Folha de S. Paulo
Com Lula no Planalto, partido criado nos
anos 80 terá agora como um dos desafios reorganizar a democracia brasileira
O Partido dos
Trabalhadores é o maior vencedor de eleições presidenciais da história
do Brasil. Ganhou 5 das 8 eleições da Nova República. Ficou em segundo lugar em
todas as que perdeu. Esteve em todos os segundos turnos.
Os outros dois maiores vencedores, o velho
PSD (1945-1964) e o PSDB, somados, venceram 4 vezes.
Entre os partidos que disputaram com o PT até hoje, dois acabaram (o PRN de Collor e o PSL de Bolsonaro). O PSDB, maior rival dos petistas, é hoje uma sombra do que já foi: perdeu as fortalezas de São Paulo e Minas Gerais para direitistas mais radicais e sua bancada no Congresso tem o mesmo tamanho da do PSOL.
Depois de 1989, quando o PT iniciou seu processo de moderação programática, o partido só perdeu eleições presidenciais para o Plano Real, uma imensa realização tucana; e quando Sergio Moro, em um julgamento irregular, impediu Lula de concorrer em 2018.
A capacidade de sobrevivência do PT é ainda mais impressionante tendo em conta o tamanho da crise que atingiu o partido em 2015-2018.
A Lava
Jato atingiu em cheio a direção do partido. Os erros de política
econômica dos dois anos anteriores cobraram seu preço. Dilma
Rousseff sofreu impeachment. O partido foi massacrado nas eleições
municipais de 2016, perdendo mais da metade de suas prefeituras. Em 2018, Lula foi
preso.
Parecia óbvio que o PSDB venceria a eleição
presidencial daquele ano, e talvez uma outra força de esquerda, como PSOL, PDT
ou a Rede Sustentabilidade, tomasse o lugar do PT na liderança da esquerda
brasileira.
Quatro anos depois, Lula
subirá a rampa do Planalto neste domingo (1º) como o primeiro
brasileiro a derrotar um presidente que concorria à reeleição.
Não há dúvida de que o PT tem muito a
agradecer à direita brasileira por sua ressurreição. Do impeachment de Dilma ao
não impeachment de Bolsonaro, é difícil encontrar uma boa decisão da direita
brasileira nos últimos oito anos.
Além disso, como primeiro partido
brasileiro criado fora do Estado, o PT tem uma base em movimentos sociais e uma
militância que lhe permitem sobreviver bem na oposição, como teve que fazer nos
últimos anos.
E sobretudo: em um país desigual como o
Brasil, seria surpreendente se o eleitorado, em eleições majoritárias, não
votasse no partido da redistribuição de renda.
Por outro lado, se os petistas se mostraram
competentes em se organizar fora do Estado e na luta por redistribuição, sempre
puderam contar com instituições que evoluíam na direção certa, tornando-se cada
vez mais parecidas com as de democracias estáveis.
O PT e os movimentos sociais que o
sustentavam puderam se organizar de maneira crescentemente livre à medida que a
transição democrática progrediu nos anos 80.
Quando Lula assumiu a Presidência em 2003,
sucedeu um governo indiscutivelmente democrata, que havia conseguido
reestabelecer um mínimo de funcionalidade para o capitalismo brasileiro. Até
hoje, foi a única transição pacífica entre esquerda e direita de nossa
história.
O PT foi importantíssimo na construção da
democracia brasileira, mas o PMDB e sua dissidência tucana entregaram grande
parte do "instituições funcionando" que permitiu ao PT colocar em prática
seu programa.
Nos últimos anos, Jair Bolsonaro
desorganizou grande parte dessas conquistas da democracia. Foram anos de caos
institucional e guerra entre os Poderes, de sucessivas tentativas de golpe por
parte do presidente da República, de deterioração moral no debate público, de
desmonte de políticas públicas que todos já considerávamos permanentes, como a
política de vacinação.
Nomes de generais voltaram a frequentar o
noticiário político, um sinal evidente de regressão ao nível de país vagabundo.
Bolsonaro mudou a Constituição três meses
antes da eleição para poder gastar mais dinheiro durante a campanha.
Dias antes da posse, um
terrorista bolsonarista foi preso tentando explodir o aeroporto de
Brasília. Graças ao bolsonarismo, o Brasil é muito pior em 2022 do que era em
2003, quando Lula assumiu a Presidência pela primeira vez.
Isto é, dessa vez o PT não vai poder apenas
implementar suas políticas públicas preferidas. Vai ter que reorganizar a
democracia brasileira. Quando o PMDB fez isso nos anos 80, acabou perdendo sua
identidade ideológica e fracassando na gestão da economia. O PT vai saber fazer
melhor?
Ao contrário do que diz boa parte dos
analistas, os sinais emitidos por Haddad sobre a gestão econômica são bons. Mas
os desafios são muito grandes.
