quarta-feira, 27 de novembro de 2019

José Eli da Veiga* - Batata pelo futuro

- Valor Econômico

A inocência juvenil sobre as relações entre poder e ciência tende a ser superada pelas interações do FFF com algumas entidades irmãs

Depois de amanhã, São Paulo terá mais uma sexta-feira global pelo futuro, programada por movimento tão inédito que aturdiu a grande imprensa brasileira. Houve até analista que xingasse de chantagista a garota sueca, de 16 anos, Greta Thumberg, o fenômeno que mais impulsionou tais mobilizações. Injúria em total contraste com a carta que 224 acadêmicos do Reino Unido haviam publicado no The Guardian, com enfáticos aplausos à determinação de seus alunos em participar das manifestações por ela convocadas.

Tal desacordo fica ainda mais expressivo se consideradas as serenas ponderações publicadas em periódicos científicos de primeira linha. No 14 de março, véspera da primeira grande iniciativa do “Fridays for Future” - ou simplesmente “FFF” - coube à revista Nature informar que “milhares de cientistas apoiarão os jovens que amanhã irão para as ruas”.

Na edição da semana seguinte, comemorou o surgimento do primeiro “movimento de base” contra o aquecimento global, com manifestações em “cerca de duas mil cidades em mais de 120 países, do Nepal a Vanuatu”. Informando, também, que um abaixo-assinado de mais de 12 mil cientistas - da Alemanha, Áustria e Suíça - inspirara outro, firmado, apenas na Nova Zelândia, por 1.500 pesquisadores. O destaque, dado no “olho” da matéria, foi para comentário de uma professora da Universidade de Lancaster: “Além de inovadora e provocativa, aí está a forma correta de desobediência civil não violenta”. Posição idêntica à de carta coletiva que a revista Science trouxe na edição de 12 de abril.

Mas não há apenas aplausos nas ponderações publicadas pelas revistas de maior prestígio na comunidade científica. Estimulante comentário crítico sobre “as limitações retóricas do movimento #FridaysForFuture” está no volume 9 da Nature Climate Change, de junho de 2019 (p. 428-430). Aí, Darrick Evensen, professor de relações internacionais da Universidade de Edimburgo, alertou para a ingenuidade de certos propósitos dos líderes do FFF, depois de reverenciar seu grande “heroísmo”.

É que os jovens liderados por Greta supõem que, para virar o jogo, o decisivo seria levar os líderes políticos a ouvirem a ciência sobre as mudanças climáticas. Evensen explica, de forma bem minuciosa, que confiar nos relatórios do IPCC é apenas um ótimo ponto de partida, pois a ciência não tem como resolver os dilemas éticos e políticos criados pela consensual constatação de que o planeta está se superaquecendo por causa das frenéticas atividades humanas.

Para ilustrar, usa o ótimo exemplo do carvão. Saber que essa é a pior das energias fósseis deveria impor seu banimento em países que ainda dela dependem? Não seria mais justo exigir que, antes, os sacrifícios começassem nos países que mais queimaram carvão ao longo dos séculos XIX e XX? Não seria ainda melhor que as mais ricas nações bancassem a transição energética nas mais pobres?

Afinal, foram questões desse tipo as que mais travaram as negociações climáticas, principalmente com a desastrosa separação de “responsáveis” e “desobrigados”, consagrada pelo Protocolo de Kyoto, em 1997.

A inocência juvenil sobre as relações entre poder e ciência tende a ser superada pelas interações do FFF com algumas entidades irmãs emergentes: as de pais, de escolas, de cientistas e de empreendedores. É o que indicam os resultados de pesquisa realizada em treze cidades de nove países europeus, por uma rede de 26 cientistas. Tamanha “virada histórica no ativismo ambiental”, com maior participação de estudantes na faixa dos 14-19 anos - e predomínio das meninas - está bem caracterizada no oportuno relatório Protest for a Future, que ressalta a necessidade de se promover novas análises sobre o desenvolvimento do FFF(http://eprints.keele.ac.uk/6571/)..

No Brasil, quase nada se sabe sobre os jovens que participaram - principalmente em São Paulo - da 3ª mobilização global, no último 20 de setembro. Tão somente que o ato no vão do Masp e a subsequente passeata até o centro da cidade foram muito bem organizados por uma incipiente “Coalizão pelo Clima”, que já conta com a ajuda de duas iniciativas convergentes, intituladas ‘Famílias pelo Clima’ e ‘Escolas pelo Clima’, em campanha por novas adesões no site https://fridaysforfuturebrasil.org/

Nesta sexta, 29 de novembro, a concentração no Largo da Batata poderá ser uma excelente oportunidade para se procurar entender os principais determinantes do engajamento climático da juventude da Grande São Paulo. Mas, para tanto, será imprescindível que os muitos agentes do desenvolvimento sustentável, nos diversos segmentos da sociedade civil, estejam empenhados em pesquisas empíricas sobre o que a literatura científica, no âmbito da psicologia, tem chamado de “percepções” da urgência climática.

De qualquer forma, com ou sem pesquisas, é imprescindível que todos os paulistanos empenhados em garantir futuro à vida inteligente na Terra juntem-se aos que, depois de amanhã, estarão concentrados no Largo da Batata, a partir do fim de tarde.

*José Eli da Veiga, professor sênior da USP

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