Merval Pereira
DEU EM O GLOBO
Como bem disse o senador José Sarney no seu patético discurso de defesa, “ética é conduta”. E justamente na conduta de certos senadores, inclusive ele, está a explicação para o fato de que não é possível nivelar por baixo a atuação parlamentar. Não creio que o principal seja o julgamento deste ou daquele senador, mas sua postura diante do que fez, ou do que está acontecendo. A isso chama-se “ética”, conceito que varia de acordo com os tempos e os costumes. Roberto Romano, professor de filosofia da Unicamp, lembra que, se fizermos um levantamento da história do Ocidente, “encontramos pelos menos uns cinco paradigmas éticos fundamentais que foram se misturando com o tempo”
A cada vez que se tem um paradigma que permeia todas as relações sociais e políticas, a ética vai junto, comenta Romano. Mas, para falar de ética, ele ressalta que é preciso falar de uma virtude chamada prudência. “A lei geral vale para todo e qualquer indivíduo, mas, se você aplicar a lei sem nenhuma gradação, sem nenhuma consideração prudente, você faz um trabalho monstruoso”.
É nesse sentido que é preciso separar a atuação do senador Arthur Virgílio, que assumiu seus erros, dos que lutam para preservar os privilégios e manter a situação como está. Para Roberto Romano, “a doutrina das penas não pode dosar a pena igualmente, sem considerar a situação de tempo, espaço, a pessoa”.
Do ponto de vista da ética, do decoro, para o ex-dominicano Roberto Romano, “o senador Arthur Virgílio tem pecados veniais, enquanto está sendo massacrado por um Renan Calheiros que está cheio de pecados capitais”.
O fato é que o costume que vigorava no Congresso permitia desvios como os praticados pelo senador Arthur Virgílio e pela grande maioria dos senadores, e dos deputados: uso de verba indenizatória indiscriminadamente, passagens de avião para parentes e amigos, nomeação de parentes para seu gabinete ou para gabinetes de congressistas amigos, no cruzamento de favores, e até mesmo manter um funcionário pago pelo Senado em estudo no exterior, sem que fossem obedecidos os trâmites legais para essas situações.
Toda essa prática passou a ser inaceitável pela sociedade, e o que os congressistas deveriam ter feito era um mea culpa, como fizeram o tucano e diversos outros deputados e senadores no caso da verba indenizatória e das passagens de avião, e a partir daí colocarem mãos a obra para reformar a gestão do Congresso.
Mas seria preciso primeiro que o próprio presidente Sarney admitisse que os seus hábitos políticos estavam equivocados, deslocados no tempo, e se dispusesse a reformálos, como fez o líder tucano Arthur Virgílio, ou o deputado Fernando Gabeira, do PV. E, sobretudo, investigar o fato mais grave entre todos, a responsabilidade pelos decretos secretos e pela atuação do diretorgeral do Senado nomeado por ele 15 anos atrás.
Ao contrário, Sarney tenta sustentar o insustentável e até mesmo quando fez a coisa certa — devolver o dinheiro do auxílio-moradia — tenta passar à opinião pública a ideia que o fez por vontade própria, pois tinha direito a usá-lo.
Mostra, dessa maneira, que não está em condições de comandar a reforma administrativa que o Senado precisa.
Há uma diferença grande entre as duas posturas, e já que não estamos na Inglaterra, onde os deputados que gastaram abusivamente a verba indenizatória renunciaram aos mandatos, pelo menos demos um pequeno passo à frente com a atitude desassombrada do líder tucano, contrastando com as chantagens usadas por Renan Calheiros.
Marcílio Marques Moreira, ex-ministro da Fazenda e expresidente do Conselho de Ética Pública, ressalta que “esse ‘ethos’ (ética) pode ir mudando de acordo com a sociedade, como mudou na Grécia do ethos heróico do Homero para o ethos do trabalho, um pouco espelhando também as próprias condições daquela sociedade”.