Desde que a ditadura quebrou o Brasil no
começo dos anos 80, nunca mais tivemos bons índices de crescimento. O
crescimento mais rápido dos dois governos de Lula foram, em boa parte,
consequência do superciclo das commodities, que não deve se repetir agora.
A economia brasileira precisa ser bastante
reformada para tornar-se capaz de competir globalmente. O novo governo petista
vai saber encaminhar esse processo sem gerar efeitos sociais adversos? Ninguém
conseguiu até agora.
Nos últimos anos, enquanto Bolsonaro
tentava destruir a democracia, um outro processo ocorria paralelamente –e com
mais sucesso: a recomposição da classe política após o choque da Lava Jato.
Esse processo teve momentos positivos, como
a reforma política de 2017 e o reforço do financiamento público de campanha,
velha bandeira petista. Com o financiamento público, a corrupção ao menos se
tornou opcional para os políticos brasileiros que querem se eleger.
Mas o pós-Lava Jato também teve momentos
trágicos, como o desmonte dos mecanismos de combate à corrupção, acelerado por
Bolsonaro.
Com presidentes abalados por escândalos e
crises, o Congresso alterou o processo orçamentário para tomar poder da
Presidência, o que ameaça a funcionalidade do sistema.
Justamente os setores mais fisiológicos do
centrão saíram fortalecidos da crise da Lava Jato, porque a disputa
presidencial tornava os escândalos do PT e do PSDB mais visíveis.
O que Lula vai conseguir fazer com o que
sobrou da classe política? Que mecanismos de combate à corrupção podem ser
implementados para que o fim da Lava Jato não se torne um vale-tudo que já
deixe encomendado o próximo levante populista?
Finalmente, o que Lula vai fazer com a
classe que ajudou a criar, com o que já foi chamado de "Nova Classe
Média" mas que é, no fundo, uma classe trabalhadora não miserável?
Muita gente dessa turma votou em Bolsonaro
em 2022. O que é possível fazer para que tenham empregos melhores, digamos, na
indústria? Ou para que os empregos que têm, digamos, como entregadores de comida,
lhes ofereçam condições melhores de trabalho?
O que é possível fazer pelos brasileiros
pobres que pretendem se estabelecer como empreendedores? Como garantir
programas de formação profissional que de fato gerem aumento de renda, como o
Senai que Lula frequentou na juventude?
Além das tarefas de governo, como ficará a
autoimagem do PT nos próximos anos, quando terá que se posicionar como líder de
uma federação de centro-esquerda?
Na prática, o PT funcionou nas últimas
décadas como o grande partido social-democrata da América Latina. Mas o debate
interno do partido nunca acompanhou esse processo.
Que ideias os intelectuais petistas criarão
para dar conta do novo cenário? O que saberão aproveitar de outras tradições de
pensamento? Que diálogo o PT estabelecerá com a esquerda mundial?
O PT não foi criado em 1980 para realizar
as tarefas que agora tem diante de si. Na crise política que já vai completar
dez anos, o PT caiu primeiro. Entretanto, em 2023, é o último cara em pé. É
quem sobrou para começar a resolver tanto os velhos problemas que Bolsonaro não
teve interesse em resolver quanto os novos problemas que Bolsonaro criou.
Torço sinceramente para que o PT consiga ao
menos dar início a essa reconstrução. Torço para que, daqui a quatro anos, ou o
PT vença de novo, por ter sido bem-sucedido, ou dê lugar a uma centro-direita
expurgada de bolsonaristas, algo que jamais teria condições de aparecer sem a
vitória de Lula em 2022.
Torço, enfim, para que o primeiro
experimento de partido brasileiro criado fora do Estado, uma das experiências
social-democratas mais interessantes do sul global, sobreviva aos enormes
desafios dos próximos anos.
*Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra), autor de "PT, uma História" e colunista da Folha
3 comentários:
"Entretanto, em 2023, é o último cara (cara = PT) em pé. É quem sobrou para começar a resolver tanto os velhos problemas que Bolsonaro não teve interesse em resolver quanto os novos problemas que Bolsonaro criou."
Como digo, é o PT q resolve os desastres criados pela direita. E NÃO O CONTRÁRIO. E na direita estão os milicos, os empresários, os liberais...
Carece sairmos desse círculo vicioso de "better call PT". A direita precisa fazer um governo minimamente competente - porém, são desastrosos e aí...chamem o PT, de novo, pra consertar!
Constatação: como não consegue (a direita) um nível mínimo de eficiência, só lhe sobra a violência, o golpe, pra tentar implantar suas agendas. Como agora. Daí, ANISTIA NUNCA MAIS! Eh, círculo vicioso!
Ótimo artigo!
Grandes questões! Mesmo não confiando no PT, acho que o colunista foi muito feliz nas suas reflexões e no reconhecimento da grande importância deste partido! Passou muito brevemente por cima da corrupção institucionalizada pelo PT e por todos os erros dos governos Dilma, mas no restante foi bastante preciso. Magnífico texto!
O colunista fez uma radiografia perfeita do PT.Parabéns!
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