Folha de S. Paulo
A esquerda identitária elege a direita
identitária
Qual é a treta do dia? O cancelamento da
semana? Quando as expedições de policiamento identitário típicas das redes
sociais transbordam cotidianamente, como lava tóxica, às páginas da Folha, não duvide: as guerras
culturais tornaram-se um traço dominante da política nacional.
Há décadas, o Ocidente oscila no ritmo das guerras culturais. A direita inventou o artefato; a esquerda pós-marxista resolveu imitá-la. Tais conflitos organizam-se não sobre "o que fazer?", a interrogação política clássica, mas sobre "quem somos?", uma pergunta muito mais divisiva.
Na superfície, tudo parece simétrico.
Direita e esquerda definem-se pela sintaxe identitária. Numa ponta, identidades
nativistas (o "sangue francês", o "americano legítimo"),
culturais (a "civilização judaico-cristã") ou religiosas (o
cristianismo, os "valores da família"). Na ponta oposta, pela
esquerda, identidades de grupo (raça, gênero, orientação sexual).
As simetrias estendem-se aos domínios da
estratégia e da tática. Vitimismo: a "grande substituição", a
"invasão do Islã", a "cristofobia" —ou o "racismo
estrutural", o "genocídio negro", o "patriarcalismo".
Autoritarismo: o adversário é um inimigo existencial, a ser calado ou
encarcerado.
Abaixo da superfície, porém, despontam as
assimetrias. São elas que explicam o resultado inevitável das guerras
culturais: o triunfo da direita.
A direita opera identitarismos abertos, com
ambições majoritárias. Todos os cidadãos dos EUA podem definir a si mesmos como
"americanos legítimos", inclusive imigrantes e negros. A maioria dos
europeus tem a opção de enxergar sua imagem no espelho do cristianismo. O
chapéu enganoso dos "valores da família" pode ser usado por qualquer
brasileiro.
A esquerda, pelo contrário, opera
identitarismos fechados cuja vocação minoritária é exponencializada pela
ferramenta polêmica do "lugar de fala". Os "negros", mas
não todos: somente os que aceitam descrever-se como uma nação africana no
exílio e estabelecer beligerância perene com os não negros. As mulheres, mas
somente as que estão prontas a classificar os homens como uma população de
potenciais estupradores.
Assimetria. Os ativistas da direita
identitária procedem de partidos e igrejas; os da esquerda identitária, das
universidades. A origem determina o plano de guerra: o objetivo principal dos
primeiros é ocupar as instituições políticas representativas; o dos segundos,
ocupar as instituições culturais. Uma bancada no Congresso ou o controle sobre
reitorias? Senadores ou artigos de opinião no jornal da classe média? Deputados
ou o palanque da Flip? Cadeiras no STF ou comissões da OAB?
Nos EUA, pátria das guerras culturais, só a
pandemia evitou a reeleição de Trump, os
republicanos controlam o Supremo, devem vencer as eleições legislativas e
avançam sobre o voto hispânico. Na Europa, o pêndulo inclina-se à direita,
emergem fortes partidos nacionalistas, a xenofobia e a islamofobia envenenam
até os partidos social-democratas. A esquerda não tem chance no jogo do
conflito assimétrico.
No Brasil, onde a guerra cultural semeou um
movimento de ultradireita em solo virgem, o cenário não é tão diferente. Lula, que reserva
o discurso identitário apenas para feriados, provavelmente vencerá. No
Congresso, porém, a paisagem é outra.
Como triunfar na arena eleitoral acusando
os brancos em geral de serem racistas, "mesmo se não têm consciência
disso"? Qual é o resultado de um discurso fundado no pecado original da
cor da pele, que distribui culpas e punições? Como persuadir uma maioria
sentenciada de antemão por crimes odiosos que não cometeu?
O cortejo da direita, encabeçado pelos
bispos de negócios, não poderia sonhar com adversários melhores que os
sacerdotes da Igreja Racialista e suas falanges de Censores do Bem. A esquerda
identitária elege a direita identitária.
Um comentário:
O racista que não tem ''consciência'' de ser racista é pior que o racista declarado.É claro que as vezes a gente é acusado de racista sem ser,mas tem muito racismo na sociedade brasileira,sim.
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