sábado, 19 de fevereiro de 2022

Dora Kramer: Questão de estilo

Revista Veja

Rejeição a Bolsonaro é obra de uma vida que não pode ser mudada em passes de mágica

Os arquitetos da campanha do presidente Jair Bolsonaro parecem convencidos de que as traquinagens com o Tesouro não serão suficientes para reconstruir as relações dele com o eleitorado a fim de garantir um desempenho capaz ao menos de torná-lo competitivo na tentativa de reeleição. Pelo que andam dizendo, o candidato só terá salvação se o presidente mudar seu estilo.

Para suavizar a crítica ao comportamento de Bolsonaro, a ordem é atribuir a desventura eleitoral ao fato de ele não ter se vacinado e, por isso, agora se empenham em convencê-lo a se imunizar. O bruto, claro, resiste, embora provavelmente não por muito tempo. A julgar por essa versão edulcorada sobre a razão das desventuras presidenciais, uma vez vacinado, Bolsonaro estaria pronto a enfrentar Luiz Inácio da Silva e quem mais vier pela frente em condições de igualdade ou até mesmo bastante favoráveis em outubro.

De duas, uma: ou esse pessoal está delirando num exercício forte de autoengano ou a ideia é a de exercitar a arte da enganação para cima dos brasileiros. Não os que se deixam engambelar com entusiasmo, mas aqueles que integram o contingente de decepcionados que só faz crescer nos últimos três anos. Processo agravado pelas atitudes da chefia na crise sanitária, mas iniciado bem antes disso.

Sim, porque a rejeição é ao modo Bolsonaro de ser. O registro disso aparece nas pesquisas de opinião como resultado de um desmonte ao qual se dedicou com afinco ao longo do mandato. E da vida. Ganhou imensa gravidade quando ele se colocou no campo oposto à imensa maioria da população no combate à Covid-19, mas não se circunscreve às vacinas.

Desnecessário rememorar ponto a ponto o conjunto de uma obra fresca na memória geral e ainda em execução. O estilo faz a pessoa. Aí se localiza a impossibilidade de se alterar a imagem de Bolsonaro com a aplicação de passes de mágica a poucos meses da eleição. Se mesmo diante da improbabilidade vier a conquistar um segundo mandato, não terá sido por causa de uma transformação, mas porque o eleitorado resolveu renovar a aposta no estilo do homem. Que, de resto, não dispõe de ferramentas nem de vontade genuína de se reinventar.

Ninguém muda aos 66 anos de idade. Antes disso tampouco. Fernando Collor aos 43 tentou abandonar a autossuficiência que o fez acreditar que poderia aprontar à vontade e ainda assim governar contra tudo e contra (quase) todos, principalmente menosprezando os políticos. Pediu socorro ao PFL — uma espécie de Centrão da época —, mas era tarde. Sua marca de arrogância e improbidade estava impressa em cada um dos 441 votos favoráveis ao impeachment aprovado pela Câmara dos Deputados em 29 de setembro de 1992.

Dilma Rousseff, aos 68 anos de idade, também tentou amenizar os efeitos de sua completa inapetência para ouvir. Seja os roncos das ruas (em 2013) ou os reclamos do Congresso durante seu primeiro e parte do segundo mandatos. Buscou abrigo nas asas do PMDB — líder do figurino Centrão em voga na ocasião —, mas já havia deixado passar a oportunidade de se redimir. O carimbo da soberba e da rudeza no trato estava assinalado nos 367 votos que aprovaram o impeachment no dia 17 de abril de 2016.

Hoje em dia os aliados de Bolsonaro não são os únicos a acreditar na possibilidade de se operar transmutações de estilo. Os companheiros de João Doria na empreitada presidencial também se mostram dispostos à tarefa da conversão. De que maneira farão isso com um político cuja autoconfiança extremada gera uma antipatia forte a ponto de superar suas boas realizações, realmente é um mistério. Inclusive porque o governador de São Paulo não se ajuda. Por exemplo, ao chamar de “jantar de derrotados” um encontro de correligionários donos de estradas muito mais longas e ligações mais estreitas que as dele na política.

O maior obstáculo ao êxito de mudanças tardias reside nos erros cometidos na companhia da empáfia e cujos efeitos nefastos não puderam ser devidamente compreendidos porque a personalidade de seus autores impediu que fossem corrigidos. Quando acordam se veem numa situação praticamente irreversível. Em geral, Inês é morta, pois o prazo de que dispõem para consertar o mal autoimpingido é muito menor que o tempo gasto na exibição de seus defeitos por eles presumidos como vistosas qualidades.

Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2022, edição nº 2777

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

A Dilma só caiu porque não sabia ouvir mesmo,mas eu acho pouco pra derrubada de uma presidenta.