Ele acha que no mundo todo tem havido um movimento no sentido de normas mais rigorosas, citando o caso recente dos políticos ingleses, que renunciaram ao Parlamento por “coisas de certa maneira semelhantes, com algumas analogias de utilizar recursos públicos para fins privados, caracterizando o conflito de interesses, aquele aspecto de maior risco da atividade pública”.
Marcílio vê um lado positivo no que está acontecendo em Brasília, significaria que estamos em uma transição, “mas todas transições são penosas”, ressalta. Enquanto não se consolida uma nova hierarquia de valores, “fica um espaço, um vazio, que pode aumentar muito esses conflitos. Apesar de haver retrocessos, acho que estamos evoluindo”.
O que o preocupa é justamente que “algumas pessoas querem transformar o hábito de desvio de conduta na norma, e esse é o perigo, a resistência à mudança”.
Para João Ricardo Moderno, presidente da Academia Brasileira de Filosofia e professor de filosofia na Uerj, a origem da crise está na mudança da capital para Brasília, e tem base filosófica, que é a interpretação que se deu ao positivismo de Augusto Comte: o poder não pode ficar próximo da população, tem que ficar longe para pensar as melhores soluções para os problemas nacionais.
Para Moderno, “a capital federal tem que coincidir com a capital cultural, que requalifica o poder”. Para ele, o que está acontecendo é que o “neo-patrimonialismo brasileiro criou uma capital estatal, com todas as mordomias e benefícios, criou-se uma cultura local de que é um sacrifício ir para Brasília e que você tem que ter vantagens para estar lá, compensar o sacrifício”.
Essa política provocou “uma multiplicação das benesses, que criou uma cultura do benefício legal e uma paralela, do benefício ilegal, que se confundem”.
O privado invadindo o público foi incentivado por medidas como o salário dobradinha, o apartamento funcional, acabando por criar “uma categoria extremamente especial, a dos servidores públicos.
Brasília é a capital que tem o maior poder aquisitivo do país e não produz nada”, diz ele. (Continua amanhã)
DEU EM O GLOBO
Como bem disse o senador José Sarney no seu patético discurso de defesa, “ética é conduta”. E justamente na conduta de certos senadores, inclusive ele, está a explicação para o fato de que não é possível nivelar por baixo a atuação parlamentar. Não creio que o principal seja o julgamento deste ou daquele senador, mas sua postura diante do que fez, ou do que está acontecendo. A isso chama-se “ética”, conceito que varia de acordo com os tempos e os costumes. Roberto Romano, professor de filosofia da Unicamp, lembra que, se fizermos um levantamento da história do Ocidente, “encontramos pelos menos uns cinco paradigmas éticos fundamentais que foram se misturando com o tempo”
A cada vez que se tem um paradigma que permeia todas as relações sociais e políticas, a ética vai junto, comenta Romano. Mas, para falar de ética, ele ressalta que é preciso falar de uma virtude chamada prudência. “A lei geral vale para todo e qualquer indivíduo, mas, se você aplicar a lei sem nenhuma gradação, sem nenhuma consideração prudente, você faz um trabalho monstruoso”.
É nesse sentido que é preciso separar a atuação do senador Arthur Virgílio, que assumiu seus erros, dos que lutam para preservar os privilégios e manter a situação como está. Para Roberto Romano, “a doutrina das penas não pode dosar a pena igualmente, sem considerar a situação de tempo, espaço, a pessoa”.
Do ponto de vista da ética, do decoro, para o ex-dominicano Roberto Romano, “o senador Arthur Virgílio tem pecados veniais, enquanto está sendo massacrado por um Renan Calheiros que está cheio de pecados capitais”.
O fato é que o costume que vigorava no Congresso permitia desvios como os praticados pelo senador Arthur Virgílio e pela grande maioria dos senadores, e dos deputados: uso de verba indenizatória indiscriminadamente, passagens de avião para parentes e amigos, nomeação de parentes para seu gabinete ou para gabinetes de congressistas amigos, no cruzamento de favores, e até mesmo manter um funcionário pago pelo Senado em estudo no exterior, sem que fossem obedecidos os trâmites legais para essas situações.
