Improvisos e indefinições no caminho do carro popular
Valor Econômico
Incrível que um governo que diz pretender
colocar a agenda verde no centro de seu planejamento tente ressuscitar uma má
ideia em circunstâncias tão inoportunas
O programa de incentivo ao carro popular foi ajeitado às pressas, sabe-se lá com que finalidade, e parece ter nascido morto. Ele foi concebido sem que se definam contrapartidas de receitas para a redução de impostos, que também não foram definidos - os mais cotados são IPI e PIS-Cofins, mas o IOF no crédito pode ser incluído. Mesmo com os descontos nos preços, os automóveis populares, ainda que passem a custar um pouco abaixo dos R$ 60 mil, continuarão inacessíveis. Eles seguirão três condicionantes, o que torna impossível estimar seu custo a priori. A conta dos especialistas varia de R$ 2 bilhões a R$ 8 bilhões, enquanto a do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fala em menos de R$ 1 bilhão. Os detalhes do plano, anunciado na semana passada, serão divulgados em 15 dias, mais um caso de uma ideia (ruim) anunciada, correndo depois atrás do dinheiro, que não se sabe se existe.
Em princípio, dentro da agenda passadista
de Lula, havia a impressão de que se tratava de incentivar o carro popular a
curto e médio prazos, aumentando as vendas hoje deprimidas da indústria
automobilística e, com isso, as de toda sua enorme cadeia de fornecedores e de
serviços. Se fosse isso já seria um grande equívoco, mas pelo visto, o erro
será de curta duração. No dia em que Lula anunciou seu plano, Haddad mencionou
que algumas medidas teriam de ficar para o ano que vem, por motivos óbvios, ou
seja, porque o ministro da Fazenda corre contra o tempo para arrumar mais
recursos e, assim, manter de pé o arcabouço fiscal recém aprovado pela Câmara,
que depende sobretudo de aumento da arrecadação.
No dia seguinte, em entrevista à GloboNews,
Fernando Haddad disse que o programa do carro popular terá duração de uns “três
ou quatro meses”, enquanto representantes da indústria contavam com pelo menos
um ano, prazo no qual acrescentariam vendas de 200 mil a 300 mil veículos. As
intenções do governo tornaram-se ainda mais obscuras e incongruentes quando o
ministro disse que o pouco tempo do incentivo era uma resposta imediata para
desafogar os lotados pátios das montadoras, ou dar fluxo a estoques excessivos.
É um mistério por que o Planalto está preocupado com o excesso de estoques
apenas das montadoras quando sabe que outros setores da economia estão com o
mesmo problema.
Haddad mencionou o crédito restritivo e os
juros altos para explicar que, com a queda do custo do dinheiro e a retomada da
economia, que ele estima para já, a redução de impostos não seria mais
necessária. Ainda que assim fosse, há mais pontos nebulosos. Os descontos, como
foi divulgado, variarão de 1,5% a 10,96%, uma gradação que depende do grau de
nacionalização do veículo, de sua eficiência energética e do preço. No entanto,
nenhum dos carros que poderiam ser considerados de “entrada” no mercado, mesmo
com o abatimento máximo, custaria menos de R$ 61,4 mil (Folha de S. Paulo, 26
de maio).
É possível que sejam então fabricados novos
carros, ainda mais simples, que ganharão o incentivo da redução de impostos.
Então isso nada teria a ver com os estoques existentes, e daria um empurrão de
um trimestre na produção, ou um pouco mais, para ser interrompido em seguida.
As montadoras, no entanto, por várias razões, desembarcaram do carro popular há
um bom tempo. Várias argumentaram que ele não era lucrativo, ou que suas
margens de ganho eram bastante reduzidas. Concentraram-se em modelos mais
caros.
Entre o auge do carro popular, em 2013,
quando foram vendidos 3,57 milhões de veículos (total, não apenas dos modelos
mais simples) e agora há um milhão de veículos a menos de vendas. Embaladas
pelo avanço da demanda puxada pelos populares, as montadoras elevaram sua
capacidade de produção para 4,5 milhões de unidades. A ociosidade hoje ronda os
50%, fábricas já vêm sendo fechadas e as indústrias tentam se adequar ao
mercado que, para complicar um problema já complexo, está em completa
transformação no mundo todo, com a chegada do carro elétrico, direção autônoma
etc. Não foi à toa que, seja qual for o programa que finalmente sairá, as
montadoras não se comprometeram com a manutenção dos empregos.
