Eleições municipais são estratégicas para bolsonarismo, mas partidos tradicionais é que devem se destacar, diz José Augusto Guilhon
Por Diego Viana — Para o Valor Eu &Fim de Semana
SÃO PAULO - Após a vitória conservadora nas eleições de 2018, os grupos de direita ligados ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) têm a expectativa de crescer também nas prefeituras e câmaras de vereadores neste ano. Entretanto, quem tem a vantagem na política local são os partidos tradicionais, de maior capilaridade e conhecedores dos problemas de cada região, afirma o cientista político José Augusto Guilhon de Albuquerque, professor de relações internacionais da Universidade de São Paulo.
Para Guilhon, o cenário político deste ano não será muito diferente do ano passado, com os deputados do “Centrão” decidindo o que vão aprovar e o que vão barrar das iniciativas vindas do Planalto. O Executivo continuará enredado em problemas que ele mesmo cria, mas as demais forças políticas não têm interesse ou capacidade de inviabilizar completamente o governo. Essa é a garantia de um certo grau de estabilidade.
O cientista político também vê pouca perspectiva para as oposições. Embora goze de popularidade, depois que foi solto da prisão o ex-presidente Lula (PT) adotou um discurso que mais prejudica do que favorece seu partido. Lula tem reforçado a radicalização, com propostas que desagradam tanto o sistema político quanto a maioria do eleitorado. As movimentações que buscam apelar para os eleitores de centro, porém, são desprovidas de base e excessivamente vinculadas a candidatos que não atraem votos. Por isso, para Guilhon, têm pouco futuro, embora apelem para a maioria da população.
Valor: Este é um ano de eleições municipais, as primeiras depois do avanço conservador de 2018. O que esperar dessas eleições?
José Augusto Guilhon de Albuquerque: Não acredito que haja grande mudança. O sistema de partidos depende da lei eleitoral, e a nossa produz multiplicidade de partidos. Não creio numa grande mudança no cenário, porque o resultado das eleições nacionais, em geral, têm efeito limitado nas eleições locais. Estas dependem mais de questões locais e da política estadual. Os grandes partidos não vão ser tão esvaziados como em 2018. Ocorreu esvaziamento do PT, mas ele continua sendo o mais forte na Câmara, por exemplo.
Valor: E quanto ao impulso da nova direita que levou Bolsonaro ao poder? Continua com fôlego?
Guilhon: Não acredito que essa direita, próxima à extrema-direita, tenha qualidade organizacional para pesar no eleitor municipal. Na eleição municipal, é preciso mobilizar prefeitos e vereadores, que são ligados a quadros partidários locais. Essa capilaridade falta à nova direita, mas os partidos tradicionais têm. Além disso, não há por que obter a polarização de 2018. O segundo turno polariza, sobretudo no plano nacional. Quando há dois grupos que radicalizam, o centro desaparece. Isso dificilmente vai se reproduzir localmente, onde, no geral, as forças conservadoras são mais fortes.
Valor: Para o bolsonarismo, 2020 é importante para garantir 2022.
Guilhon: É uma pretensão que não vai se realizar, como quase todas nesse tipo de populismo ideacionista. Não foi por isso que ele ganhou a eleição. Não há por que esperar que aquela situação se reproduza: as condições não são as mesmas. Ele ganhou a eleição sem essa capilaridade, sem fundo partidário, sem pessoas nas ruas trabalhando. Era tudo no mundo virtual e baseado num mito.
“O Brasil, hoje, é símbolo da bandeira antiambiente. Isso vai nos acompanhar, o que quer que façamos”, afirma Guilhon
Valor: O novo partido de Bolsonaro não será uma força importante?
Guilhon: Se fosse, já teria se manifestado. Se tivesse número grande de deputados, por exemplo, porque isso é fundamental para ter um partido forte. Quais foram os partidos que se dispuseram a abrigar Bolsonaro? Nem ele quis os partidos, nem os partidos o quiseram. Ele não quer se juntar com ninguém que já tenha força e detesta qualquer coisa que se pareça com política organizada. E já disse: será um partido em que ele vai comandar todas as despesas. Não conheço ninguém que faça isso, nem na própria casa, quanto menos numa organização maior, como um partido.
Valor: Ele está prejudicando o próprio projeto político?
Guilhon: Não creio, porque, ao meu ver, não está alterando em nada a situação. Brigar com o PSL e criar um partido não vai alterar nada. Não vai fortalecê-lo. Talvez o enfraqueça um pouco. Se você quer saber se ele caminha para um fracasso, acho que caminha, mas não por isso.
Valor: Por quê?
