Pajelança é um conjunto de rituais realizados por um pajé com objetivo de cura ou previsão de acontecimentos futuros. Essa palavra entrou mais fortemente em nosso vocabulário em 1986, quando o cacique Raoni e o pajé Sapaim vieram ao Rio para tentar curar o cientista Augusto Ruschi, envenenado por um sapo. A cerimônia foi no Jardim Botânico e consistiu em soprar fumaça de um grosso cigarro azulado e, certamente, de orações rituais. Mais tarde a expressão se ampliou para a política, por causa das grandes reuniões com militantes que Brizola fazia na reta final da campanha.
A maioria dos políticos gosta de falar. Brizola gostava muito e, com longos discursos, transmitia a disposição de luta que podia ser decisiva em campanhas em que havia equilíbrio de forças. Ao transplantar a pajelança para a política, Brizola trabalhava a energia psicológica, destituída do conteúdo espiritual que os indígenas comunicam a ela. Tornou-a um ritual mais próximo dos jogadores de futebol que se abraçam no vestiário, ou mesmo do grito de uma torcida: Hip, hurra, é hora, é hora, é hora!
Não nego a importância da energia coletiva que eventualmente uma pajelança, no sentido político, possa injetar. Mas quando acionado fora da hora o ritual tende mais a inquietar do que propriamente a animar. Foi como me senti com a reunião de Dilma Rousseff com alguns empresários poderosos, tratados pela imprensa pelo apelido de PIB nacional. Na semana que antecedeu o encontro fontes no Planalto diziam à mídia que o objetivo da reunião era despertar o espírito animal dos capitalistas. Uma pajelança. Décadas de negação do capitalismo, de humanização do capitalismo e agora seus instintos animais se tornam o objeto do desejo da esquerda no poder. Instintos animais no bom sentido.
Em outro teatro, o pajé está às voltas exatamente com os instintos animais do capitalismo financeiro. Como não havia animal com porte capaz de nomeá-lo, recorreu-se à adaptação de uma catástrofe natural: tsunami de dólares. O governo atua como um domador do bicho capitalista, estimulando instintos em certas áreas e, no cenário mundial, pedindo que sejam contidos os instintos de cruzar fronteiras para lucros rápidos. O PIB nacional não foi tão alto. Há ainda aumento de empregos e distribuição de renda. O crescimento não é só um valor aritmético. Mas os problemas que temos pela frente são complexos demais para uma pajelança. Além do mais, segundo os próprios critérios de Brizola, a pajelança é boa ou má na medida em que dissemina esperanças. A simplicidade da escolha desconcertou quem esperava uma consciência maior de como é complexa a reativação econômica.
Outro espetáculo ofuscou a pajelança: a denúncia de corrupção na saúde do Rio. Foram dez minutos de denúncias no Fantástico, mostrando como as empresas agiam, oferecendo propina. Nele emergiu a lógica das novelas. Uma personagem se destacou: Renata Cavas. É um caso para aulas de roteiro. Ao longo do programa, ela desdobrou a personagem com coerência tal que acabou roubando a cena.
Quando sentiu a hesitação do "funcionário" representado pelo repórter da Globo, Renata tranquilizou-o quanto à normalidade da propina: "É a ética do mercado, entende?" Para quem diviniza o mercado, é como se dissesse: não é pecado. E em seguida, um pouco irritada com a ingenuidade do "funcionário", usou da ironia. "É legal um contrato que vamos assinar?" Renata: "Claro que é legal, carimbo, papel timbrado, até tipo sanguíneo".
Nesse momento do espetáculo ela se tornou vilã por ironizar quem desconhece os meandros da corrupção: uma grande parte dos brasileiros.
A personagem desdobra-se com a coerência de um autor. "Onde entra o dinheiro da propina?" Renata: "Shopping, subsolo, Quinta da Boa Vista, na Floresta da Tijuca, por exemplo, olha que chique!". "Em que moedas vocês pagam a propina?" Renata: "Na que você quiser, meu bem. Iens, você quer receber em iens?"
Quais os próximos capítulos?
Os governos decidiram revisar seus contratos. Só no Rio beiram os R$ 400 milhões. Como revisar contratos legais, timbrados e com tipo sanguíneo? A única pista são os aditivos. Legalmente não deveriam passar de 20%. Há caso de aditivos de 300% ao orçamento inicial. Será um trabalho áspero e ninguém pode prever o resultado final. Talvez Renata...
Não é só a investigação que promete baixo ibope. É também o desdobramento político, sobretudo no delicado campo de regular algumas práticas empresariais. Seguindo exemplo de alguns países, apresentei um projeto criando algumas normas para empresas brasileiras no exterior. Não eram moralistas, jogavam apenas com o elemento estratégico da imagem nacional num mundo em constante intercâmbio. Certos instintos animais podem morder o nosso próprio rabo. Resta perseguir como crítico de espetáculo o que não obtive na política.
Mas não se fazem mais pajelanças como a de Brizola nem surgem grandes ondas de indignação diante de denúncias que expõem desvios dos suados recursos nacionais. Talvez Sapaim continue fumando seu cigarro azul, desvendando os mistérios do futuro. Não precisamos mais de suas nuvens aromáticas. Precisamos, sim, de mais apitos. Só assim poderíamos revelar com clareza toda a complexa relação de fornecedores, governos e campanhas políticas. Os episódios ocorrem e submergem, como, por exemplo, um acidente de helicóptero na Bahia que mostrou a intimidade entre compradores e vendedores de obras públicas.
Brasília envia uma série de minicapítulos com a cena única de gente enfiando dinheiro no bolso, na valise, nas meias. Agora apareceu a reportagem do Fantástico. Quando é que veremos uma trama completa, com todos os principais vilões e um capítulo final?
Sempre há uma outra novela, dirão os céticos. Mas com outro enredo. Já há público para isso. O mecanismo foi escancarado. Não adianta fingir que não aconteceu. Só o otimismo de uma vilã poderia salvar a sorte do esquema. Ela diria: "Daqui a pouco os escândalos da Copa vão sepultar os desvios na saúde pública".
*Jornalista
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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