Toda essa prática passou a ser inaceitável pela sociedade, e o que os congressistas deveriam ter feito era um mea culpa, como fizeram o tucano e diversos outros deputados e senadores no caso da verba indenizatória e das passagens de avião, e a partir daí colocarem mãos a obra para reformar a gestão do Congresso.
Mas seria preciso primeiro que o próprio presidente Sarney admitisse que os seus hábitos políticos estavam equivocados, deslocados no tempo, e se dispusesse a reformálos, como fez o líder tucano Arthur Virgílio, ou o deputado Fernando Gabeira, do PV. E, sobretudo, investigar o fato mais grave entre todos, a responsabilidade pelos decretos secretos e pela atuação do diretorgeral do Senado nomeado por ele 15 anos atrás.
Ao contrário, Sarney tenta sustentar o insustentável e até mesmo quando fez a coisa certa — devolver o dinheiro do auxílio-moradia — tenta passar à opinião pública a ideia que o fez por vontade própria, pois tinha direito a usá-lo.
Mostra, dessa maneira, que não está em condições de comandar a reforma administrativa que o Senado precisa.
Há uma diferença grande entre as duas posturas, e já que não estamos na Inglaterra, onde os deputados que gastaram abusivamente a verba indenizatória renunciaram aos mandatos, pelo menos demos um pequeno passo à frente com a atitude desassombrada do líder tucano, contrastando com as chantagens usadas por Renan Calheiros.
Marcílio Marques Moreira, ex-ministro da Fazenda e expresidente do Conselho de Ética Pública, ressalta que “esse ‘ethos’ (ética) pode ir mudando de acordo com a sociedade, como mudou na Grécia do ethos heróico do Homero para o ethos do trabalho, um pouco espelhando também as próprias condições daquela sociedade”.
Ele acha que no mundo todo tem havido um movimento no sentido de normas mais rigorosas, citando o caso recente dos políticos ingleses, que renunciaram ao Parlamento por “coisas de certa maneira semelhantes, com algumas analogias de utilizar recursos públicos para fins privados, caracterizando o conflito de interesses, aquele aspecto de maior risco da atividade pública”.
Marcílio vê um lado positivo no que está acontecendo em Brasília, significaria que estamos em uma transição, “mas todas transições são penosas”, ressalta. Enquanto não se consolida uma nova hierarquia de valores, “fica um espaço, um vazio, que pode aumentar muito esses conflitos. Apesar de haver retrocessos, acho que estamos evoluindo”.
O que o preocupa é justamente que “algumas pessoas querem transformar o hábito de desvio de conduta na norma, e esse é o perigo, a resistência à mudança”.
Para João Ricardo Moderno, presidente da Academia Brasileira de Filosofia e professor de filosofia na Uerj, a origem da crise está na mudança da capital para Brasília, e tem base filosófica, que é a interpretação que se deu ao positivismo de Augusto Comte: o poder não pode ficar próximo da população, tem que ficar longe para pensar as melhores soluções para os problemas nacionais.
Para Moderno, “a capital federal tem que coincidir com a capital cultural, que requalifica o poder”. Para ele, o que está acontecendo é que o “neo-patrimonialismo brasileiro criou uma capital estatal, com todas as mordomias e benefícios, criou-se uma cultura local de que é um sacrifício ir para Brasília e que você tem que ter vantagens para estar lá, compensar o sacrifício”.
Essa política provocou “uma multiplicação das benesses, que criou uma cultura do benefício legal e uma paralela, do benefício ilegal, que se confundem”.
O privado invadindo o público foi incentivado por medidas como o salário dobradinha, o apartamento funcional, acabando por criar “uma categoria extremamente especial, a dos servidores públicos.
Brasília é a capital que tem o maior poder aquisitivo do país e não produz nada”, diz ele. (Continua amanhã)
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