Guilhon: Ele junta duas coisas: o populismo e o aventureirismo. Não tem base popular grande, não tem apoio na sociedade civil, a não ser em grupos muito radicais, e não busca aumentar esse apoio. Não tem nenhuma das capacidades necessárias para dirigir a política. É uma pessoa sem capacidade de liderança. Os problemas crescem e não se resolvem, em boa parte, por causa dele. A maioria dos obstáculos até agora, no Congresso, foram criados por ele. Não pela oposição e muito menos pelo Centrão. E tem um defeito sério para o governo de um país e para uma liderança política.
Valor: Que defeito?
Guilhon: Ele não tem inclinação para enfrentar problemas. Quando aparece um problema, imediatamente começa a atacar alguém. No caso de Flavio Bolsonaro, quando as investigações começaram a chegar muito perto do senador, em vez de defender o filho, sua primeira reação foi dizer que não tinha nada a ver com o assunto. A segunda foi ser grosseiro com jornalistas. Isso não dá certo. Ou melhor, dá certo para satisfazer seu grupo. Tendo a duvidar dessa satisfação, porque o apoio que ele teve na direita civilizada está sendo perdido a olhos vistos.
Valor: Ainda assim, o governo foi mais estável do que muita gente esperava. Algumas reformas avançaram, a começar pela Previdência. Essa estabilidade tende a se perder?
Guilhon: Vai continuar a mesma situação, creio. Não por virtude do presidente, nem por virtude da ala, digamos, racional do governo. Mas sobretudo pela indisposição do centro, à direita e à esquerda, de encarar a situação. O Centrão teria condições de impor grande derrota ao governo e ter um projeto de poder. Os votos existem. Derrubaram Dilma e apoiaram Temer enquanto quiseram. Depois o abandonaram e acabou o governo. Mas o Centrão não se interessa por governar. O que querem é um governo fraco, do qual possam tirar proveito.
Valor: Que papel cabe a Rodrigo Maia?
Guilhon: Nesse abismo de mediocridade, é um estadista. Mas é uma biruta, como aquelas de aeroporto: vira na direção do vento. O Centrão vai continuar fazendo isso: mamar nas tetas da viúva, viabilizar o governo enquanto for de seu interesse. Mas, ao mesmo tempo, passaram e vão continuar passando muitas coisas à revelia da presidência.
Valor: E os demais grandes partidos?
Guilhon: Os grandes partidos, como DEM e PSDB, desistiram de ter um projeto de poder. São partidos esvaziados. O PSDB já não é mais centro, é direita. E desistiu de ser partido. É um bando de facções que preferem perder de pouco para os outros do que ganhar com as demais facções. A solução seria preencher esse vácuo criado pelo que chamam de polarização, mas que, na verdade, é uma radicalização. Os dois lados jogam nisso, tanto Bolsonaro quanto o PT. São projetos que dependem de ganhar com minoria, isolando e inviabilizando a massa de centro, que representa mais de 40% do eleitorado. Mas o centro está se inviabilizando sozinho.
Valor: Há grupos se movimentando ao centro e tentativas de compor um terceiro caminho. Eles têm futuro?
Guilhon: Movimentos como a plataforma “Centro”, e também o de Luciano Huck e Fernando Henrique, e outros, já começam vinculados a candidaturas. Não vão a lugar nenhum. Candidatura galvaniza quando tem base. Mas querer galvanizar com um aventureiro contra outro aventureiro? Numa situação como essa, tendo que enfrentar uma extrema-direita com ranço autoritário, é preciso buscar a união do centro com a esquerda. Foi assim que o PSDB se tornou um grande partido: isolando a esquerda e juntando do centro à direita. Uma aliança de centro-direita é imbatível, assim como uma aliança de centro-esquerda. Só que, no Brasil, isso se tornou quase impossível.
Valor: Lula, depois de solto, prometeu ser a grande liderança da oposição e arregimentar forças na esquerda. Que peso ele pode ter em 2020?
Guilhon: Sempre achei Lula um político previsível, com repertório pequeno. Depois que foi preso, o que inviabilizou a vitória do PT em 2018, tornou-se imprevisível. Mas seu comportamento, desde que foi preso, foi destrutivo do próprio PT. Ninguém toma decisão, esperando que ele resolva tudo. Ele não está resolvendo nada. Minha hipótese é que ele vai destruir a relevância do PT, com programa inaceitável para a maioria da população e da classe política.
Valor: O senhor mencionou o ranço autoritário no governo. Há sustentação para isso?
