quarta-feira, 31 de maio de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Improvisos e indefinições no caminho do carro popular

Valor Econômico

Incrível que um governo que diz pretender colocar a agenda verde no centro de seu planejamento tente ressuscitar uma má ideia em circunstâncias tão inoportunas

O programa de incentivo ao carro popular foi ajeitado às pressas, sabe-se lá com que finalidade, e parece ter nascido morto. Ele foi concebido sem que se definam contrapartidas de receitas para a redução de impostos, que também não foram definidos - os mais cotados são IPI e PIS-Cofins, mas o IOF no crédito pode ser incluído. Mesmo com os descontos nos preços, os automóveis populares, ainda que passem a custar um pouco abaixo dos R$ 60 mil, continuarão inacessíveis. Eles seguirão três condicionantes, o que torna impossível estimar seu custo a priori. A conta dos especialistas varia de R$ 2 bilhões a R$ 8 bilhões, enquanto a do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fala em menos de R$ 1 bilhão. Os detalhes do plano, anunciado na semana passada, serão divulgados em 15 dias, mais um caso de uma ideia (ruim) anunciada, correndo depois atrás do dinheiro, que não se sabe se existe.

Em princípio, dentro da agenda passadista de Lula, havia a impressão de que se tratava de incentivar o carro popular a curto e médio prazos, aumentando as vendas hoje deprimidas da indústria automobilística e, com isso, as de toda sua enorme cadeia de fornecedores e de serviços. Se fosse isso já seria um grande equívoco, mas pelo visto, o erro será de curta duração. No dia em que Lula anunciou seu plano, Haddad mencionou que algumas medidas teriam de ficar para o ano que vem, por motivos óbvios, ou seja, porque o ministro da Fazenda corre contra o tempo para arrumar mais recursos e, assim, manter de pé o arcabouço fiscal recém aprovado pela Câmara, que depende sobretudo de aumento da arrecadação.

No dia seguinte, em entrevista à GloboNews, Fernando Haddad disse que o programa do carro popular terá duração de uns “três ou quatro meses”, enquanto representantes da indústria contavam com pelo menos um ano, prazo no qual acrescentariam vendas de 200 mil a 300 mil veículos. As intenções do governo tornaram-se ainda mais obscuras e incongruentes quando o ministro disse que o pouco tempo do incentivo era uma resposta imediata para desafogar os lotados pátios das montadoras, ou dar fluxo a estoques excessivos. É um mistério por que o Planalto está preocupado com o excesso de estoques apenas das montadoras quando sabe que outros setores da economia estão com o mesmo problema.

Haddad mencionou o crédito restritivo e os juros altos para explicar que, com a queda do custo do dinheiro e a retomada da economia, que ele estima para já, a redução de impostos não seria mais necessária. Ainda que assim fosse, há mais pontos nebulosos. Os descontos, como foi divulgado, variarão de 1,5% a 10,96%, uma gradação que depende do grau de nacionalização do veículo, de sua eficiência energética e do preço. No entanto, nenhum dos carros que poderiam ser considerados de “entrada” no mercado, mesmo com o abatimento máximo, custaria menos de R$ 61,4 mil (Folha de S. Paulo, 26 de maio).

É possível que sejam então fabricados novos carros, ainda mais simples, que ganharão o incentivo da redução de impostos. Então isso nada teria a ver com os estoques existentes, e daria um empurrão de um trimestre na produção, ou um pouco mais, para ser interrompido em seguida. As montadoras, no entanto, por várias razões, desembarcaram do carro popular há um bom tempo. Várias argumentaram que ele não era lucrativo, ou que suas margens de ganho eram bastante reduzidas. Concentraram-se em modelos mais caros.

Entre o auge do carro popular, em 2013, quando foram vendidos 3,57 milhões de veículos (total, não apenas dos modelos mais simples) e agora há um milhão de veículos a menos de vendas. Embaladas pelo avanço da demanda puxada pelos populares, as montadoras elevaram sua capacidade de produção para 4,5 milhões de unidades. A ociosidade hoje ronda os 50%, fábricas já vêm sendo fechadas e as indústrias tentam se adequar ao mercado que, para complicar um problema já complexo, está em completa transformação no mundo todo, com a chegada do carro elétrico, direção autônoma etc. Não foi à toa que, seja qual for o programa que finalmente sairá, as montadoras não se comprometeram com a manutenção dos empregos.

