A declaração do presidente do Senado transmite
sensação de segurança institucional, pelo cargo que ocupa. Além disso, ao
recorrer ao simbolismo da “mineiridade” política, reforça de modo importante,
como faz desde que chegou ao cargo, o coro de vozes que pregam a pacificação do
país. Trata de pacificação como algo bem distinto da mera conciliação com
Bolsonaro, pois a disposição conciliadora compartilhada pelo senador mineiro,
em seu conservadorismo republicano genuíno, significa, por definição, uma
não-conciliação com o golpismo do presidente. Ambas as dimensões do
posicionamento (a institucional e a política) agradam a este comentarista, mas
não é disso que trata a coluna de hoje.
O intuito é analisar a declaração sob o
ângulo de seu aparente sentido de posicionar o presidente do Senado na discussão
pré-eleitoral que transcorre, contra o relógio, dentro do campo político que
integra. As assim chamadas direita e centro-direita precisarão, nos próximos
meses, definir-se por um caminho eleitoral próprio ou por contribuir a uma
agregação mais ampla, que englobe o centro do espectro ideológico, podendo
chegar à soleira da porta da assim chamada centro-esquerda. A premissa de que
parto para considerar apenas essas duas possibilidades é o desvanecimento
prático da opção de renovar, pela aposta na reeleição de Bolsonaro, o pacto
regressista vencedor em 2018.
Sob esse enquadramento, a declaração parece
mais um toque de reunir do que um chega para lá. Acena à reconfiguração
republicana do governismo, mais do que ao nascimento de uma oposição
conservadora ao governo. Do seu posto de observação privilegiado, Pacheco
constata todos os dias que o fantasma da orfandade ronda a nuvem política que
se agarrou no mito em 2018 e percebe seu esfarelamento a um ano das próximas
eleições. Mas que mensagem será capaz de reunir proativamente essas forças hoje
perdidas no varejo e dispersas no atacado? A da firme resistência institucional
é, sem dúvida, um bom e nobre começo, capaz de reparar, na prática, o malfeito
anterior.
O pulso forte do republicanismo mineiro-nacional, no entanto, além de espantar o perigo que ronda a nação e sua democracia, construirá o que? Sua agenda positiva será a das chamadas "ilhas de racionalidade" do atual governismo, quase invisíveis a olho nu enquanto Bolsonaro estiver sentado na sela em que transformou a cadeira presidencial? Que acenos concretos uma centro-direita racional, como a que Pacheco ensaia encarnar, pode fazer aos quase náufragos da aventura populista, para tomarem o barco governista das mãos nada limpas e ainda por cima ineptas do capitão e dos tripulantes mais chegados, ou para o abandonarem à deriva e tomarem assento em outra embarcação?
A racionalidade dos cálculos eleitorais nem
sempre está ao alcance de uma razão esclarecida. O pulso forte que essa razão
comanda, se não achar um discurso econômico que o conecte ao mundo social, pode
se ver neutralizado pela eficácia prática de uma mão boba trafegando em sentido
oposto, mão calçada com luvas de uma confortável dianteira em pesquisas
eleitorais. Vistosas luvas, que tentam náufragos ávidos por sombra e afagos.
Mas não apenas no arraial governista a
razão esclarecida cambaleia. Se nele ela tenta se aprumar a partir de um
discurso de resistência conservadora das instituições, no arraial oposto, da
oposição de esquerda, sua missão não é menos complexa que a de Pacheco. Dinos,
Freixos, Tábatas, no PSB e fora dele, tentam fazer segunda voz num coro em
torno de um mito que, ao contrário do da direita, parece ir muito bem, obrigado.
Sequer podem insinuar, no momento, uma concertação crítica. Precisam divisar,
no maciço ideológico e pragmático que ata PT e esquerda ao lulismo, ilhas de
racionalidade com as quais possam, ao menos, dialogar para moderar o apetite populista
da caravana que segue o virtual campeão de votos, ignorando o ladrar de
teimosos perseguidores de uma terceira via.
Uma entrevista de um personagem bem menos visível,
o economista Guilherme Melo, do Instituto de Economia da Unicamp e da Fundação
Perseu Abramo (“O PT quer o fim do teto de gastos. E uma nova regra fiscal no
lugar”) concedida aos jornalistas Daniel Rittner e Fabio Graner e publicada
pelo jornal Valor Econômico, em 13.09.21, permite uma interessante comparação,
dentro do mesmo ângulo de análise do debate pré-eleitoral.
Apesar de minhas evidentes e confessas limitações
cognitivas na área da economia, percebi, no discurso de Melo, uma atitude
moderadora. Temas especialmente controversos, como expansão do gasto público,
reforma tributária, metas de inflação e independência do BC são enfrentados na
entrevista sob enquadramento político que lembra, talvez, a disposição, ou
sentido de missão pragmática, da “Carta aos brasileiros” de 2002. Sem uso de
dogmas ideológicos da primeira infância do partido, do maniqueísmo dos tempos
da sua oposição intransigente aos governos de FHC, de certezas arrogantes no
exercício do poder, ou de chavões populistas costumeiros do petismo da década
passada.