Entre o período de pico e o fim do carro
popular, a economia mudou. Houve a maior recessão em quase 100 anos, perda
significativa de renda da população, alta do desemprego e um aumento do
endividamento das famílias, que ainda não parou de crescer. As chances de que a
tentativa de impulsionar artificialmente a demanda dê errado são enormes. Além
disso, o mundo caminha em outra direção, de revolucionar a mobilidade urbana,
incentivando a redução do uso de transporte individual e ampliando a dos
coletivos, eletrificados, com maior tecnologia, e, principalmente, minimizando
ou, de preferência, dispensando o uso de combustíveis fósseis.
Parece incrível que um governo que lançou
um programa que se apoia no aumento de receitas e que diz pretender colocar a
agenda verde no centro de seu planejamento seja capaz de ressuscitar uma má
ideia e, ainda mais, em circunstâncias tão inoportunas.
Recepção de Lula a Maduro foi vexatória
O Globo
Ditador venezuelano foi tratado pelo
presidente brasileiro como se fosse um “amigo de fé” democrata
É conhecido o apego do presidente Luiz
Inácio Lula da
Silva às “ditaduras amigas” do PT — especialmente, Cuba, Nicarágua e Venezuela
—, mas passou muito do tom a recepção efusiva ao ditador venezuelano, Nicolás
Maduro, recebido por Lula no Palácio do Planalto com todas as honras de
chefe de Estado na véspera da reunião com presidentes da América do Sul.
Num discurso recheado de incoerência e exagero,
Lula se referiu ao encontro com Maduro como “momento histórico”. Aproveitou
para dizer que o Brasil recuperou o direito de fazer relações internacionais
“com seriedade”. Criticou os Estados Unidos pelo embargo econômico “pior do que
uma guerra” e, numa ofensa às famílias das vítimas da ditadura, chamou
de “narrativas” a constatação de que a Venezuela não vive sob regime
democrático. Os presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e do Chile,
Gabriel Boric, condenaram as declarações de Lula.
Em que planeta vive ele? Ao contrário do
que diz, os ataques à democracia na Venezuela estão longe de ser fantasia. São
fatos comprovados por organizações internacionais e locais que tentam resistir
à asfixia imposta pelo governo autocrata. Lula parece não querer enxergar o
óbvio: o regime chavista, que se perpetua no poder há duas décadas e meia
manipulando regras eleitorais e manietando as instituições, é marcado por
violação de direitos humanos, censura à imprensa, perseguição a opositores,
submissão de Judiciário e Legislativo ao Executivo e práticas perversas que não
fazem parte do cotidiano de Estados democráticos.
Pode ser considerado democrático um país
que mantém 300 presos políticos e cala qualquer oposição? Segundo o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, além de prender
jornalistas, políticos, sindicalistas e cidadãos que não seguem à risca a
cartilha chavista, o governo Maduro obstrui sistematicamente o trabalho da
Assembleia Nacional. A mão de ferro não esconde as crises econômica, social e
humanitária que assolam o país. A Human Rights Watch estima que 7 milhões de
venezuelanos emigraram. No Brasil, o êxodo pressiona Roraima, estado que recebe
contingentes cada vez maiores da população fustigada pelo desemprego e pela
miséria.
Lula foi eleito para seu terceiro mandato
sob a bandeira da defesa da democracia. Reuniu uma frente ampla num momento em
que as instituições republicanas eram ameaçadas pela conspiração golpista que
eclodiria no 8 de Janeiro. É no mínimo contraditório que celebre com
desenvoltura um regime oposto a tudo que pregou aos eleitores.
Não está errado o presidente brasileiro
buscar integração com as nações da América do Sul. O isolamento durante o
governo Jair Bolsonaro, regional e mundial, era um equívoco. Também é
compreensível o gesto de reaproximação com a Venezuela, cujo governo estava
afastado do Brasil desde 2016. Faz sentido o Brasil manter relações com Maduro
e até mediar uma eventual transição venezuelana de volta à democracia. Nada
disso destoaria da tradição da política externa brasileira.