Entre o período de pico e o fim do carro popular, a economia mudou. Houve a maior recessão em quase 100 anos, perda significativa de renda da população, alta do desemprego e um aumento do endividamento das famílias, que ainda não parou de crescer. As chances de que a tentativa de impulsionar artificialmente a demanda dê errado são enormes. Além disso, o mundo caminha em outra direção, de revolucionar a mobilidade urbana, incentivando a redução do uso de transporte individual e ampliando a dos coletivos, eletrificados, com maior tecnologia, e, principalmente, minimizando ou, de preferência, dispensando o uso de combustíveis fósseis.

Parece incrível que um governo que lançou um programa que se apoia no aumento de receitas e que diz pretender colocar a agenda verde no centro de seu planejamento seja capaz de ressuscitar uma má ideia e, ainda mais, em circunstâncias tão inoportunas.

Recepção de Lula a Maduro foi vexatória

O Globo

Ditador venezuelano foi tratado pelo presidente brasileiro como se fosse um “amigo de fé” democrata

É conhecido o apego do presidente Luiz Inácio Lula da Silva às “ditaduras amigas” do PT — especialmente, Cuba, Nicarágua e Venezuela —, mas passou muito do tom a recepção efusiva ao ditador venezuelano, Nicolás Maduro, recebido por Lula no Palácio do Planalto com todas as honras de chefe de Estado na véspera da reunião com presidentes da América do Sul.

Num discurso recheado de incoerência e exagero, Lula se referiu ao encontro com Maduro como “momento histórico”. Aproveitou para dizer que o Brasil recuperou o direito de fazer relações internacionais “com seriedade”. Criticou os Estados Unidos pelo embargo econômico “pior do que uma guerra” e, numa ofensa às famílias das vítimas da ditadura, chamou de “narrativas” a constatação de que a Venezuela não vive sob regime democrático. Os presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric, condenaram as declarações de Lula.

Em que planeta vive ele? Ao contrário do que diz, os ataques à democracia na Venezuela estão longe de ser fantasia. São fatos comprovados por organizações internacionais e locais que tentam resistir à asfixia imposta pelo governo autocrata. Lula parece não querer enxergar o óbvio: o regime chavista, que se perpetua no poder há duas décadas e meia manipulando regras eleitorais e manietando as instituições, é marcado por violação de direitos humanos, censura à imprensa, perseguição a opositores, submissão de Judiciário e Legislativo ao Executivo e práticas perversas que não fazem parte do cotidiano de Estados democráticos.

Pode ser considerado democrático um país que mantém 300 presos políticos e cala qualquer oposição? Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, além de prender jornalistas, políticos, sindicalistas e cidadãos que não seguem à risca a cartilha chavista, o governo Maduro obstrui sistematicamente o trabalho da Assembleia Nacional. A mão de ferro não esconde as crises econômica, social e humanitária que assolam o país. A Human Rights Watch estima que 7 milhões de venezuelanos emigraram. No Brasil, o êxodo pressiona Roraima, estado que recebe contingentes cada vez maiores da população fustigada pelo desemprego e pela miséria.

Lula foi eleito para seu terceiro mandato sob a bandeira da defesa da democracia. Reuniu uma frente ampla num momento em que as instituições republicanas eram ameaçadas pela conspiração golpista que eclodiria no 8 de Janeiro. É no mínimo contraditório que celebre com desenvoltura um regime oposto a tudo que pregou aos eleitores.

Não está errado o presidente brasileiro buscar integração com as nações da América do Sul. O isolamento durante o governo Jair Bolsonaro, regional e mundial, era um equívoco. Também é compreensível o gesto de reaproximação com a Venezuela, cujo governo estava afastado do Brasil desde 2016. Faz sentido o Brasil manter relações com Maduro e até mediar uma eventual transição venezuelana de volta à democracia. Nada disso destoaria da tradição da política externa brasileira.

