sábado, 5 de maio de 2012

Marx, 194 anos: Convite para que se releia Marx*::Norberto Bobbio

Nosso seminário nasceu do propósito de dar uma resposta à questão que aflora com uma freqüência sempre maior nos debates sobre as razões e sobre o destino da esquerda: “O que se passa com Marx e com o marxismo?” Uma resposta bem argumentada, que seja capaz de se contrapor à refutação muitas vezes emotiva, irritada, passional e acrítica que se seguiu aos acontecimentos de 1989, por ocasião da derrocada do universo soviético, do qual a doutrina marxista, com todos os seus sucessores autorizados, havia sido o grande motor.

Em sua história já mais que secular, o marxismo conheceu freqüentemente, quando foi assumido de modo fideísta, fenômenos de conversão e inversamente de abjuração; quando foi acolhido como a única ciência possível da sociedade, foi seguido por afastamentos graduais mediante processos de questionamento guiados pela observação da história real. No primeiro caso, poder-se-ia falar de uma verdadeira inversão de rota, de uma brusca passagem de uma difusa e acrítica Marxlatria a uma igualmente difusa e acrítica Marxfobia. No segundo caso, poder-se-ia dizer que o resultado foi obtido por meio de uma contestação das pretensas verdades do marxismo. Como exemplos de afastamento crítico, penso em Lucio Colleti na Itália, em Leszek Kolakowski na Polônia, em Agnes Heller e, em geral, na Escola de Budapeste, na Hungria.

O que quando muito distingue a situação presente das passadas é que o movimento rumo à abjuração ou rumo ao afastamento crítico ficou sempre mais acelerado, e ao que parece mais irreversível, em relação à excepcionalidade da situação histórica. Tal movimento, além do mais, não parece até agora contrabalançado por um movimento inverso: à passagem do marxismo ao antimarxismo não corresponde, como em outras épocas, a passagem inversa do não-marxismo ao marxismo. Refiro-me à grande crise histórica precedente, ocorrida por ocasião da queda do fascismo, quando, na Itália mas também em outros lugares, filósofos originariamente idealistas, neokantianos e existencialistas, abraçaram o marxismo, em um processo tão rápido de transformação que fez que essa transformação parecesse ser quase uma conversão. Penso em personagens não menores como Antonio Banfi, Galvano della Volpe e Cesare Luporini. Na ausência do movimento contrário, hoje a área do marxismo tornou-se mais restrita, porque o não-mais-marxismo dos velhos marxistas não foi compensado pela conversão de não marxistas ao marxismo.

Porém é preciso resguardar-se de declarações de morte apressadas. Em nosso direito civil, para que se possa declarar a morte presumida de uma pessoa são necessários dez anos a partir do dia ao qual remonta a ultima notícia do ausente. À parte o fato de que ainda não se passaram dez anos do grande evento, na história das idéias, os tempos são mais longos e a morte é freqüentemente aparente: vale sempre o mote horaciano multa renascentur com aquilo que segue. Deus também foi dado por morto, mas nunca esteve tão vivo como hoje.

Quantas vezes Marx foi dado como morto! No inicio do século quando a prenunciada derrocada do capitalismo não se deu; depois da Primeira Guerra Mundial, quando a primeira revolução inspirada pelo pensamento de Marx ocorreu em uma região na qual, segundo este mesmo pensamento, ela não deveria ocorrer, uma vez ocorrida a revolução, quando o Estado, em vez de se preparar para a própria extinção, reforçou-se até se transformar na figura sem precedentes do Estado totalitário. Nos momentos decisivos da história contemporânea ocorrera, portanto, exatamente o oposto do que Marx havia previsto. Era natural que os fideístas começassem a se perguntar se Marx não seria por acaso um falso profeta e os cientistas se pusessem inquietos a questão: “Foi mesmo ciência?”.

Também é verdade que as razões dos antimarxistas são hoje bem mais graves. O capitalismo não somente não morreu, mas venceu de modo categórico, tanto que já houve quem sentenciasse que a história terminou: afirmação no mínimo insensata porque pode ser interpretada como o reconhecimento de que o sistema capitalista e democrático, que consegue fazer que a liberdade de mercado conviva com a liberdade política, não parece ulteriormente superável e todo o mundo está destinado a se uniformizar. Nenhuma revolução comunista é previsível no mundo de hoje, mesmo no mundo dos mais pobres e oprimidos, e muito menos nos países capitalistas (segundo a previsão de Marx). Nenhum Estado em nenhuma parte do mundo está em vias de extinção: quando muito, hoje existem Estados que se desagregam mas isso é uma espécie de extinção que não dá lugar a uma sociedade livre sem Estado, e sim a um estado de guerra permanente, à anarquia de Hobbes, não dos anarquistas.

