A Câmara impõe uma derrota histórica à presidente. Ela reage tentando isolar o PMDB e seu líder, Eduardo Cunha. E a luta continua...
Diego Escosteguy
No fim da tarde de domingo pós-Carnaval, a presidente Dilma Rousseff recebeu no Palácio da Alvorada o vice-presidente da República, Michel Temer, do PMDB, para uma conversa que deveria dar início às articulações destinadas a encerrar o motim de deputados aliados na Câmara – aquela turma apelidada de Blocão. Dilma estava irada. Recebeu Temer com a última edição de ÉPOCA aberta, em cima da mesa.
Nela, estava a entrevista do líder do PMDB, Eduardo Cunha, em que Cunha atacava o Planalto e dizia que Temer era o “fiozinho” que segurava a aliança entre PT e PMDB. “Olha aqui, ele te chamou de ‘fiozinho’”, disse Dilma, apontando para a revista. “Você virou o vice do ‘fiozinho’. Não dá. Com o Eduardo não tem mais conversa. Ele quer derrubar o governo.” Temer tentou contemporizar. “Não quero mais conversar com ele e ponto”, disse Dilma. “Não vou atacá-lo em público, mas ele não entra mais aqui.”
Dilma nunca confiara em Cunha. Lutou até para que ele não fosse eleito líder do PMDB e para que perdesse os cargos que detinha no governo Lula, como diretorias na Petrobras e em Furnas. Mesmo Lula, com quem Dilma se aconselhara dias antes, não confia em Cunha, embora tenha lhe dado – muito a contragosto – os cargos que Cunha lhe pedira em seu segundo mandato. Lula atribui a Cunha a principal derrota do governo dele no Congresso: a derrubada da CPMF, em 2007, que custou R$ 40 bilhões em impostos ao governo. “A presidente tem um horror quase físico ao Eduardo Cunha”, diz um dos conselheiros de Dilma. Talvez esse passado e a suprema desconfiança de Dilma, aliados à dificuldade histórica de Lula e do PT em entender como funciona o Congresso, ajudem a explicar o maior erro tático de Dilma em seus três anos de conturbada relação com o Parlamento. Um erro que fez o Blocão trocar as espingardas de chumbinho por Kalashnikovs apontados diretamente ao Planalto. Dilma, seus ministros e seu governo foram metralhados sem dó pelos deputados.
Ao tentar enquadrar Cunha, resumindo o problema a uma conspiração de um lobo solitário da política, e vendendo à opinião pública a versão de que não cederia ao fisiologismo do PMDB, Dilma não compreendeu que o problema não está em Cunha – ou apenas em Cunha. Vários deputados – do PT ao PMDB, passando por nanicos e demais partidos de aluguel – estão irritados com ela. E, ao se rebelar contra Dilma, muitos revelam, com palavras reservadas e gestos abertos de desafio, não acreditar que a reeleição dela seja tão certa assim. Dilma descobriu que a matemática da política é simples. Um, por mais poderosa que seja sua caneta, não soma mais que 513. Um presidente não enquadra um Congresso. Pode até comprá-lo, como fez Lula. Deu no mensalão. Mas, se não negociar francamente com ele, estará aberto a toda sorte de retaliação.
A previsível metralhada de Cunha veio na terça-feira, de maneira perfeitamente coreografada. Montou-se uma reunião da bancada do PMDB na Câmara para discutir como reagir. Alguns deputados foram orientados a pregar o rompimento com Dilma. Foram a público bater na presidente. Cunha, que não é bobo, desviou do soco da presidente. Disse ser um mero representante de seus pares. Dilma tornou a briga pessoal; Cunha soube fingir que não era. E usou palavras moderadas, para não perder o apoio de seu partido. Armou-se um levante, e os deputados, num ato devastador, aprovaram, por 267 votos favoráveis e apenas 28 contrários, a criação de uma comissão para investigar denúncias de propina na Petrobras. Um deputado de terceiro mandato tornava-se maior, ainda que por pouco tempo, que uma presidente da República.