Mas nenhum outro líder que participou do encontro no Itamaraty foi tão bajulado quanto Maduro. Uma coisa é o governo brasileiro se oferecer como negociador para uma transição à democracia. Outra, bem diferente, é estender tapete vermelho a um ditador, chamá-lo de democrata contra todas as evidências e tratá-lo como “amigo de fé, irmão camarada”. É vexatório.

Descalabros perdoados pela PEC da Anistia envergonham classe política

O Globo

Deputados e senadores insistem em levar adiante proposta que anula as sanções impostas pela Justiça Eleitoral

Descalabros dos partidos políticos nos últimos anos estão mais perto de ser chancelados pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que perdoa todo tipo de farra das legendas com o dinheiro do contribuinte. A PEC da Anistia avança no Congresso depois de ter sido aprovada por ampla maioria na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Uma análise do GLOBO em processos de prestação de contas à Justiça Eleitoral mostra que tipo de inconsistência será perdoada se o texto passar em plenário.

A extravagância mais bizarra foi o reembolso de R$ 61 mil do então PSL (hoje parte do União Brasil) a um político que abasteceu o mesmo carro com gasolina e diesel. O caso aconteceu em 2018, mas faz parte das análises mais recentes (o TSE leva em média cinco anos para julgar as contas dos partidos). Também em 2018, o Democracia Cristã (DC) declarou ter gastado R$ 64 mil com combustível, sem comprovar que a despesa tinha ligação com a atividade partidária, como determina a lei. O abastecimento foi feito no posto que tem como sócio o presidente do partido, José Maria Eymael. O DC disse ao GLOBO que o posto pratica preços de mercado e negou vantagem escusa. Não havia outro posto para abastecer que não o do democrata-cristão Eymael?

Noutro caso sob investigação do Ministério Público Eleitoral, o DEM declarou ter gastado quase R$ 1 milhão fretando aviões. Alegou que foram despesas da campanha de Rodrigo Maia à presidência da Câmara. O valor chamou a atenção por ser maior que o pago em 2022 pelos presidenciáveis Soraya Thronicke (R$ 875 mil) e Ciro Gomes (R$ 822 mil) com aluguel de aeronaves.

Situação também comum é usar o dinheiro público em despesas que nada têm a ver com a atividade partidária. O PROS (incorporado posteriormente ao Solidariedade) foi condenado a devolver R$ 134 mil usados na compra de 3,7 toneladas de carne para churrasco. De tão escandaloso o episódio, os parlamentares cogitam vetar a anistia para casos assim. Outras irregularidades graves acaso seriam toleráveis?

A miríade de incongruências revela a urgência de moralizar os gastos dos partidos com dinheiro do contribuinte. Lamentavelmente os parlamentares — de quase todas as legendas e correntes ideológicas — seguem apoiando a maior anistia da História recente aos malfeitos partidários. Além das fraudes e pedaladas nas prestações de contas, ela abrange descumprimento das cotas para mulheres e negros nas eleições. As multas, nos casos comprovados de mau uso das verbas dos fundos eleitoral e partidário, têm efeito pedagógico para coibir práticas nefastas. O “liberou geral” promovido pela oportunista PEC da Anistia é, ao contrário, um incentivo para que os recursos públicos destinados com fartura aos partidos escorram pelo ralo.

Mesuras ao ditador

Folha de S. Paulo

No afã de apoiar autoritarismo da Venezuela, Lula apequena diplomacia brasileira

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não deixou vestígios de conduta autoritária ao longo de sua longa trajetória política —mesmo velhos ensaios de controle da imprensa nunca foram levados a cabo. O que mancha sua reputação democrática é o apoio, para o qual arrasta o Estado brasileiro, a regimes ditatoriais de seu horizonte ideológico.

Não chegaram a surpreender, portanto, as mesuras e afagos de Lula ao ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, que voltou a visitar o Brasil depois de oito anos e participou de um encontro de presidentes da América do Sul.

