- Valor Econômico
ONGs dizem coisas que governos não gostam de ouvir
No feixe de decretos dos cem dias do governo de Jair Bolsonaro, divulgados na semana passada, dois deles atingem a área socioambiental pelo bem e pelo mal. O que trata da conversão de multas ambientais tem aspecto positivo por dar continuidade ao que foi desenhado na gestão anterior, mas deixa dúvidas em suas reticências. O outro, o que extingue conselhos que incluem a participação da sociedade, é um exemplo concreto de arbitrariedade.
O decreto nº 9.760/19 dispõe sobre infrações ao ambiente e traz uma novidade que pode ser boa e outra que pode ser ruim. É preciso dar tempo a cada uma delas para ver como vão maturar.
A boa notícia é que a decisão mantém a conversão de multas ambientais. Trata-se de uma ferramenta prevista na Lei de Crimes Ambientais, de 1998, e aplicada em decreto de 2008, mas de forma confusa. Foi diligentemente aprimorada pela ex-presidente do Ibama Suely Araújo e lançada em 2017. A intenção era conseguir que infratores que não pagam paguem. O estímulo seria dar a eles desconto de 60% sobre a infração. A proposta era fazer com que o dinheiro financiasse, por exemplo, projetos de recuperação ambiental das sub-bacias do rio São Francisco, que está em situação dramática de escassez hídrica.
A proposta da conversão de multas foi mantida, mas com nova arquitetura. "Não inventamos nada, apenas aprimoramos", diz o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles. A medida agora tem um sistema de descontos progressivos, dependendo do momento em que o infrator aderir ao acordo. Outra alteração é permitir empresas, além de ONGs, nas licitações dos projetos de recuperação ambiental.
A controvérsia está por conta da criação de um núcleo de conciliação ambiental. "É o ponto crucial do decreto porque possibilita uma audiência entre autuado e autuante. É uma oportunidade de acordo e de resolver o problema logo de cara", defende Salles. Ambientalistas entendem que a medida aumenta a burocracia e favorece infratores.
A inspiração da tal câmara vem da experiência de São Paulo, que tem um programa de conciliação desde 2014, criado pelo então secretário do Meio Ambiente, Rubens Rizek. Em 2018, foram lavrados 24,7 mil autos de infração em São Paulo e feitas 25 mil audiências de conciliação. O índice de sucesso é bom: 2/3 das pessoas que chegam à audiência saem com acordo firmado. O fundo de multas triplicou.
O exemplo soa bom, mas São Paulo não é o Brasil, e o índice de desconfiança em torno aos intuitos ambientais do governo federal é altíssimo. "A questão da câmara de conciliação precisa ser analisada em meio ao conjunto da obra. Se este governo tivesse a real intenção de combater o crime ambiental e não ser condescendente com ele, ok. Mas não demonstrou isso até agora", diz Carlos Rittl, do Observatório do Clima.
Já o decreto nº 9.759/19 peca pela generalidade, pelo texto confuso e pela opção por destruir para depois, eventualmente, reconstruir. Veja-se a redação da ementa. Lá se lê que a medida, em 11 artigos sucintos, é uma espécie de sanfona: "Extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações a colegiados da administração federal". Serão ceifados conselhos, comissões, juntas, fóruns e qualquer outra denominação dada a colegiados de órgãos federais. Os ministérios têm até 28 de maio para levar à Casa Civil a relação dos colegiados que presidem, coordenam ou consideram importantes. Em 28 de junho, puf. O resto estará extinto.
A título de exemplo, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos tem 14 colegiados. Um deles é o Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT criado em 2001 por decreto. Está ameaçado. Pode ser salvo se a ministra Damares Alves considerá-lo importante em seu escopo além dos tons de azul e rosa.
Todos os ministérios da República têm colegiados, comitês e afins. Muitos destes, a bem da verdade, talvez não sirvam para nada. Mas o corte raso é sempre injusto e tolo. O decreto assinado pelo ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, tem como justificativa cortar custos e "desaparelhar" o Estado. Mas nesta busca de eficiência o governo deveria ter dado o exemplo e ter sido capaz de fazer uma análise, listar conselhos que gostaria de manter e conversar sobre a decisão com a sociedade. Teve cem dias para tanto, fora o prazo da transição. Mas não. As opiniões do setor privado, da academia e do terceiro setor estão agora sujeitas aos critérios e à reação dos ministérios.
A leitura de ambientalistas e pesquisadores é de que Jair Bolsonaro quer reduzir a pó a coluna vertebral da participação popular em seu governo. "É um sinal de poder. Chama para os ministérios e para a Casa Civil a decisão sobre a matéria, o que equivale a dizer: 'Agora depende de mim o que vai existir ou ser eliminado', diz Fabio Feldmann, deputado constituinte em 1988 e um dos ambientalistas mais prestigiados do país. "Fazer um decreto para isso me parece prepotente e autoritário."
É uma decisão condizente com um governo que parece detestar organizações não governamentais em geral.
ONGs não são ruins, corruptas ou inoperantes a priori, como têm sido retratadas por esta gestão. São expressões da sociedade com suas nuances e contradições. No segmento socioambiental há entidades de excelência técnica, como algumas do setor de energia e de transportes. Outras foram criadas por técnicos de segmentos de vanguarda da agricultura e fazem sólidas análises das tendências do setor.
O Brasil tem ONGs de perfil conservacionista com pesquisadores recrutados nas melhores universidades do país e que tentam explicar a leigos por que preservar pequenos sapos, micos fofos, abelhas e lobos-guará é uma atitude sábia, além de revelar um lado digno da natureza humana. Há ONGs boas de lobby ambiental, outras presididas por empresários importantes, umas poucas que atuam bravamente em defesa dos povos indígenas e quilombolas - alguém tem que fazer isso, não é? E existem as péssimas, que não funcionam, que são má geridas, que abrigam gente má intencionada - como em tudo na vida. Mas é assim que a sociedade se organiza, em coletivos de luta pelos seus interesses, no Brasil e fora dele. ONGs costumam dizer coisas que governos não gostam de ouvir. Não são instrumentos de bajulação oficial. São vozes da democracia.
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