Folha de S. Paulo
Não há pensamento livre se não pudermos
dizer o que pensamos
Diante das escaramuças constantes entre os
que defendem ou atacam a liberdade de expressão, a tentação é sempre responder:
faça o que acha que tem que fazer, mas pelo menos use argumentos de melhor
qualidade. Afinal, quem ainda aguenta receber, à guisa de argumento final, o
meme com a falsa citação de Voltaire: "Eu discordo do que você diz, mas
defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo"? Jura? Devo morrer para
que você diga, p. ex., que vacina causa autismo e, com isso, mate outras tantas
pessoas?
E quem ainda confia na crença numa tal de
"liberdade absoluta de expressão" defendida por quem, na semana
passada, estava perseguindo autores, fechando exposições, proibindo filmes e
removendo posts?
Numa época em que grupos ideológicos fazem vertiginoso revezamento entre uma defesa intransigente da liberdade de fala e a gritaria furiosa por "remova, interdite, cale-se", parece que todas as justificativas à liberdade de expressão não passem de argumentos de conveniência política sem qualquer princípio que as sustente. Não é verdade. Há algumas boas razões pela liberdade de expressão, assim como há argumentos para sustentar que a limitação de certos tipos de discurso é compatível com a democracia liberal. Apresentarei os primeiros hoje, prometendo voltar para falar sobre discurso de ódio na próxima semana.
A mais clássica justificativa da liberdade
de expressão é o conhecido argumento da descoberta da verdade. A ideia é
intuitiva, e desconcertantemente otimista: se as opiniões e ideias forem
deixadas livres, e for estimulado o atrito entre elas, as verdadeiras findarão
por prevalecer sobre as falsas. Há uma versão mais cautelosa que apenas diz que
a censura é inferior à discussão livre como método para que as pessoas possam
identificar as ideias erradas, uma vez que o censor pode acabar suprimindo a
priori ideias verdadeiras em virtude de preferência ou de incapacidade. É um
argumento clássico, não necessariamente uma justificativa forte. Em ambientes
científicos talvez isso se dê, mas nos ambientes sociais não nos parece, por
experiência, que as ideias falsas estejam fadadas inexoravelmente ao fracasso.
Ao contrário.
A justificativa baseada na autonomia dos
cidadãos parece mais promissora. Na fórmula de Scanlon, um ser humano não é
realmente autônomo se o Estado precisa protegê-lo, filtrando o que ele deve ler
ou ouvir, para que não corra o risco de adotar convicções falsas. Na versão de
Dworkin, quando o Estado decreta que não confia na maturidade dos seus cidadãos
para ler ou ouvir opiniões que lhes possam persuadir a adotar convicções
perigosas ou ofensivas, na verdade os insulta, subestimando-os e os
considerando moralmente irresponsáveis. Cidadãos têm direito à independência
moral, que lhes é retirada quando a autoridade se permite pré-selecionar o
conteúdo a que eles podem ser expostos.
Há ainda a justificativa baseada no
desenvolvimento pessoal. Quem não pode formular e expressar com liberdade suas
crenças, principalmente por meio da discussão de pontos de vista, nunca
alcançará realmente a maioridade. Sem essa liberdade, não há como cada um
escolher seu projeto de vida de acordo com a própria convicção do que é uma
vida boa e digna.
Há também o forte argumento de que a vida
democrática não se sustenta sem uma deliberação pública aberta, livre e franca,
ou, ao contrário, com controles autoritários sobre o que se deve falar e o que
deve ser ouvido. Isso impõe à autoridade, inclusive à do Estado, uma essencial
neutralidade de pontos de vistas ante as perspectivas que são válidas numa
democracia. Direita e esquerda, liberais e conservadores, representam
perspectivas legítimas num regime republicano, de forma que o Estado não pode
favorecer uns e preterir outros nem nas regulações sobre a vida pública nem na
produção de leis e outras decisões políticas. É preciso reservar espaço para
posições desagradáveis ou molestas desde que compatíveis com a democracia, caso
contrário serão perdidas coisas valiosas para a vida em comum, como a
igualdade, o pluralismo, a liberdade de pensamento e a liberdade de buscar o
bem e a felicidade em meus próprios termos.
Por fim, há o mais recente argumento: sem
liberdade de expressão, perdemos, enquanto seres pensantes, a capacidade de estabelecer
o intercâmbio reflexivo que nos faz humanos e cidadãos. Não há de fato
pensamento livre se os seres humanos não puderem dizer uns aos outros o que
realmente acreditam. Sem liberdade de fala, não há liberdade de pensamento.
*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
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