O Estado de S. Paulo
Há muita sintonia entre os paradigmas do jurista e o instinto da ação do presidente Bolsonaro
Pe. Antonio Vieira, refletindo sobre o bem
e o mal, diz que da sua interação todos padecem: “Os males porque se temem, os
bens porque se esperam; para afligir, o mal basta ser possível e para
molestar-se, o bem basta ser duvidoso”. Também pontua: “O bem conhece-se na
privação; o mal, na experiência”.
A intensidade da privação do bem e a
ampliação da experiência do mal são uma das notas sombrias do mundo
contemporâneo. Auschwitz é um paradigma da presença do mal na história humana.
O mal é um grande e inquietante tema da teologia e da filosofia que Denis
Rosenfield enfrentou com coragem e envergadura no seu recém-publicado
Jerusalém, Atenas e Auschwitz, pensar a existência do mal.
O primeiro capítulo é dedicado a Carl
Schmitt, um dos grandes juristas do século 20, que continua exercendo fascínio,
favorecedor do arbítrio do poder, tanto à direita, de onde proveio, quanto à
esquerda.
Bobbio propõe, em O Elogio da Serenidade,
uma distinção analítica entre dois aspectos do mal que, embora vinculados,
comportam diferenciação: o Mal ativo e o Mal passivo. O ativo é o infligido. O
passivo é o sofrido. São os rostos de duas realidades humanas: a maldade e o
sofrimento.
A contundente crítica de Denis a Schmitt
tem como base sua avaliação de que o pensamento deste sustenta no trato da
relação Direito/Poder o potencial do mal ativo na vida política.
Direito/Poder é tema recorrente da teoria jurídica e política. No século 20, nesta matéria, confrontaram-se duas visões antitéticas: a de Kelsen e a de Schmitt.
Kelsen foi defensor da democracia; seu
pensamento jurídico é exemplo da positiva avaliação para a cidadania da
juridificação do Estado e do poder, regido pelo constitucionalismo do governo
das leis.
Seu empenho está voltado para afirmar a
prevalência do direito sobre o poder.
Schmitt dedica-se a subordinar o direito ao
poder. Sua preocupação não é a norma, mas a decisão; não a razão, mas a
vontade; não o Poder Legislativo, mas o Executivo; não a normalidade, mas a
exceção; não a generalidade da lei, mas a especificidade das medidas e, muito
especialmente, as que consagram a plenitude de um estado de exceção. Para
Schmitt, “o Führer protege o direito do pior abuso, quando ele no instante do
perigo cria o direito sem mediação, por força da sua liderança e enquanto juiz
supremo”.
Não é apropriado reduzir Schmitt apenas a
um desenvolvimento doutrinário do regime nazista, pois a erudição e imaginação
conceitual do seu pensamento não esclarecem por si sós a efetiva e avassaladora
explosão do fanatismo nazista. Mas o bloco dos conceitos no qual se assenta sua
reflexão – amigo/inimigo, decisionismo/estado de exceção, soberania/ditadura,
povo/chefe – insere-se no “ar de família” do espírito do nazismo do qual foi
adepto e do poder arbitrário em geral.
O decisionismo de Schmitt correlaciona-se
com sua distinção amigo/inimigo como constitutivo da essência da política. Na
distinção, o termo fraco é amigo, o forte é inimigo. A identificação do inimigo
é a máxima orientadora da conduta política. Explica a “lógica” do incessante
movimento do nazismo e o ímpeto destruidor do seu antissemitismo, como destaca
Denis.
A máxima amigo/inimigo permeia o
decisionismo da concepção de Schmitt do Direito Constitucional e da soberania
como o poder de declarar a exceção; e do Direito Internacional
Público voltado para a apropriação de
território. Como diz Denis, na distinção amigo/inimigo “não sobra espaço
conceitual para o conceito de humanidade”.
Denis desconstrói a apropriação ideológica
que Schmitt fez de Hobbes e de Hegel. Para Hobbes, o direito à vida é tão
fundamental que justifica a desobediência mesmo na ordem do Leviatã, concebida
para deter a guerra de todos contra todos prevalecente no estado da natureza. O
significado da relação “senhorio e escravidão” na Fenomenologia do Espírito de
Hegel, observa Denis, é o de uma luta pelo reconhecimento. Não é hegeliana a
denegação do direito humano à luta pelo reconhecimento proveniente do anonimato
de morte e da condição sub-humana imposta aos judeus nos campos de
concentração. Denis pontua que a leitura de Kojève é a de um Hegel benévolo em
relação ao totalitarismo stalinista.
Concluo descendendo dos conceitos com um
mergulho em nossa circunstância. Schmitt é o “guardião do arbítrio”, como
observa Michelangelo Bovero. Há muita sintonia relacionada ao mal ativo na
convivência política em nosso país entre os paradigmas schmittianos e o
instinto da ação do presidente Jair Bolsonaro.
O presidente está sempre propenso a afirmar
a prevalência do seu poder sobre a Constituição, da qual se considera,
independentemente do STF, o seu guardião; a construir a sua conduta política
pela ascensão aos extremos da distinção amigo/inimigo; a buscar no seu
decisionismo a soberania de declarar a exceção e a exasperar-se com a
normalidade; e a postular a sua legitimidade de chefe em detrimento da
legalidade das normas.
*Professor Emérito da Faculdade de Direito
da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
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