Mas nenhum outro líder que participou do
encontro no Itamaraty foi tão bajulado quanto Maduro. Uma coisa é o governo
brasileiro se oferecer como negociador para uma transição à democracia. Outra,
bem diferente, é estender tapete vermelho a um ditador, chamá-lo de democrata
contra todas as evidências e tratá-lo como “amigo de fé, irmão camarada”. É
vexatório.
Descalabros perdoados pela PEC da Anistia
envergonham classe política
O Globo
Deputados e senadores insistem em levar
adiante proposta que anula as sanções impostas pela Justiça Eleitoral
Descalabros dos partidos políticos nos
últimos anos estão mais perto de ser chancelados pela Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) que perdoa todo tipo de farra das legendas com o dinheiro do
contribuinte. A PEC da Anistia avança no Congresso depois de ter sido aprovada
por ampla maioria na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Uma análise do
GLOBO em processos de prestação de contas à Justiça
Eleitoral mostra que tipo de inconsistência será perdoada se o
texto passar em plenário.
A extravagância mais bizarra foi o
reembolso de R$ 61 mil do então PSL (hoje parte do União Brasil) a um político
que abasteceu o mesmo carro com gasolina e diesel. O caso aconteceu em 2018,
mas faz parte das análises mais recentes (o TSE leva em média cinco anos para
julgar as contas dos partidos). Também em 2018, o Democracia Cristã (DC)
declarou ter gastado R$ 64 mil com combustível, sem comprovar que a despesa
tinha ligação com a atividade partidária, como determina a lei. O abastecimento
foi feito no posto que tem como sócio o presidente do partido, José Maria
Eymael. O DC disse ao GLOBO que o posto pratica preços de mercado e negou
vantagem escusa. Não havia outro posto para abastecer que não o do
democrata-cristão Eymael?
Noutro caso sob investigação do Ministério
Público Eleitoral, o DEM declarou ter gastado quase R$ 1 milhão fretando
aviões. Alegou que foram despesas da campanha de Rodrigo Maia à presidência da
Câmara. O valor chamou a atenção por ser maior que o pago em 2022 pelos
presidenciáveis Soraya Thronicke (R$ 875 mil) e Ciro Gomes (R$ 822 mil) com
aluguel de aeronaves.
Situação também comum é usar o dinheiro
público em despesas que nada têm a ver com a atividade partidária. O PROS
(incorporado posteriormente ao Solidariedade) foi condenado a devolver R$ 134
mil usados na compra de 3,7 toneladas de carne para churrasco. De tão
escandaloso o episódio, os parlamentares cogitam vetar a anistia para casos
assim. Outras irregularidades graves acaso seriam toleráveis?
A miríade de incongruências revela a urgência de moralizar os gastos dos partidos com dinheiro do contribuinte. Lamentavelmente os parlamentares — de quase todas as legendas e correntes ideológicas — seguem apoiando a maior anistia da História recente aos malfeitos partidários. Além das fraudes e pedaladas nas prestações de contas, ela abrange descumprimento das cotas para mulheres e negros nas eleições. As multas, nos casos comprovados de mau uso das verbas dos fundos eleitoral e partidário, têm efeito pedagógico para coibir práticas nefastas. O “liberou geral” promovido pela oportunista PEC da Anistia é, ao contrário, um incentivo para que os recursos públicos destinados com fartura aos partidos escorram pelo ralo.
Mesuras ao ditador
Folha de S. Paulo
No afã de apoiar autoritarismo da
Venezuela, Lula apequena diplomacia brasileira
Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não deixou
vestígios de conduta autoritária ao longo de sua longa trajetória política
—mesmo velhos ensaios de controle da imprensa nunca foram levados a cabo. O que
mancha sua reputação democrática é o apoio, para o qual arrasta o Estado
brasileiro, a regimes ditatoriais de seu horizonte ideológico.
Não chegaram a surpreender, portanto, as
mesuras e afagos de Lula ao ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, que voltou a
visitar o Brasil depois de oito anos e participou de um encontro de presidentes
da América do Sul.