A sova no caso Petrobras devolveu o Planalto à realidade. Era quase madrugada da quarta-feira quando o ministro da Casa Civil, Aloizio Mercadante, alcançou o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, ao celular. Pediu a ele que adiasse a votação do projeto que estabelece o Marco Civil da Internet, uma espécie de constituição dos direitos e deveres digitais dos brasileiros. Depois de muito adiar, e por isso muito se desgastar com os colegas, Alves marcara a votação do projeto para o dia seguinte. Não sem tempo: o Marco Civil, uma lei proposta pelo governo, emperra os trabalhos da Câmara há quatro meses. Como foi enviado com o selinho de urgência constitucional, furou a fila de outros projetos e deixou os deputados com duas opções: votá-lo ou paralisar o plenário da Câmara. Essa situação é descrita no jargão do Congresso como “trancar a pauta”. Na visão dos deputados e senadores, acontece com indesejável frequência no governo Dilma. É uma das razões para a briga da Câmara com o Planalto. Isso impede que os deputados votem leis de seu interesse e mostrem serviço aos eleitores de seus Estados.
A ligação de Mercadante a Alves demonstrava que o Planalto se dobrava ao óbvio: botar em votação o Marco Civil significaria uma derrota certa para o governo. Naquele momento, uma derrota do governo seria uma derrota de Dilma – uma derrota pessoal num projeto fundamental para o país.
“Tudo bem, vou dar um jeito de adiar de novo. Mas não pode passar da próxima semana”, disse Alves a Mercadante. “E desde que vocês tentem conversar direito com todos os líderes, inclusive com o Eduardo Cunha.” Alves condicionou o gesto de deferência ao Planalto ao diálogo para alertar Dilma para um fato incontornável. Se o Blocão ainda estiver na praça, mesmo que enfraquecido, o Marco Civil será derrubado na Câmara. E Dilma sofrerá uma derrota que lhe retirará qualquer vestígio de autoridade política no Congresso.
Se depender do PT, é uma derrota certa. Na manhã da quarta-feira, já sem a obrigação de garantir a aprovação do Marco Civil, os líderes do governo apanharam nas comissões da Câmara. Enquanto a tropa de Cunha aprovava a inacreditável convocação de nove ministros para prestar esclarecimentos na Câmara, ninguém achava o líder do PT, deputado Vicentinho. Era até covardia.
Ninguém protegia o governo na Câmara – nem o PT. Por volta do meio-dia, já desmoralizada no Congresso, Dilma procurou Temer. Avisou que nomearia, após meses de atraso, os dois ministérios que, no linguajar rasteiro de Brasília, pertencem ao PMDB da Câmara: Agricultura e Turismo. Temer argumentou que a bancada do PMDB já recusara publicamente os cargos.
As nomeações poderiam até esfriar a crise, mas seria prudente esperar alguns dias e consultar os deputados, de modo a saber se eles topariam mudar de ideia e, se assim fosse, que nomes indicariam. “Se a Câmara não quer indicar alguém, como vou fazer? Não dá para ficar esperando”, disse Dilma, antes de comunicar os nomes. Para a Agricultura, ela escolhera Neri Geller, que fora indicado para o cargo pelo PMDB no ano passado, antes da crise. Para o Turismo, uma enorme surpresa: Ângelo Oswaldo, um quadro do PMDB de Minas, contemporâneo de Dilma num colégio de Belo Horizonte. Uma indicação de ninguém seria uma encrenca para todos. O PMDB evidentemente reclamaria.
Dilma perguntou se Temer tinha alguma objeção aos nomes. Em outros tempos, quando não era apenas um bombeiro político, talvez ele procurasse dissuadir Dilma das nomeações. Mas Temer, um dos políticos mais experientes da República, sabe que os tempos são outros. Sabe que, a cada ferida nesse estranho corpo político formado entre PT e PMDB, seu capital político sangra. “Como é uma decisão da bancada, presidenta, prefiro não opinar”, disse Temer.