Nada há de errado, do ponto de vista diplomático, em manter relações com regimes autoritários de qualquer orientação, seja por interesses comerciais ou geopolíticos, seja na negociação por liberdade e direitos humanos.

Nesse sentido, a política de enfrentamento a Maduro, conduzida por Jair Bolsonaro (PL) sob a inspiração do americano Donald Trump, mostrou-se estéril —ou, pior, contribuiu para fortalecer o discurso persecutório do vizinho.

Já Lula foi, na segunda-feira (29), muito além de mostrar a correta disposição ao diálogo. Não satisfeito em proporcionar uma recepção de gala ao visitante, prestou-se a defender o regime chavista.

De acordo com o mandatário brasileiro, a caracterização da Venezuela como uma ditadura não passa de uma "narrativa", que pode perfeitamente ser substituída por outra. O país vizinho sofre centenas de sanções internacionais, segundo a narrativa lulista, "porque outro país não gosta dele".

Há zonas cinzentas entre uma democracia plena e um regime autoritário, mas não pode restar dúvida de que a Venezuela há muito cruzou essa fronteira. Esta Folha considera Maduro um ditador desde agosto de 2017, depois da criação de uma Assembleia Constituinte para enfrentar o Legislativo de maioria oposicionista.

Mas o processo de degradação da democracia venezuelana começou bem antes, sob Hugo Chávez, que esteve no poder de 1999 a 2013, quando morreu. O caudilho aproveitou a popularidade obtida graças à alta dos preços do petróleo para aparelhar as instituições e ampliar os próprios poderes.

Maduro assumiu quando os ventos econômicos já mudavam de direção —e patrocinou uma escalada de atrocidades documentadas pela ONU, incluindo torturas e assassinatos, enquanto o país mergulhava numa crise humanitária comparável aos impactos de guerras.

No afã de defender uma esquerda arcaica, obscurantista e autoritária, Lula não apenas alimenta mentiras descaradas. Também apequena a diplomacia brasileira e relativiza o sofrimento de milhões de cidadãos em um país devastado.

Espanha polarizada

Folha de S. Paulo

Premiê arrisca antecipar eleição geral para reverter vitória regional da direita

A polarização política é fenômeno que se espraia pelo Ocidente. Na Europa, a ultradireita chegou ao poder na Itália e na Suécia. Agora, a Espanha está em situação que pode gerar desfecho similar —o que é inesperado, dado que o país é um dos bastiões do socialismo continental, ao lado de Portugal.

O conservador Partido Popular (PP) venceu as eleições regionais —municipais, algumas estaduais e em parte para o Parlamento— realizadas no domingo (28). Na prática, a direita tomou o controle de quase todas as regiões do país.

Já o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), de centro-esquerda, ficou em segundo e perdeu o poder em grandes cidades notáveis pelo suporte à esquerda, como Sevilha e Valência.

A ascensão do PP se deu a partir de coalizões com o Vox, partido neófito de ultradireita. Em comparação com 2019, a queda do PSOE foi ínfima, de 29% para 28% dos votos. Mas o PP passou de 23% para 31%, enquanto o Vox conseguiu duplicar sua votação geral, de 3,5% para 7%.

O resultado foi tão surpreendente que Pedro Sánchez, premiê espanhol do PSOE, antecipou as eleições gerais que seriam realizadas em novembro para 23 de julho.

Sánchez quer evitar desgaste de imagem e pressionar o eleitorado de esquerda a ir às urnas (foi fraco o comparecimento no pleito regional) para impedir uma escalada da direita radical no âmbito federal.

O movimento é arriscado, dado que os problemas que levaram ao fortalecimento da oposição não têm solução fácil nem rápida.

No poder desde 2019, após eleições que também foram antecipadas, Sánchez realizou acordos controversos com grupos separatistas catalães e nacionalistas bascos —até com candidatos condenados por terrorismo. A questão territorial é tão delicada no país que une eleitores de esquerda e direita contra o divisionismo.