Nada há de errado, do ponto de vista
diplomático, em manter relações com regimes autoritários de qualquer
orientação, seja por interesses comerciais ou geopolíticos, seja na negociação
por liberdade e direitos humanos.
Nesse sentido, a política de enfrentamento
a Maduro, conduzida por Jair Bolsonaro (PL) sob a inspiração do americano
Donald Trump, mostrou-se estéril —ou, pior, contribuiu para fortalecer o
discurso persecutório do vizinho.
Já Lula foi, na segunda-feira (29), muito
além de mostrar a correta disposição ao diálogo. Não
satisfeito em proporcionar uma recepção de gala ao visitante, prestou-se a
defender o regime chavista.
De acordo com o mandatário brasileiro, a
caracterização da Venezuela como uma ditadura não passa de uma
"narrativa", que pode perfeitamente ser substituída por
outra. O país vizinho sofre centenas de sanções internacionais, segundo a
narrativa lulista, "porque outro país não gosta dele".
Há zonas cinzentas entre uma democracia
plena e um regime autoritário, mas não pode restar dúvida de que a Venezuela há
muito cruzou essa fronteira. Esta Folha
considera Maduro um ditador desde agosto de 2017, depois da criação
de uma Assembleia Constituinte para enfrentar o Legislativo de maioria
oposicionista.
Mas o processo de degradação da democracia
venezuelana começou bem antes, sob Hugo Chávez, que esteve no poder de 1999 a
2013, quando morreu. O caudilho aproveitou a popularidade obtida graças à alta
dos preços do petróleo para aparelhar as instituições e ampliar os próprios
poderes.
Maduro assumiu quando os ventos econômicos
já mudavam de direção —e patrocinou uma escalada de atrocidades documentadas
pela ONU, incluindo torturas e assassinatos, enquanto o país mergulhava numa
crise humanitária comparável aos impactos de guerras.
No afã de defender uma esquerda arcaica,
obscurantista e autoritária, Lula não apenas alimenta mentiras descaradas.
Também apequena a diplomacia brasileira e relativiza o sofrimento de milhões de
cidadãos em um país devastado.
Espanha polarizada
Folha de S. Paulo
Premiê arrisca antecipar eleição geral para
reverter vitória regional da direita
A polarização política é fenômeno que se
espraia pelo Ocidente. Na Europa, a ultradireita chegou ao poder na Itália e na
Suécia. Agora, a Espanha está em situação que pode gerar desfecho similar —o
que é inesperado, dado que o país é um dos bastiões do socialismo continental,
ao lado de Portugal.
O conservador
Partido Popular (PP) venceu as eleições regionais —municipais,
algumas estaduais e em parte para o Parlamento— realizadas no domingo (28). Na
prática, a direita tomou o controle de quase todas as regiões do país.
Já o Partido Socialista Operário Espanhol
(PSOE), de centro-esquerda, ficou em segundo e perdeu o poder em grandes
cidades notáveis pelo suporte à esquerda, como Sevilha e Valência.
A ascensão do PP se deu a partir de
coalizões com o Vox, partido neófito de ultradireita. Em comparação com 2019, a
queda do PSOE foi ínfima, de 29% para 28% dos votos. Mas o PP passou de 23%
para 31%, enquanto o Vox conseguiu duplicar sua votação geral, de 3,5% para 7%.
O resultado foi tão surpreendente que Pedro
Sánchez, premiê espanhol do PSOE, antecipou as eleições gerais que
seriam realizadas em novembro para 23 de julho.
Sánchez quer evitar desgaste de imagem e
pressionar o eleitorado de esquerda a ir às urnas (foi fraco o comparecimento
no pleito regional) para impedir uma escalada da direita radical no âmbito
federal.
O movimento é arriscado, dado que os
problemas que levaram ao fortalecimento da oposição não têm solução fácil nem
rápida.
No poder desde 2019, após eleições que
também foram antecipadas, Sánchez realizou acordos controversos com grupos
separatistas catalães e nacionalistas bascos —até com candidatos condenados por
terrorismo. A questão territorial é tão delicada no país que une eleitores de
esquerda e direita contra o divisionismo.