A nomeação de Ângelo Oswaldo durou pouco mais de 24 horas. Se alguns deputados do PMDB enxergaram um gesto de trégua na nomeação da Agricultura, todos se revoltaram com a indicação do amigo de Dilma para o Turismo. O amigo de Dilma – é assim que se referiam a ele os parlamentares – buscou apoio no senador José Sarney, do PMDB. “Está tudo degringolado. Não é assim que se faz política”, disse Sarney a Oswaldo, ao recebê-lo em sua casa na quinta de manhã. Sarney até tentou ajudá-lo, mas era tarde. Prevaleceu outro desconhecido: Vinícius Lages, uma indicação do presidente do Senado, Renan Calheiros – fato que criará mais uma briga em Brasília, entre os senadores do PMDB e os deputados do PMDB.
Se continuou errando com o PMDB, o governo falou a língua certa com o PP e o PR, dois partidos estratégicos para que o Planalto não perca por completo o controle da Câmara. Bastou deixar a hipocrisia da “faxina ética” de lado e prometer aos partidos o que queriam: cargos. Ao PR, Mercadante prometeu entregar quatro das sete diretorias do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes, o Dnit, órgão com orçamento anual de R$ 9 bilhões. Com o PP, as promessas foram ainda mais generosas. Mercadante prometeu um belo bônus, caso o partido deixe o Blocão: duas diretorias de agências reguladoras; mais cargos no Ministério das Cidades, já controlado pelo PP; uma diretoria no Conselho de Defesa da Atividade Econômica, o Cade, que processa cartéis de grandes empresas; e a presidência da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco, a Chesf. A palavra-chave nessas negociações é “prometer”. Mercadante prometeu. E se Dilma não cumprir, como aconteceu tantas vezes no passado recente? Blocão neles.
É no hábito do governo Dilma de quebrar promessas que confia a oposição. Os principais adversários de Dilma nas eleições, Eduardo Campos e Aécio Neves, atuam em sintonia com o Blocão, de modo a enfraquecer o governo em Brasília e a afanar palanques regionais de Dilma.
Ambos articulam as táticas do Blocão com líderes dos descontentes – especialmente Cunha. Na segunda-feira da semana passada, quando Dilma resolvera emparedar o Congresso, Cunha e Eduardo Campos tiveram uma longa conversa, da qual também participou rapidamente por telefone Aécio, para estabelecer que projetos e convocações serão usados nas próximas semanas para sangrar o governo. Não é uma conspiração do PMDB contra o governo. Trata-se mais de um alinhamento momentâneo de interesses entre as partes. Aécio e Eduardo Campos sabem que muitos dos descontentes do Blocão querem apenas usar a rebelião para faturar mais cargos – nunca deixarão o governo. “Mas podem prejudicar Dilma e não trabalhar pela eleição dela”, diz um dos articuladores do Blocão.
Enquanto o Blocão sangrava Dilma na Câmara, os candidatos sangravam Dilma nos discursos, que subiram de tom. “O Brasil não aguenta mais quatro anos de Dilma”, disse Eduardo Campos, cada vez mais próximo de Aécio e distante na mesma velocidade do PT. Aécio também bateu forte no governo. A principal pancada veio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Agora temos cooptação, e não coalizão, pois não se está brigando por um projeto para o país. É cooptação porque há um esvaziamento da agenda pública”, disse, ao qualificar o governo Dilma de “autoritário”.
As palavras de FHC – e o momento em que elas foram ditas – não são fortuitas. O que parecia impossível há alguns meses hoje é apenas improvável: ele pode ser o candidato a vice na chapa de Aécio. FHC autorizou o PSDB a fazer pesquisas qualitativas com seu nome. Começaram nesta semana, em São Paulo, Ceará e Rio Grande do Sul. Serão feitas em mais 14 Estados. Até o momento, as pesquisas dizem que a recuperação da imagem de FHC é “espantosa”, no dizer de uma das maiores autoridades do partido. Muitos no PSDB querem FHC como vice. A pressão é forte. Eles acham que FHC ajudará Aécio a vencer em São Paulo, e isso seria decisivo para um segundo turno das eleições. A amigos, FHC disse que, em último caso, concorrerá. “O que não podemos é ter mais quatro anos de Dilma”, disse a amigos, falando igualzinho a Eduardo Campos
Aos poucos, políticos de partidos diferentes começam a falar a mesma língua. E não é a língua de Dilma.
Com Leandro Loyola, Murilo Ramos e Marcelo Rocha
Fonte: Revista Época
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