Ademais, o PSOE firmou aliança com o Unidas Podemos, coligação de ultraesquerda que promoveu pautas de costumes polêmicas, em temas como aborto e direitos de transgêneros. Parte dos votos no Vox foi resposta a isso.

A situação espanhola reflete a polarização política, observada também, guardadas as proporções, no cenário brasileiro: ações rumo a determinado objetivo ideológico geram reações do campo oposto.

Vota-se menos pelo desejado e mais contra o que se considera inaceitável, o que pode favorecer solavancos na alternância de poder.

Lula envergonha o Brasil

O Estado de S. Paulo

Para petista, inúmeras evidências de atrocidades na Venezuela não passam de ‘narrativas’ contra o ‘companheiro Maduro’; vexame rasga de vez a fantasia da ‘frente ampla democrática’

O presidente Lula da Silva envergonhou o Brasil de uma maneira como poucas vezes se viu nos últimos tempos – e olhe que o País passou muita vergonha durante o mandato do antecessor de Lula, Jair Bolsonaro. Depois de estender o tapete vermelho para Nicolás Maduro, pária mundial por razões óbvias, o petista declarou que o tirano venezuelano é um governante legitimamente eleito e que a Venezuela, portanto, é uma democracia exemplar.

Na opinião de Lula, todas as inúmeras denúncias de violações de direitos humanos, de manipulação das eleições e de perseguição a dissidentes e jornalistas naquele país não passam de “narrativa que se construiu contra a Venezuela”. Lula então sugeriu ao “companheiro Maduro” que “construa a sua narrativa”, que “será infinitamente melhor do que a narrativa que eles têm contado contra você”.

“Eles”, no caso, são os “nossos adversários”, conforme Lula chama aqueles que “vão ter que pedir desculpas pelo estrago que eles fizeram na Venezuela”. Encabeçam essa lista os Estados Unidos e a União Europeia, que impuseram sanções contra o regime chavista por conta das atrocidades cometidas por Maduro. Na “narrativa” de Lula, americanos e europeus simplesmente “não gostam” de Maduro, por puro “preconceito”, e por isso resolveram inviabilizar o governo chavista – e as agruras dos venezuelanos, com hiperinflação, escalada da miséria e da fome e êxodo de 7 milhões de cidadãos em poucos anos, seriam resultado das sanções internacionais, e não da ruína do país promovida pelo chavismo.

Não há dúvidas de que o Brasil deveria restabelecer relações com a Venezuela, grosseiramente rompidas, por razões puramente ideológicas, pelo governo Bolsonaro. Exportamos para o vizinho cerca de US$ 1 bilhão e importamos quase US$ 500 milhões. Ambos compartilham mais de 2 mil km de fronteira na Região Amazônica, delicada tanto do ponto de vista ambiental quanto em razão do narcotráfico. Cerca de 20 mil brasileiros vivem na Venezuela, e, entre imigrantes e refugiados, há mais de 300 mil venezuelanos no Brasil.

Nada disso significa, no entanto, que o Brasil deva ignorar que a Venezuela é hoje talvez a mais violenta ditadura da América Latina, só rivalizando com a da Nicarágua – outro país governado por um “companheiro” de Lula, o ditador Daniel Ortega. Não se espera que Lula saia por aí a denunciar os crimes desses tiranos, mas se espera, sim, que ele não insulte a inteligência alheia nem os venezuelanos que padecem horrores sob as patas de Maduro ao declarar que na Venezuela vigora uma democracia plena e que, por isso, Maduro é governante legitimamente eleito. Em relatório recente, o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU informou que “os serviços secretos militares e civis do Estado venezuelano funcionam como estruturas efetivas e bem coordenadas na implementação de um plano orquestrado no mais alto nível do governo para reprimir dissidências através de crimes contra a humanidade”. Eis aí a “narrativa” que Lula pretende denunciar.