Ademais, o PSOE firmou aliança com o Unidas
Podemos, coligação de ultraesquerda que promoveu pautas de costumes polêmicas,
em temas como aborto e direitos de transgêneros. Parte dos votos no Vox foi
resposta a isso.
A situação espanhola reflete a polarização
política, observada também, guardadas as proporções, no cenário brasileiro:
ações rumo a determinado objetivo ideológico geram reações do campo oposto.
Vota-se menos pelo desejado e mais contra o que se considera inaceitável, o que pode favorecer solavancos na alternância de poder.
Lula envergonha o Brasil
O Estado de S. Paulo
Para petista, inúmeras evidências de
atrocidades na Venezuela não passam de ‘narrativas’ contra o ‘companheiro
Maduro’; vexame rasga de vez a fantasia da ‘frente ampla democrática’
O presidente Lula da Silva envergonhou o
Brasil de uma maneira como poucas vezes se viu nos últimos tempos – e olhe que
o País passou muita vergonha durante o mandato do antecessor de Lula, Jair
Bolsonaro. Depois de estender o tapete vermelho para Nicolás Maduro, pária
mundial por razões óbvias, o petista declarou que o tirano venezuelano é um
governante legitimamente eleito e que a Venezuela, portanto, é uma democracia
exemplar.
Na opinião de Lula, todas as inúmeras
denúncias de violações de direitos humanos, de manipulação das eleições e de
perseguição a dissidentes e jornalistas naquele país não passam de “narrativa
que se construiu contra a Venezuela”. Lula então sugeriu ao “companheiro
Maduro” que “construa a sua narrativa”, que “será infinitamente melhor do que a
narrativa que eles têm contado contra você”.
“Eles”, no caso, são os “nossos
adversários”, conforme Lula chama aqueles que “vão ter que pedir desculpas pelo
estrago que eles fizeram na Venezuela”. Encabeçam essa lista os Estados Unidos
e a União Europeia, que impuseram sanções contra o regime chavista por conta
das atrocidades cometidas por Maduro. Na “narrativa” de Lula, americanos e
europeus simplesmente “não gostam” de Maduro, por puro “preconceito”, e por
isso resolveram inviabilizar o governo chavista – e as agruras dos
venezuelanos, com hiperinflação, escalada da miséria e da fome e êxodo de 7
milhões de cidadãos em poucos anos, seriam resultado das sanções internacionais,
e não da ruína do país promovida pelo chavismo.
Não há dúvidas de que o Brasil deveria
restabelecer relações com a Venezuela, grosseiramente rompidas, por razões
puramente ideológicas, pelo governo Bolsonaro. Exportamos para o vizinho cerca
de US$ 1 bilhão e importamos quase US$ 500 milhões. Ambos compartilham mais de
2 mil km de fronteira na Região Amazônica, delicada tanto do ponto de vista
ambiental quanto em razão do narcotráfico. Cerca de 20 mil brasileiros vivem na
Venezuela, e, entre imigrantes e refugiados, há mais de 300 mil venezuelanos no
Brasil.
Nada disso significa, no entanto, que o
Brasil deva ignorar que a Venezuela é hoje talvez a mais violenta ditadura da
América Latina, só rivalizando com a da Nicarágua – outro país governado por um
“companheiro” de Lula, o ditador Daniel Ortega. Não se espera que Lula saia por
aí a denunciar os crimes desses tiranos, mas se espera, sim, que ele não
insulte a inteligência alheia nem os venezuelanos que padecem horrores sob as
patas de Maduro ao declarar que na Venezuela vigora uma democracia plena e que,
por isso, Maduro é governante legitimamente eleito. Em relatório recente, o
Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU informou que “os serviços secretos
militares e civis do Estado venezuelano funcionam como estruturas efetivas e
bem coordenadas na implementação de um plano orquestrado no mais alto nível do
governo para reprimir dissidências através de crimes contra a humanidade”. Eis
aí a “narrativa” que Lula pretende denunciar.