Há uma razão bem mais grave para que consideremos a crise atual do marxismo como excepcional. As crises precedentes, como sempre se disse, derivavam da constatação de um defeito de previsão por parte da doutrina marxista: um defeito que colocava em discussão Marx, seja como profeta, seja como cientista. Mas uma falsa profecia ou uma falsa previsão podem ser salvas com uma operação muito simples, qual seja, deslocando para a frente no tempo o momento da verificação. Diz-se: não era equivocado o anuncio da mudança, mas não havido sido calculado exatamente o tempo em que isso se daria. Trata-se de um argumento recorrente em todas as visões apocalípticas da história, tanto se for anunciado o advento do reino da liberdade quanto se for anunciado o advento do Espírito Santo. Permanece a certeza de que o evento prenunciado ocorrerá. Resta incerto o momento: Certus na, diria um jurista, incertus quando.

A crise atual não deriva de um erro de previsão, mas da constatação cabal de um fato real: a falência catastrófica da primeira tentativa de realizar uma sociedade comunista em nome de Marx e do marxismo, ou melhor, de Marx em companhia de Engels, seguidos por Lenin e depois por Stalin por meio de uma sucessão interpretada como uma filiação ou uma derivação do mesmo pai. A comparação entre as Igrejas tradicionais e a Igreja comunista foi feita tantas vezes que parece uma banalidade ou uma maldade de adversários irredutíveis. Mas também sob esse aspecto, isto é, sob o aspecto da verdade fundada em um princípio de autoridade e de sucessivas autorizações de outras autoridades é surpreendente. Houve quem, diante de fatos reais, igualmente, perturbadores como Auschwitz tenha falado até mesmo em” derrota de Deus” (Sergio Quinzio). Porque é que diante dos gulags Stalinianos não poderia falar em derrota de Marx?

Diante dessa imensa derrota real, que não é somente um erro de previsão mas uma prova de fato da conseqüência perversas de um programa de ação e de transformação social derivado de uma doutrina , não basta fazer o relógio andar para traz para salvar a obra do fundador. São necessárias outras estratégias de interpretação e de correção que não tem qualquer analogia com as velhas estratégias: nem com o revisionismo, que considerava poder salvar o marxismo enxertando-o em uma outra filosofia - ora o positivismo, ora o neo-kantismo, ora a fenomenologia -, nem com o retorno ao Marx genuíno, ao “verdadeiro” Marx, mal compreendido pelos maus discípulos. Apesar disso, ambas as estratégias foram novamente tentadas – a primeira nos Estados Unidos com o enxerto da filosofia de Marx na filosofia analítica, a segunda com a recorrente operação de libertar Marx dos vários marxismos. É como dizer que o barbudo que foi belamente exibido durante anos em toda a iconografia soviética era somente a face, o rosto externo, do fundador, não sua alma oculta que esperava ainda ser revelada.

Hoje são necessárias, eu dizia, estratégias de salvação mais fortes. Vejo principalmente duas delas. A primeira: não obstante a conclamada derivação marxiana do comunismo soviético, Marx, o “verdadeiro” Marx não é de modo algum o responsável pelo que ocorreu no país, ou melhor, nos país do assim chamado socialismo realizado. E não é responsável porque não existe uma relação imediata entre teoria e práxis. O mesmo discurso tem sido repetido a anos com respeito à responsabilidade de Nietzsche perante o nazismo. O fato de que Hitler considerasse Nietzsche um de seus mestres, tanto que deu as obras completas do profeta de Zaratustra de presente para Mussolini quando Mussolini o libertou da prisão em que estava recolhido depois do 25 de julho de 1943 não significa nada porque é natural que um chefe político queira embelezar e engrandecer a própria obra fazendo que ela pareça como inspirada por um grande filósofo. Ao longo dos séculos, sempre foi difícil distinguir Cristo do Anti-Cristo: muitas vezes o Anti-Cristo foi visto como sendo Cristo. O que Marx tem a ver, objeta-se, com o sistema político e policialesco instaurado na União Soviética? Vamos reler Marx, dizem os novos revisores, e nos daremos conta de que as idéias de Marx são precisamente o oposto das que puderam inspirar um Estado tirânico. Marx é um pensador libertário, até mesmo um individualista, de modo algum um organicista, e sua doutrina não é a inversão da grande tradição liberal, mas sua única possível realização.

