Folha de S. Paulo
Eleição não é vitória partidária, e sim do
voto contrário a um caráter negativo e favorável a outro
Suprema autoridade judiciária desculpou-se ao presidente eleito por não lhe ter permitido, quando ainda em detenção, despedir-se do irmão morto. Não foi gesto institucional, mas pessoal. Na melhor das hipóteses, repercussão moral de recomendação recente do papa Francisco sobre "vigilância do coração".
Entidade nenhuma é agente moral, isso é apanágio de pessoas, como salienta o
linguista e ativista Noam Chomsky.
O mesmo juízo aplica-se a partido político: um programa de melhor distribuição de justiça social ou de retidão de conduta não lhe atribui disposição de alma. Instituições podem guiar-se por princípios equitativos, mas são constituídas por pessoas, às quais cabe agência moral.
Isso não implica individualismo, enquanto
autonomia de uma isolada "dignidade moral" frente à sociedade, e sim
prevalência de qualidades pessoais, de valores humanos para além da máquina
social. Pessoa é o indivíduo considerado em seu revestimento moral, portanto,
naquilo que o torna sensível à coexistência de um outro. Saber que alguém tem o
direito de comparecer a um funeral, e ainda assim impedi-lo, é um fato de
pessoa, do invólucro dos atributos de caráter.
A corrosão da democracia acoplada à corrosão
do caráter na sociedade incivil demanda atenção ao fenômeno, que perpassa até
empresas, obrigando-as a remanejar regras utilitaristas, com vistas a
responsabilidade social e compliance. Amplia-se o campo ético da pessoa. É
ilustrativo o caso atual do
Twitter: o poder da organização mostra-se subitamente afetado
pela superexposição negativa do caráter do novo dono, competência técnica à
parte.
Não se trata de verdade última do sujeito,
mas de reconstrução pessoal, assim como se faz reengenharia empresarial ou
retrofit arquitetônico. Nenhum delírio de marketing motivacional: é algo posto
em prática nas novas gerações, em estilos de vida que modulam a personalidade.
Está em pauta, aliás, o modo
"goblin" de ser, jeito autoindulgente e desleixado dos jovens
pós-pandêmicos, que não é uma mutação identitária, mas novo "look"
pessoal de classe média.
Por um lado, pessoa e imagem respiram na
atmosfera da mídia, sem exigências de caráter. Por outro, reflorescem na cena
política, na medida em que o esvaziamento da representação parlamentar abre-se
para populismos, assim como para o confronto de qualificações morais
relevantes. Frente Democrática, sim, para repelir o extremismo.
Mas a eleição presidencial não é vitória
partidária, e sim do voto popular contrário a um caráter negativo e favorável a
outro, que se compromete a resgatar os miseráveis da miséria. Logicamente, é
também um ato de esperança na reconstrução das velhas práticas.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ,
autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar
Nagô".
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