É difícil saber o que governou a decisão de
Lula de afagar Maduro dessa maneira indecente. Ao fazê-lo, o presidente
desqualificou o Brasil como eventual mediador entre Maduro e a oposição nas
negociações para a distensão do regime. Ademais, internamente, o gesto de Lula
tende a implodir de vez a fragilíssima “frente ampla” que o elegeu e com a qual
prometeu governar, algo incompreensível diante da necessidade premente de
construir governabilidade.
Nada disso parece importar para Lula. Em
seus delírios, a Venezuela voltará a se beneficiar de vultosas obras de
infraestrutura financiadas pelo Brasil, como se o Ministério da Fazenda não
estivesse catando moedas no vão do sofá para fechar as contas. Lula também
promete ajudar a Venezuela a integrar os Brics. Como se sabe, Rússia e China,
junto com autocracias como Irã, Turquia e Arábia Saudita, planejam transformar
esse grupo econômico de emergentes em um clube geopolítico antiocidental. A
julgar pelo obsceno discurso de Lula, é uma narrativa que faz brilhar os olhos
do chefão petista, que parece sonhar acordado com o dia de sua consagração como
grande líder desse tal “Sul Global”.
Reprovação em massa no teste da
transparência
O Estado de S. Paulo
É mau presságio para democracia 23
Assembleias Legislativas tirarem notas regular, ruim e péssima em índice criado
para mapear critérios de publicidade e integridade de suas ações
Somente a Câmara Legislativa do Distrito
Federal e as Assembleias Legislativas do Espírito Santo, de Minas Gerais e do
Ceará passaram no teste da transparência, integridade e governança pública,
informou o Estadão em reportagem publicada na semana passada, com base em
levantamento elaborado pelo capítulo brasileiro da Transparência Internacional.
Na composição do Índice de Transparência e Governança Pública (ITGP), apenas 4
entre 27 unidades da Federação são capazes de oferecer dados que deveriam estar
facilmente disponíveis para o distinto público. É o caso de dados relevantes,
como o custeio de despesas dos deputados estaduais, os salários pagos a
servidores, as viagens oficiais, a agenda de parlamentares com grupos de
interesse ou até informações prosaicas, como a presença em plenário.
Se as assembleias com nota razoável têm o
que comemorar, os resultados, quando vistos em seu conjunto, se mostram
especialmente sombrios. O ITGP aponta cinco classificações: ótimo, bom,
regular, ruim e péssimo. Nenhuma Casa obteve a nota “ótimo”. As quatro
aprovadas alcançaram o índice “bom”. A maior parte foi avaliada como regular
(12) e ruim (8). Três – Piauí, Amapá e Acre – foram consideradas péssimas. São
levadas em conta ainda a existência ou não de legislações estaduais ou de
regulamentação que garantam acesso às informações de temas como lobby, proteção
de cidadãos após denúncias, divulgação de dados abertos ou proteção de dados
pessoais.
Maus presságios. Se há o aspecto positivo
detectado pelo Índice da Transparência, de que a maioria das Assembleias
Legislativas (16) regulamentou a Lei de Acesso à Informação (LAI), demonstra-se
que a regulamentação, por si, não basta. Desde 2011, a LAI se transformou num
bem-vindo instrumento para garantir a obtenção, por qualquer cidadão, de dados
de seu interesse que venham do poder público. Há, no entanto, um conjunto de
medidas adicionais a serem adotadas, além de informações elementares que podem
e devem ser divulgadas espontaneamente pelas Casas. Sem elas, abrem-se caminhos
para esconder malfeitos ou proteger atos ou interesses nada republicanos.
O Brasil se habituou a conferir ao Poder
Legislativo – e, em particular, ao Congresso Nacional – algumas das avaliações
mais desabonadoras entre as instituições. Mas, se na instância federal a
sociedade olha com lentes mais atentas e exigentes, no caso das Assembleias
Legislativas e, por que não dizer, das Câmaras de Vereadores, a ausência de
regras de transparência, a captura dos parlamentares pela força de governadores
e prefeitos e o menor grau de independência jornalística ante o poder local
reduzem drasticamente as chances de fiscalização do poder público e de
acompanhamento e identificação de eventuais irregularidades, que existem em
profusão.
