Folha de S. Paulo / O Globo
Nunca na história da República se viu coisa igual: o
governo de Pindorama está com os dois pés fincados no atraso
Com cerca de 590 mil mortos e perto de 10% da população tendo sido
infectada pelo coronavírus, o Brasil tem um presidente que não se vacinou,
combateu o distanciamento e defendeu a cloroquina. Seu primeiro chanceler se
orgulhou por ter colocado o país na condição de pária, os agrotrogloditas
continuam derrubando as florestas, e o pelotão palaciano que relutou em
reconhecer o resultado da eleição americana tornou-se uma sucursal do trumpismo
eletrônico.
Nunca na história da República se viu coisa igual: o governo de Pindorama está com os dois pés fincados no atraso. Isso nunca aconteceu na República, mas no Império aconteceu, custando caro à terra das palmeiras onde canta o sabiá. Há ocasiões em que países decidem andar para trás. Quando isso acontece, uma névoa embaça a percepção. Só com o tempo é que as coisas ficam claras. É temerário pretender fixar num dia o triunfo da insensatez. Aqui vai uma tentativa para ilustrar o salto dado em direção ao atraso na manhã de 23 de fevereiro de 1843, quando começou a sessão do Senado do Império. Ele funcionava no prédio do campo de Sant’Anna, onde hoje está a Faculdade de Direito da UFRJ.
A sessão começou às 10h30m, e na ordem do dia estava o projeto do
médico Thomas Cochrane para que o governo desse isenções tributárias e
subscrevesse ações de uma companhia interessada em construir uma estrada de
ferro que sairia do Rio de Janeiro em direção a São Paulo. A matéria havia sido
aprovada na Câmara dos Deputados, mas fora rejeitada pela comissão da Fazenda
do Senado.
(A primeira ferrovia dos Estados Unidos havia sido inaugurada em
1830, e desde 1840 lá existiam cerca de 4.500 quilômetros de trilhos.)
A proposta tomou chumbo. O senador Luiz José de Oliveira Mendes,
futuro Barão de Monte Santo condenou-a:
“A ideia de estradas de ferro entre nós é uma daquelas
apresentadas por especuladores que nenhuma intenção nem esperança têm de
realizá-las. Ainda não temos estradas, nem de barro, como queremos pois fazer
uma de ferro, e logo tão grande extensão!! Para passar por ela o quê? Quatro
bestas carregadas de carvão, em um ou outro dia!!”
Especulador, talvez Cochrane fosse. Condenando o projeto, entraram
dois gigantes da época, o senador Carneiro Leão, futuro Marquês do Paraná e
Bernardo Pereira de Vasconcelos, grande jurista. Doente, comparecia às sessões
em cadeira de rodas. Ambos defendiam as finanças da Coroa e condenavam a precariedade
do projeto.
Bernardo apresentou argumentos técnicos e políticos.
Quanto à técnica: “Quero avaliar cada légua em mil contos de réis,
porque são necessárias duas estradas, uma de vinda, e outra de volta.”
Coube ao pernambucano Holanda Cavalcanti corrigir a conta de
Bernardo:
“O nobre senador baseia o seu cálculo em dois trilhos de ferro, na
extensão de trinta léguas, e diz que são precisos 30 mil contos de réis; ora, e
se eu lhe disser que podemos fazer a estrada em um só trilho?”
O líder conservador, pai do período que se denominou Regresso,
achava que uma ferrovia precisava de dois pares de trilhos. Um para a ida,
outro para a volta.
Quanto à política, Bernardo abriu a porteira de outro debate, pelo
qual pretendia continuar a passar sua boiada:
“Eu, Sr. presidente, entendo que devemos cuidar de outros objetos
e pôr de parte estes planos gigantescos; onde havemos ir procurar meios para
estas despesas? Esperamos nós que o país vá em progresso hoje? (...) Não temos
um grande obstáculo a isso na absoluta cessação do tráfico dos africanos? Há
mais de um ano que não entra no Brasil um só africano...”
No plenário riu-se. Um senador lembraria depois que naquele ano
entraram 17 mil negros escravizados. Outro corrigiria: “Muito mais, entraram
pelo menos 50 mil.”
À época discutiam-se o valor de um tratado assinado com a
Inglaterra pelo qual o Império havia se comprometido a acabar com o tráfico de
negros escravizados e trazidos da África. Uma lei de 1831 dizia que seriam
livres os africanos que desembarcassem no Brasil. Diversos senadores tratavam o
tráfico pelo nome: “contrabando”.
O regresso prevaleceu. O projeto da ferrovia de Cochrane acabaria
rejeitado, e a primeira locomotiva só circularia no Brasil em 1854, quando os
Estados Unidos tinham cerca de 15 mil quilômetros de trilhos.
Bernardo leva sua boiada
Semanas depois da sessão de 23 de fevereiro, Bernardo Pereira de
Vasconcelos refinou sua argumentação negreira. No dia 25 de abril, afirmou: “A
África tem civilizado a América”.
A frase chocou e nos dias seguintes ele a elaborou, valendo-se do
exemplo dos Estados Unidos: “Os africanos têm contribuído para o aumento, ou
têm feito a riqueza da América; a riqueza é sinônimo de civilização no século
em que vivemos; logo a África tem civilizado a América, que ingrata não
reconhece esse benefício.”
O fim do contrabando de africanos escravizados só aconteceu em
1850, quando a frota inglesa começou a bloquear os portos brasileiros.
A escravidão só acabou em 1888. Os Estados Unidos tinham mais de
320 mil quilômetros de ferrovias.
E que rumo tomou Bernardo Pereira de Vasconcelos? Quebrou a perna
em dezembro de 1843, continuou defendendo o contrabando de escravizados e vivia
bem.
Em abril de 1850, o Rio teve o que poderia ter-lhe parecido uma
“febrezinha” e continuou indo ao Senado, onde discursou:
“Eu também estou persuadido de que se tem apoderado da população
do Rio de Janeiro um terror demasiado, que a epidemia não é tão danosa como se
têm persuadido muitos; não é a febre amarela a que reina.”
A 1º de maio, morreu, de febre amarela.
O ministro inglês no Rio anotou:
“Sua morte removerá um dos principais obstáculos para a supressão
do comércio de escravos neste país.”
No dia 13 de agosto, o Senado aprovou o projeto que proibia o
contrabando de escravizados.
Serviço: Bernardo vive
Os Anais do Senado do Império estão na rede.
Quem quiser pode ler todos os debates.
Vale a pena, até mesmo para se ver o tempo que os doutores perdiam
discutindo pensões e prebendas para a turma do andar de cima.
Boa parte do tempo da sessão de 23 de fevereiro de 1843, quando
Bernardo atirava contra a ferrovia de Cochrane foi consumido na discussão de
pensões.
Às duas da tarde os senadores foram almoçar.
Saída de emergência
Mesmo que não tenha sido essa sua intenção, o ministro Paulo
Guedes criou uma saída de emergência para Jair Bolsonaro ao dizer, com toda
razão, que a instituição do mecanismo da reeleição foi “o maior erro político
que já aconteceu no país”.
Durante a campanha de 2018, Bolsonaro condenou esse instituto e prometeu que não disputaria a reeleição. Agora, com 53% de desaprovação no Datafolha, se quiser, pode sair do páreo. Poderá apresentar um projeto de emenda constitucional acabando com a reeleição a partir de 2026.
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