Uma segunda estratégia é a que parte da constatação de que existem muitos Marx e de que, à distância de mais de um século, não dá para salvar a todos eles nem para jogá-los todos fora. É a estratégia que eu chamaria de” dissociação”. Há um Marx economicista, um Marx historiador, um Marx sociólogo, um Marx filósofo. Estas diversas faces do mesmo e único personagem servem à estratégia da recuperação mediante a dissociação. Marx morreu como filósofo? Pode-se dizer o mesmo do Marx economista? E assim por diante. Marx foi até agora o crítico mais radical do capitalismo. O capitalismo venceu sua batalha contra a primeira tentativa de organizar um sistema social fundado não na economia de mercado mas na economia de comando. Mas a vitoria do capitalismo é definitiva? A economia de mercado, enquanto resolve certos problemas como o da produção dos bens, cria outros problemas, como o da distribuição. Um dos maiores economistas italianos Paolo Sylos Labini, participando do debate em curso na revista Il Ponte, intitulado Carlos Marx: é tempo di um bilancio (Karl Marx: é tempo de balanço), escreveu entre outras coisas:

Quanto mais diretamente as teses de Marx estão associadas ao seu programa revolucionário, mais é preciso desconfiar delas, ao passo que as teses mais afastadas daquele programa, ou seja, as teses verdadeiramente analíticas, são consideradas valorizadas, sempre com olhos críticos MS com menor suspeita (1991 pag24)

Ao comentar amigavelmente este seu artigo, se não considerava que ao menos duas teses fundamentais do Marx economista deveriam estar sempre presentes: (a) o primado do poder econômico sobre o poder político (que constatamos todo dia também na Itália) e (b) a previsão de que por meio do mercado tudo pode se tornar mercadoria, donde a chegada inevitável à sociedade da mercadorização universal.

Outra dissociação mencionada já no início, marca toda a história do marxismo: a dissociação entre o Marx cientista e o Marx profeta, cuja crítica caminha puri passu com o descrédito de toda forma de utopismo que pressupõe uma concepção perfeccionista do homem Essa crítica está particularmente presente no atual debate filosófico italiano por meio da descoberta ou da redescoberta da obra de Augusto Del Noce Mas a refutação do perfeccionismo pertence a pleno direito também à tradição do pensamento liberal. Refiro-me à critica da filosofia da história do pensamento de Croce, à famosa tese da “pobreza do historicismo” de Popper e à obra global de Isaiah Berlin na qual é recorrente a refutação dos autores que alimentaram visões perfeccionistas da história. Observo de passagem que em um dos últimos números da Biblioteca della Libertá, o órgão mais representativo do pensamento liberal na Itália, lê-se um artigo de Michele Marsonet, que considera como erro fundamental de Marx a sua antropologia, segundo a qual o homem é um ser capaz de infinita perfectibilidade (1991 pag. 39-58). O autor remete a pensadores como Voegelin, que tiveram muito sucesso também na Itália, entre outros, também mediante Del Noce, e à crítica do gnosticismo, segundo o qual o mundo presente é mau e deve ser radicalmente modificado.

No entanto, ainda que o profetismo não goze hoje de muito prestígio, não é verdade que tenha sido totalmente abandonado. Escolho dois exemplos dele: Luciano Canfora, em seu pequeno livro Marx vive a Calcutta (Marx vive em Calcutá) (1992, pag21) reavalia o marxismo precisamente como utopismo escrevendo: “São os impulsos utópicos que movem a história: a utopia cristã da redenção universal, a utopia iluminista da paz perpétua... a utopia comunista”. É supérfluo observar que uma afirmação deste gênero caminha em direção oposta à indicada por Marx e sintetizada por Engels. Não mais “o socialismo da utopia à ciência” mas, com uma inversão total e um retorno às origens, “o socialismo da ciência à utopia”. Em uma entrevista e Emmanuel Levinas feita por Barbara Spinelli e publicada em La Stampa há poucos dias (6 de maio de 1993), o filósofo diante da questão de saber se as democracias venceram, responde:

A mim parece que as democracias perderam muito. Não obstante todos os excessos e os horrores, o comunismo sempre representa uma espera. Espera de poder corrigir os equívocos e as injustiças cometidas contra os mais fracos, espera de uma ordem social mais justa. Não digo que os comunistas tivessem pronta a solução, nem que a tivessem preparando. Longe disso. Mas havia a idéia de que a história teria um certo sentido Que viver não seria um viver insensato. É uma idéia que os ocidentais tiveram no século XVIII e que Marx enraizou no pensamento do século XX. Não creio que perder essa idéia para sempre seja uma grande conquista espiritual. Até ontem, pelo menos, sabíamos para onde ia a história e que valor dar ao tempo. Agora vagamos perdidos perguntando-nos a todo instante: “Que horas são?” Fatalístamente, um pouco como costumam perguntar os russos. Que horas são? Ninguém mais sabe.

Como vocês podem ver, não faltam problemas para se discutir. Bom trabalho.

*Texto da conferência inaugural do seminário ‘Reler Marx depois do dilúvio’. Turim, 11-13 de março de 1992

BOBBIO, Norberto. Em ‘Nem com Marx, nem contra Marx’, p. 299-306. Editora UNESP, 2004.

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