Consta do anedotário político que o
deputado mineiro José Bonifácio (1904-1986), líder do governo no regime militar,
presidente da Câmara dos Deputados e homônimo do Patriarca da Independência, um
dia conduzia um parlamentar novato pelas dependências do Congresso, enquanto
vaticinava: “Aqui tem de tudo. Tem ladrão, honesto, canalha, gente séria...”.
Após uma breve pausa a um só tempo irônica e dramática, concluiu: “Só não tem
bobo”. Preciso ou não esse relato, a frase converteu-se em bordão por muitos
anos para representar não apenas o Congresso, como qualquer similar nas esferas
estadual e municipal.
Apesar dos seus mais variados vícios da prática política, as Casas Legislativas estaduais, a exemplo do Congresso, representam os interesses de seus eleitores – inclusive aqueles que delas discordam – e, mesmo com todos os seus defeitos, organizam consensos e dissensos da sociedade, e por elas passam temas de grande relevância para a população. São ainda armas de vigilância necessária (e pacífica, convém acrescentar), para o devido controle, acompanhamento e aperfeiçoamento das ações do Poder Executivo. Não fosse tal importância, problemas como este detectado em boa hora pela Transparência Internacional não seriam dignos de nota.
A tentação do crédito subsidiado
O Estado de S. Paulo
Presidente do BNDES acha ‘indispensável’ a
volta do subsídio e flerta com erros passados
O governo recorreu ao anúncio de duas novas
linhas de crédito do BNDES para tentar amenizar, na celebração do Dia da
Indústria, a frustração de expectativas com a falta de um pacote industrial
mais robusto, que tivesse no barateamento dos carros populares seu eixo
principal. “Não tem como ter anúncio agora, não. Vamos ter de acertar mais”,
disse o presidente Lula da Silva aos empresários que o receberam na Fiesp.
O plano B, o lançamento de duas linhas de
crédito à exportação de produtos industriais de R$ 2 bilhões cada uma, foi
apresentado pelo presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, como uma façanha
diante do atual cenário de juros altos. “Estamos indo para o osso”, disse,
referindo-se à redução da taxa de remuneração do banco (spread) na oferta de
financiamentos em uma das linhas.
Mercadante vendeu a ideia de que pretende
aproximar as condições de crédito da indústria às do agronegócio, voltou a
prometer uma mudança no banco com taxas diferenciadas de juros e acabou por
defender a volta dos subsídios como medida “indispensável” para a economia
girar no pós-pandemia. Um argumento inquietante diante do histórico recente do
excesso de subsídios do banco de fomento.
Crédito subsidiado é a forma mais fácil de
o BNDES elevar seus desembolsos e direcionar crédito a segmentos específicos
numa política que já mostrou não ter dado certo. Afora o perigo da porta
entreaberta a eventuais escolhas e favores guiados por puro interesse político
– que pode recair em companhias que nem têm dificuldade em captar capital –, o
banco tende com isso a se afastar do que deveria ser o seu alvo prioritário:
financiar o avanço em infraestrutura, transição energética, inovação e
crescimento de pequenas empresas.
No museu de grandes novidades que tem sido
este novo mandato de Lula, ideias adotadas em antigas gestões petistas voltam a
circular a despeito do resultado ruim que apresentaram. E o que parece novo
carece de credibilidade.
No dia do evento da Fiesp, o presidente
Lula e o vice Geraldo Alckmin, em artigo publicado no Estadão, defenderam a
“neoindustrialização” como o fio condutor da política econômica. “Temos de
facilitar o acesso ao capital, reduzindo seu custo, para que os empreendedores
possam criar e expandir os seus negócios”, sustentaram. O mérito da iniciativa
foi amplamente reconhecido. As ressalvas foram em relação à incapacidade de
abandonar políticas que já se mostraram incapazes de sustentar o crescimento.
Como disse o economista Armando Castelar,
do Ibre/FGV, o argumento usado pelo governo “falha em não olhar atrás e tirar
lições das várias políticas industriais que o País teve”.
