, a Casa Branca usará
todas as suas armas, sejam econômicas ou militares.
Mesmo internamente, essa política de Trump
encontra barreiras. O almirante Alvin Holsey, chefe do comando militar
responsável pelas operações dos EUA na América Latina, anunciou que deixará o
cargo. Informações dão conta de que ele se opõe à ofensiva armada contra a
Venezuela.
Não está em debate a classificação ideológica
do governo Maduro, sem sombra de dúvida um autocrata, que não respeitou o
resultado eleitoral, mantendo-se no poder pela força. No entanto, não se pode
aceitar que Trump se arvore em xerife do mundo, decidindo quais ditaduras são
aceitáveis — pois convive confortavelmente com várias delas — e quais vai
atacar com sua máquina de guerra.
Entre as causas da ofensiva dos EUA contra a
Venezuela pode-se incluir o estreitamento das relações do país sul-americano
com a China, cuja influência cresce na América Latina, desagradando a Casa
Branca. A diferença é que o Pequim opta pela via da negociação, enquanto a Casa
Branca usa a força e a coerção — como se vê no Brasil —, ou mesmo quando se
relaciona com países amigos, como é o caso da Argentina.
A mais, o ataque de Trump contra a Venezuela, tem potencial de desestabilizar a América Latina, preocupando a diplomacia brasileira, que teme a disseminação de conflitos por toda a região.
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