É difícil saber o que governou a decisão de Lula de afagar Maduro dessa maneira indecente. Ao fazê-lo, o presidente desqualificou o Brasil como eventual mediador entre Maduro e a oposição nas negociações para a distensão do regime. Ademais, internamente, o gesto de Lula tende a implodir de vez a fragilíssima “frente ampla” que o elegeu e com a qual prometeu governar, algo incompreensível diante da necessidade premente de construir governabilidade.

Nada disso parece importar para Lula. Em seus delírios, a Venezuela voltará a se beneficiar de vultosas obras de infraestrutura financiadas pelo Brasil, como se o Ministério da Fazenda não estivesse catando moedas no vão do sofá para fechar as contas. Lula também promete ajudar a Venezuela a integrar os Brics. Como se sabe, Rússia e China, junto com autocracias como Irã, Turquia e Arábia Saudita, planejam transformar esse grupo econômico de emergentes em um clube geopolítico antiocidental. A julgar pelo obsceno discurso de Lula, é uma narrativa que faz brilhar os olhos do chefão petista, que parece sonhar acordado com o dia de sua consagração como grande líder desse tal “Sul Global”.

Reprovação em massa no teste da transparência

O Estado de S. Paulo

É mau presságio para democracia 23 Assembleias Legislativas tirarem notas regular, ruim e péssima em índice criado para mapear critérios de publicidade e integridade de suas ações

Somente a Câmara Legislativa do Distrito Federal e as Assembleias Legislativas do Espírito Santo, de Minas Gerais e do Ceará passaram no teste da transparência, integridade e governança pública, informou o Estadão em reportagem publicada na semana passada, com base em levantamento elaborado pelo capítulo brasileiro da Transparência Internacional. Na composição do Índice de Transparência e Governança Pública (ITGP), apenas 4 entre 27 unidades da Federação são capazes de oferecer dados que deveriam estar facilmente disponíveis para o distinto público. É o caso de dados relevantes, como o custeio de despesas dos deputados estaduais, os salários pagos a servidores, as viagens oficiais, a agenda de parlamentares com grupos de interesse ou até informações prosaicas, como a presença em plenário.

Se as assembleias com nota razoável têm o que comemorar, os resultados, quando vistos em seu conjunto, se mostram especialmente sombrios. O ITGP aponta cinco classificações: ótimo, bom, regular, ruim e péssimo. Nenhuma Casa obteve a nota “ótimo”. As quatro aprovadas alcançaram o índice “bom”. A maior parte foi avaliada como regular (12) e ruim (8). Três – Piauí, Amapá e Acre – foram consideradas péssimas. São levadas em conta ainda a existência ou não de legislações estaduais ou de regulamentação que garantam acesso às informações de temas como lobby, proteção de cidadãos após denúncias, divulgação de dados abertos ou proteção de dados pessoais.

Maus presságios. Se há o aspecto positivo detectado pelo Índice da Transparência, de que a maioria das Assembleias Legislativas (16) regulamentou a Lei de Acesso à Informação (LAI), demonstra-se que a regulamentação, por si, não basta. Desde 2011, a LAI se transformou num bem-vindo instrumento para garantir a obtenção, por qualquer cidadão, de dados de seu interesse que venham do poder público. Há, no entanto, um conjunto de medidas adicionais a serem adotadas, além de informações elementares que podem e devem ser divulgadas espontaneamente pelas Casas. Sem elas, abrem-se caminhos para esconder malfeitos ou proteger atos ou interesses nada republicanos.

O Brasil se habituou a conferir ao Poder Legislativo – e, em particular, ao Congresso Nacional – algumas das avaliações mais desabonadoras entre as instituições. Mas, se na instância federal a sociedade olha com lentes mais atentas e exigentes, no caso das Assembleias Legislativas e, por que não dizer, das Câmaras de Vereadores, a ausência de regras de transparência, a captura dos parlamentares pela força de governadores e prefeitos e o menor grau de independência jornalística ante o poder local reduzem drasticamente as chances de fiscalização do poder público e de acompanhamento e identificação de eventuais irregularidades, que existem em profusão.