A discussão sobre o BNDES deixar de ser um carreador de recursos para o governo, repassando ao Tesouro 60% dos dividendos que obtém, é válida. É preciso trocar a missão prioritária de contribuir para o resultado das contas públicas pelo reforço de caixa para financiar projetos que não encontram amparo na iniciativa privada e que são imprescindíveis para o crescimento do País. Mas a tentação populista, tão bem simbolizada pelo “carro popular” e pelo crédito subsidiado, parece irresistível.
Necessidade de ajustar o tom
Correio Braziliense
"Lula deixa claro que busca recolocar
o Brasil como protagonista da geopolítica internacional, cada vez mais
polarizada entre Estados Unidos e Europa de um lado, e Rússia e China do
outro"
Nos primeiros meses do seu terceiro
mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem priorizado preencher o
vácuo que o Brasil deixou nas relações internacionais nos últimos quatro anos.
Com a ida a cúpulas globais desde que foi eleito e antes mesmo de tomar posse,
como na COP27, em novembro, no Egito, Lula deixa claro que busca recolocar o
Brasil como protagonista da geopolítica internacional, cada vez mais polarizada
entre Estados Unidos e Europa de um lado, e Rússia e China do outro, com os
demais países orbitando perifericamente. Defensor dos interesses nacionais,
incluindo os comerciais.
Desde a posse, Lula fez uma extensa agenda
de viagens para participar de reuniões do Mercosul, na Argentina, e dos Brics,
na China, marcando a retomada dos dois blocos econômicos que reúnem o primeiro
e o terceiro maiores parceiros comerciais do Brasil. Visitou os Estados Unidos
e fez ainda viagens a países da Europa, como Inglaterra, Espanha e Portugal e
mais recentemente foi à reunião do G7, no Japão, onde participou de vários
encontros bilaterais. Passou ainda pelos Emirados Árabes.
Agora, articulou a realização de um fórum
dos países da América Latina, para unificar as posições das nações em temas
comuns e na defesa de interesses econômicos. Com a presença de 10 chefes de
Estado, a cúpula ocorreu e estabeleceu pontos que vão de maior integração em
energia e infraestrutura e uma moeda comum a até ações conjuntas em relação às
mudanças climáticas e à mobilidade de estudantes, professores e pesquisadores,
passando por uma maior integração comercial e na área de saúde.
Com o fórum, Lula coloca o Brasil na
liderança da América Latina. Mas se teve a intenção de promover a
integração — que ele próprio diz ser necessária, apesar das divergências
ideológicas —, o que é correto e louvável, há um erro grave no tom adotado pelo
presidente brasileiro ao defender o colega da Venezuela. Ao afirmar que a
situação no país é uma "narrativa" construída de fora, Lula ignora que
Nicolás Maduro está no governo desde 2013 e há prisões de opositores e
perseguição a jornalistas críticos ao seu comando. Não, não se tratam de
narrativas as acusações de ações antidemocráticas e problemas relacionados a
direitos humanos no país vizinho, governado por decreto e com poderes especiais
conferidos ao chefe de Estado.
Lula viu a cúpula proposta para unificar os
países se tornar o palco da divisão ideológica que dificulta a integração
regional, que seguramente não ocorrerá se essas diferenças forem jogadas para
debaixo do tapete. Mesmo que tenha dito a Maduro que a forma de a Venezuela
responder ao mundo é realizando eleições livres e democráticas, o presidente
brasileiro ultrapassou a linha ao não se ater ao pragmatismo da aproximação com
a Venezuela, o que é de interesse do Brasil do ponto de vista comercial e até
porque o governo Maduro tem uma dívida de US$ 1,27 bilhão com o nosso país.
Não é a primeira vez que Lula erra pelo
discurso embora a intenção seja certa. Ao defender a paz na Europa, culpou a Rússia
e a Ucrânia igualmente pela guerra, quando na realidade o território ucrâniano
foi invadido por tropas russas, gerando assim um mal-estar desnecessário e
tirando o foco da defesa da paz, que interessa ao planeta. O presidente Lula
recoloca o Brasil no mundo, mas precisa se lembrar de que o mundo de hoje é
muito diferente do tempo globalizado dos seus primeiros mandatos. Se for
lembrado que entre os pontos da cúpula está a democracia, direitos humanos e
proteção às instituições, a exaltação feita por Lula a Maduro fere de antemão
esses princípios.
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