Naturalmente há muitas afirmações vagas, opções
ainda não bem delineadas num discurso substantivo, mas é perceptível uma retórica
"nem, nem" (nem liberalismo econômico, nem nova matriz Rousseff/Mercadante),
com a ressalva, de Melo, de que ele não fala por Lula. Com tudo isso, a
entrevista mostra que uma certa terceira via é pensada em ilhas de
racionalidade acadêmica petistas, onde se procura fazer economia e política
conversarem sob a batuta de uma razão soberana que considera, aqui e ali, a
experiência de uma década de interdição dessa conversa no Brasil. A sinalização é de uma inflexão racional ao
centro.
Na arena plebiscitária, no entanto, que
alimenta e se alimenta de pesquisas de imagem, de potencial e de intenção de
voto, a substância e o tom de Lula até aqui não dão espaço a nem, nem algum,
seja os de uma virtual terceira via, seja os que sussurram na sua cozinha. É populismo explícito em política e quase nacional-desenvolvimentismo
em economia. A evocação simbólica à persona de Luiza Trajano (nem estimulada,
nem rejeitada pela própria) tem indisfarçável sabor de revival, tanto na
intenção de dissipar receios empresariais (compartilhada, também, com a da Carta
aos brasileiros), quanto na afinidade que a "apresentação"
apologética da empresária, feita pelo político pop, líder das pesquisas, guarda
com aquela retórica dos campeões nacionais do tempo da nova matriz.
Por enquanto, são pequenas as chances de proposições
como a do economista Melo darem o tom da campanha petista, pois, ao que tudo
indica, o candidato, agora, não será um Haddad. Isso não significa recusa do
centro por Lula, mas precisamente sua busca, através de outra racionalidade,
que a razão soberana desconhece. Algo que de modo sintético pode ser
representado pela ideia estratégica de usar uma polarização sem nuances para se
eleger e depois a conciliação para governar. Seria passar da oposição aguerrida
a governo moderado, sem a mediação de uma campanha cujo conceito seja Lulinha
paz e amor.
A comparação das agruras da razão
esclarecida nos dois arraiais deixa evidente um contraste entre o terreno
politicamente resolvido da esquerda e a cacofonia que ainda impera na direita.
A primeira está em campo, a segunda no divã. Explica-se, portanto, que na
esquerda já se esboce, inclusive, um discurso econômico para conversar com a
política, ainda que limitado pelo poder de veto discricionário de Lula. Já nas
áreas politicamente próximas ao atual desastre governamental o discurso
econômico ainda repete slogans doutrinários como biombos de pragmatismos
espúrios. Paulo Guedes é um pântano do qual potentados privados indigentes em
ética pública não conseguem se desprender. Sintoma de que a direita stricto sensu não tem
até aqui o que dizer numa conversa entre economia e política. Há realistas, mas
na falta de um rei, não entabulam um plano real.
A indeterminação reinante nas cercanias do
palácio e a insuficiência de uma razão conservadora endógena para superar essa
indeterminação fazem-me pedir licença aos inúmeros fatalistas de plantão, que
anunciam diariamente o aborto de uma terceira via, para dizer que o centro
democrático poderá ter um papel decisivo nessa eleição. Só ele pode produzir o
programa que a direita e a centro-direita juntas não têm. Falta-lhe até aqui um
nome próprio que trafegue de modo fluente no território onde há razões que a própria
razão desconhece. Essa não é lacuna pouca e desconhecê-la é bobagem. Ainda
resta um tempo para seguir tentando que esse nome emerja de lugares sociais
onde impera a lógica plebiscitária da necessidade. É tempo cada vez mais pouco
e o sucesso dessa hipótese é improvável, para dizer o mínimo. Porém, a não ocupação do vácuo é limitação da virtù
política, artigo raro hoje em dia. Ela não desmente a existência do vácuo, que
expressa a ausência de tradução política da presença sociológica do centro político.
Pesquisa após pesquisa, esse centro persiste na foto e desafia os ululadores do
óbvio.
Se os partidos do centro democrático não
tiverem, de fato, razões suas para produzirem, institucionalmente, no parco
tempo que lhes resta, a agregação política que não surgiu de um movimento
bem-sucedido de alguém junto ao eleitorado, será porque eles também, a exemplo
das arenas plebiscitárias onde o eleitorado se entoca, são lugares de onde emanam
razões que a própria razão desconhece. Nesse
caso, a ideia de terceira via será espólio disputado pela esquerda lulista, plena
no discurso, que buscará subsumi-la em seu abraço hegemônico e por uma direita
que precisa dela para encontrar algum discurso.
Com o tempo veremos o que o pulso forte a
que alude Rodrigo Pacheco tem a ver com isso. Duas prospecções são possíveis
com os inerentes riscos de engano. Primeiro que a razão esclarecida é condição
necessária, mas não suficiente para que o aludido pulso firme e forte produza
efeitos não apenas defensivos. O desencarceramento de ideias depende em muito
de um saber prático. Segundo que o entendimento da centro-direita com o centro
parece questão de tempo, mas aí há duas incertezas relevantes, uma sobre as
bases desse entendimento (quem entraria com que no consórcio) outra sobre a sua
tempestividade. O desejo das partes diretamente envolvidas é contarem com um
tempo elástico. O da esquerda é encurtá-lo ao máximo. O de Bolsonaro, ser intempestivo
para cessar qualquer entendimento e poder se desentender até consigo. A
mineiros cabe vigiar o capitão, sem deixar de tocar o barco.
*Cientista político e professor da UFBa
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