Consta do anedotário político que o deputado mineiro José Bonifácio (1904-1986), líder do governo no regime militar, presidente da Câmara dos Deputados e homônimo do Patriarca da Independência, um dia conduzia um parlamentar novato pelas dependências do Congresso, enquanto vaticinava: “Aqui tem de tudo. Tem ladrão, honesto, canalha, gente séria...”. Após uma breve pausa a um só tempo irônica e dramática, concluiu: “Só não tem bobo”. Preciso ou não esse relato, a frase converteu-se em bordão por muitos anos para representar não apenas o Congresso, como qualquer similar nas esferas estadual e municipal.

Apesar dos seus mais variados vícios da prática política, as Casas Legislativas estaduais, a exemplo do Congresso, representam os interesses de seus eleitores – inclusive aqueles que delas discordam – e, mesmo com todos os seus defeitos, organizam consensos e dissensos da sociedade, e por elas passam temas de grande relevância para a população. São ainda armas de vigilância necessária (e pacífica, convém acrescentar), para o devido controle, acompanhamento e aperfeiçoamento das ações do Poder Executivo. Não fosse tal importância, problemas como este detectado em boa hora pela Transparência Internacional não seriam dignos de nota.

A tentação do crédito subsidiado

O Estado de S. Paulo

Presidente do BNDES acha ‘indispensável’ a volta do subsídio e flerta com erros passados

O governo recorreu ao anúncio de duas novas linhas de crédito do BNDES para tentar amenizar, na celebração do Dia da Indústria, a frustração de expectativas com a falta de um pacote industrial mais robusto, que tivesse no barateamento dos carros populares seu eixo principal. “Não tem como ter anúncio agora, não. Vamos ter de acertar mais”, disse o presidente Lula da Silva aos empresários que o receberam na Fiesp.

O plano B, o lançamento de duas linhas de crédito à exportação de produtos industriais de R$ 2 bilhões cada uma, foi apresentado pelo presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, como uma façanha diante do atual cenário de juros altos. “Estamos indo para o osso”, disse, referindo-se à redução da taxa de remuneração do banco (spread) na oferta de financiamentos em uma das linhas.

Mercadante vendeu a ideia de que pretende aproximar as condições de crédito da indústria às do agronegócio, voltou a prometer uma mudança no banco com taxas diferenciadas de juros e acabou por defender a volta dos subsídios como medida “indispensável” para a economia girar no pós-pandemia. Um argumento inquietante diante do histórico recente do excesso de subsídios do banco de fomento.

Crédito subsidiado é a forma mais fácil de o BNDES elevar seus desembolsos e direcionar crédito a segmentos específicos numa política que já mostrou não ter dado certo. Afora o perigo da porta entreaberta a eventuais escolhas e favores guiados por puro interesse político – que pode recair em companhias que nem têm dificuldade em captar capital –, o banco tende com isso a se afastar do que deveria ser o seu alvo prioritário: financiar o avanço em infraestrutura, transição energética, inovação e crescimento de pequenas empresas.

No museu de grandes novidades que tem sido este novo mandato de Lula, ideias adotadas em antigas gestões petistas voltam a circular a despeito do resultado ruim que apresentaram. E o que parece novo carece de credibilidade.

No dia do evento da Fiesp, o presidente Lula e o vice Geraldo Alckmin, em artigo publicado no Estadão, defenderam a “neoindustrialização” como o fio condutor da política econômica. “Temos de facilitar o acesso ao capital, reduzindo seu custo, para que os empreendedores possam criar e expandir os seus negócios”, sustentaram. O mérito da iniciativa foi amplamente reconhecido. As ressalvas foram em relação à incapacidade de abandonar políticas que já se mostraram incapazes de sustentar o crescimento.

Como disse o economista Armando Castelar, do Ibre/FGV, o argumento usado pelo governo “falha em não olhar atrás e tirar lições das várias políticas industriais que o País teve”.