Guilhon: Os avatares do bolsonarismo têm em comum o lado autoritário, incluindo a tendência totalitária de que o outro não existe. Mas o núcleo duro do bolsonarismo é pequeno. Não é nem sequer o “terço” de que se fala. E faltam a esse grupo coisas necessárias para golpes: liderança civil, apoio militar e uma ameaça crível. As Forças Armadas, hoje, não estão dispostas a seguir esse caminho. Inclusive porque o alto comando tem medo da jovem oficialidade, que está insatisfeita, e sobretudo dos praças. Estão tentando criar a ideia de ameaça de alguma forma. Fala-se nos caminhoneiros. Mas não acho que isso vá longe.
Valor: Em que se funda o medo que os altos oficiais têm das patentes mais baixas?
Guilhon: Por muito tempo, os praças foram maltratados pelo governo. Não tiveram aumentos salariais, perderam equipamentos. As patentes mais baixas foram as mais atingidas. A reforma da previdência militar beneficiou os altos oficiais, mas não os praças. O comando militar não quer ver repetido um dos elementos que provocaram o golpe militar: a rebelião de praças.
Valor: Ainda assim, a presença de militares no governo é extensa.
Guilhon: O governo tem a tendência de tentar resolver tudo levando os militares. Na Amazônia, com as queimadas. E querem também militarizar o ensino, fazer intervenção militar na saúde no Rio... A Garantia da Lei e da Ordem (GLO) é ampla demais, herança do regime militar. É como estado de sítio. E a Lei de Segurança Nacional continua valendo, embora modificada. É um problema. Mas acho que qualquer coisa que dependa de apoio do Congresso não vai passar. Há certas coisas que o Congresso não se dispõe a fazer. Não é suicida, não vai entregar a espada na mão de um louco.
Valor: Na diplomacia, o alinhamento automático a Washington continua, mesmo com o cenário global mais tenso?
Guilhon: Não sei como é possível eles prejudicarem mais ainda a política externa brasileira. Não tem política externa. O que tem é escolha de inimigos. A política externa começa dizendo: quais são os principais riscos, as principais ameaças, e de onde vêm? Mas ameaças não vêm só de inimigos, vêm também de circunstâncias, e podem vir também de países aliados. Se escolhem políticas suicidas, você corre o risco de ir junto. A política externa se tornou imprevisível e cria inimizades desnecessárias. A inimizade que se criou com Noruega, França e Alemanha traz muitos problemas e não traz benefícios.
Valor: A pauta ambiental é a mais prejudicial?
Guilhon: Não houve alteração radical da política ambiental, mas tem mudança grande no discurso, nos objetivos e na definição de adversários. Agora o Brasil é posto como inimigo da sobrevivência do planeta. Quando são listados os adversários à COP 25 [conferência do clima da ONU], aparece primeiro [o presidente americano Donald] Trump e, em seguida, o Brasil. O Brasil, hoje, é símbolo da bandeira antiambiente. Isso vai nos acompanhar, o que quer que façamos. E o agronegócio é a encarnação da destruição ambiental, o que é, se tanto, meia verdade, porque o avanço tecnológico da agricultura brasileira é notável. Mas o que acontece? Em vez de a agricultura estar nas mãos do lado mais sadio do setor, está na mão de gente destrutiva, incluindo alguns verdadeiros trogloditas.
Valor: Isso pode afetar as exportações?
Guilhon: O acordo com a União Europeia, tão cedo, não vai ser ratificado. É uma questão simbólica. A tendência anterior era ratificar, porque os europeus tinham muito interesse nesse acordo. E continuam tendo: estão sendo jogados para escanteio pelos americanos. Trump vai tentar expandir a chamada “guerra comercial” com os chineses para a Europa e vai pôr a Inglaterra de joelhos. Mas vamos supor que isso não existisse. Ainda assim, a Europa não poderia, moralmente, ratificar o acordo com o Mercosul. E que outras coisas vão deixar de acontecer? Com a China não deve haver problemas, porque ela não se importa com esses assuntos. O que interessa à China são só negócios.
Valor: O ano de 2019 terminou agitado na América Latina. Isso pode nos afetar neste ano?
Guilhon: Na América do Sul, diria que há uma tendência ao recuo da esquerda. A Venezuela perdeu capacidade de influência. Na Bolívia não se sabe bem o que está acontecendo, mas aparentemente a volta da esquerda é difícil, já que o MAS [partido Movimiento Al Socialismo] está dividido, não há certeza de que vão se fechar em torno de uma candidatura. No Uruguai, o governo vai ser de centro-direita, mais direita que centro. A Argentina teve certa influência externa na era Kirchner, mas graças ao apoio da Venezuela. Não vejo como, neste ano, a esquerda sul-americana possa se reerguer e criar uma aliança forte para influenciar os destinos do subcontinente.
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