A discussão sobre o BNDES deixar de ser um carreador de recursos para o governo, repassando ao Tesouro 60% dos dividendos que obtém, é válida. É preciso trocar a missão prioritária de contribuir para o resultado das contas públicas pelo reforço de caixa para financiar projetos que não encontram amparo na iniciativa privada e que são imprescindíveis para o crescimento do País. Mas a tentação populista, tão bem simbolizada pelo “carro popular” e pelo crédito subsidiado, parece irresistível.

Necessidade de ajustar o tom

Correio Braziliense

"Lula deixa claro que busca recolocar o Brasil como protagonista da geopolítica internacional, cada vez mais polarizada entre Estados Unidos e Europa de um lado, e Rússia e China do outro"

Nos primeiros meses do seu terceiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem priorizado preencher o vácuo que o Brasil deixou nas relações internacionais nos últimos quatro anos. Com a ida a cúpulas globais desde que foi eleito e antes mesmo de tomar posse, como na COP27, em novembro, no Egito, Lula deixa claro que busca recolocar o Brasil como protagonista da geopolítica internacional, cada vez mais polarizada entre Estados Unidos e Europa de um lado, e Rússia e China do outro, com os demais países orbitando perifericamente. Defensor dos interesses nacionais, incluindo os comerciais.

Desde a posse, Lula fez uma extensa agenda de viagens para participar de reuniões do Mercosul, na Argentina, e dos Brics, na China, marcando a retomada dos dois blocos econômicos que reúnem o primeiro e o terceiro maiores parceiros comerciais do Brasil. Visitou os Estados Unidos e fez ainda viagens a países da Europa, como Inglaterra, Espanha e Portugal e mais recentemente foi à reunião do G7, no Japão, onde participou de vários encontros bilaterais. Passou ainda pelos Emirados Árabes.

Agora, articulou a realização de um fórum dos países da América Latina, para unificar as posições das nações em temas comuns e na defesa de interesses econômicos. Com a presença de 10 chefes de Estado, a cúpula ocorreu e estabeleceu pontos que vão de maior integração em energia e infraestrutura e uma moeda comum a até ações conjuntas em relação às mudanças climáticas e à mobilidade de estudantes, professores e pesquisadores, passando por uma maior integração comercial e na área de saúde.

Com o fórum, Lula coloca o Brasil na liderança da América Latina. Mas se teve a intenção de promover a integração — que ele próprio diz ser necessária, apesar das divergências ideológicas —, o que é correto e louvável, há um erro grave no tom adotado pelo presidente brasileiro ao defender o colega da Venezuela. Ao afirmar que a situação no país é uma "narrativa" construída de fora, Lula ignora que Nicolás Maduro está no governo desde 2013 e há prisões de opositores e perseguição a jornalistas críticos ao seu comando. Não, não se tratam de narrativas as acusações de ações antidemocráticas e problemas relacionados a direitos humanos no país vizinho, governado por decreto e com poderes especiais conferidos ao chefe de Estado.

Lula viu a cúpula proposta para unificar os países se tornar o palco da divisão ideológica que dificulta a integração regional, que seguramente não ocorrerá se essas diferenças forem jogadas para debaixo do tapete. Mesmo que tenha dito a Maduro que a forma de a Venezuela responder ao mundo é realizando eleições livres e democráticas, o presidente brasileiro ultrapassou a linha ao não se ater ao pragmatismo da aproximação com a Venezuela, o que é de interesse do Brasil do ponto de vista comercial e até porque o governo Maduro tem uma dívida de US$ 1,27 bilhão com o nosso país.

Não é a primeira vez que Lula erra pelo discurso embora a intenção seja certa. Ao defender a paz na Europa, culpou a Rússia e a Ucrânia igualmente pela guerra, quando na realidade o território ucrâniano foi invadido por tropas russas, gerando assim um mal-estar desnecessário e tirando o foco da defesa da paz, que interessa ao planeta. O presidente Lula recoloca o Brasil no mundo, mas precisa se lembrar de que o mundo de hoje é muito diferente do tempo globalizado dos seus primeiros mandatos. Se for lembrado que entre os pontos da cúpula está a democracia, direitos humanos e proteção às instituições, a exaltação feita por Lula a Maduro fere de antemão esses princípios.

 

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