Para Brasilio Sallum Jr., professor aposentado da USP, impeachment do atual presidente é improvável
Naief Haddad / Folha de S. Paulo, 17/9/2021
SÃO PAULO - Não há golpe nem
impeachment no horizonte.
Para Brasilio Sallum Jr.,
professor titular aposentado de sociologia da USP, as instituições
democráticas, especialmente o STF, reagiram com firmeza aos discursos
de tom autoritário de Jair Bolsonaro (sem partido) no 7 de Setembro,
demonstrando ao presidente que não existem condições para um golpe.
“O objetivo de Bolsonaro
é ganhar a eleição no ano que vem, golpe já não dá mais”, afirma o autor de
livros como "Labirintos - dos Generais à Nova República” e “Impeachment de Fernando Collor”.
Tampouco existe um cenário
armado para impedimento do presidente. De acordo com o sociólogo, as
circunstâncias são bem diferentes das verificadas em 1992, ano da queda de
Collor, e 2016, quando Dilma sofreu impeachment.
O professor de 75 anos
faz suas análises e, em seguida, deixa a ressalva, com uma ponta de humor:
"É o que eu acho, mas você sabe que, em política, a gente pode
errar".
O sr.
estudou longamente o processo de impeachment de Fernando Collor. Identifica
mais semelhanças ou diferenças daquelas circunstâncias, no início da década de
1990, com o que vivemos hoje com Bolsonaro?
Vejo muitas diferenças.
Estávamos saindo de enormes mobilizações dos anos 1980 e existia uma demanda
imensa, especialmente da classe média, por democracia. Quando Collor assumiu e
passou a agir de maneira autoritária, desconhecendo o Congresso, governando de
modo isolado, deu-se um choque imediato. Havia uma unificação na sociedade na
demanda por democracia.
Agora é completamente diferente. Existe hoje um movimento de defesa da democracia muito ancorado nas instituições, mas não há uma unificação. Embora a população, em geral, tenha simpatia pela democracia, não ocorreu uma conversão para um movimento coletivo. As manifestações do último dia 12 mostraram que há uma diferença grande entre a boa vontade em torno da democracia e a mobilização coletiva.
Impeachment
lhe parece, então, um cenário improvável?
Bolsonaro foi esperto ao
perceber que o 7 de Setembro tinha desencadeado uma mobilização multipartidária
em direção ao impeachment. Claro que isso dependeria de outras coisas, mas, de
toda maneira, houve esse impulso. Com a carta [escrita com a ajuda do
ex-presidente Michel Temer], Bolsonaro reduziu a força desse movimento.
Como não há uma
mobilização grande pró-impeachmet, a maioria dos deputados atua de acordo com a
lógica eleitoral. E essa lógica diz: “Deixem esses caras do governo quietos e
saímos na hora H. Enquanto isso, vamos aproveitando o orçamento e outras coisas
mais”.
É importante também
lembrar que o PT não está focado no impeachment, prefere que não aconteça. É
bom para o PT ter na disputa um Bolsonaro fraco. O fato de o principal partido
da esquerda não fazer pressão nesse sentido praticamente o inviabiliza.
A lógica eleitoral
basicamente mantém a polarização. Não quero dizer que eles sejam polos efetivos
porque o Lula é um democrata, sempre foi e não vai deixar de ser. Mas a
situação é vista como uma polarização.
Isso tudo que eu digo não
nega que existam motivos, no sentido legal da palavra, para o impeachment.
Pelo contrário. Mas não vai acontecer enquanto não houver interesse das forças
em jogo.
Chega a ser ridículo comparar a situação do Bolsonaro com a da Dilma. A acusação contra ela era, digamos, menor do que as que pesam sobre ele. No entanto havia um movimento político para sustentar o processo contra ela. Agora existem muitas possibilidades legais de impeachment, mas não tem um movimento.
Esse
aparente apaziguamento com a divulgação da carta, a “declaração à nação”, terá
efeito duradouro?
Não, é um recuo
provisório por medo das consequências. Mas, se prestar atenção, verá que
continuam [as ações autoritárias]. Por exemplo, o deputado Major Vitor Hugo
[PSL-GO] tem essa proposta contra ações terroristas, que
concentra poderes nas mãos do presidente da República. No entanto essas ações
do Bolsonaro serão cada vez menos efetivas.
Considera
positiva a atuação do STF nessa crise entre poderes?
Luiz Fux [presidente do STF] agiu muito
bem. Ao falar em crime de responsabilidade [após os discursos de Bolsonaro no 7
de Setembro], Fux sublinhou as consequências de alguém desobedecer o Supremo.
O
professor Marcos Nobre disse à Folha que “o objetivo de Bolsonaro, desde que se apresentou
como candidato, é dar o golpe”.
O
senhor concorda? Não diria isso, é muito forte. Quanto
mais as consequências do governo se mostram negativas, mais ele vai perdendo as
chances de ganhar a eleição. E aí surgem esses impulsos autoritários.
Mas tenho a impressão de
que Bolsonaro já sabe que não tem condições de dar o golpe. É o que, de fato,
parecia querer no 7 de Setembro, mas tenho impressão que a reação foi
suficientemente forte e legalista. Hoje em dia, ele não tem a chance de
conseguir dar um golpe. O objetivo de Bolsonaro é ganhar a eleição no ano que
vem, golpe já não dá mais. Ele faz cálculos e percebe que não há condições de
dar um golpe, não tem chance.
Não é
factível então?
Não é. Duvido que, a essa
altura, depois do 7 de Setembro, isso seja um objetivo que ele tente alcançar.
Entre a vontade e as possibilidades dele, há uma grande diferença. Quanto mais
ele tem clareza de que vai perder a eleição, maior é a vontade de manter o
poder irregularmente. Mas ele pode? Acho que não.
O grande drama dos
admiradores do Bolsonaro é que se trata de um apoio simplesmente ao exercício
da autoridade porque não há um objetivo nem uma estratégia. A maior parte do
empresariado mais bem-sucedido já o abandonou. As Forças Armadas e as forças
policiais se deram conta de que o apoio ao presidente não pode se converter em
um movimento que rompa com a Constituição, especialmente porque não há um
objetivo. Vai fazer o que quando assumir o poder [depois de uma ruptura]?
Em 1964, havia um
objetivo, um programa. Castello Branco fez muita gente sofrer
com as cassações e outras medidas, mas era alguém com algo na cabeça. Agora não
há. A desqualificação pessoal do Bolsonaro é uma das dificuldades.
Uma
coisa é dar o golpe, outra é que ele seja bem-sucedido. Bolsonaro não seria
capaz nem de dar esse primeiro passo?
Acho que não. Depois do 7
de Setembro, não tem mais essa chance.
Eu ainda tenho dúvidas
sobre o que foi esse 7 de Setembro, afinal. O que ele esperava ao dizer que
desobedeceria o Supremo? Houve uma preparação de dois meses, será que ele esperava
algum tipo de ação militar? Não sei. Ainda não fechei minha interpretação sobre
o que aconteceu, mas certamente [a mobilização] foi menor do que ele imaginava.
Depois Bolsonaro teve que
recuar, o que significa que não deu certo, que ultrapassou um limite que a
sociedade impôs a ele. Agora não há mais possibilidade de golpe. É o que eu
acho, mas você sabe que, em política, a gente pode errar.
Como
o sr. avalia o resultado do Datafolha, que indica um novo
recorde de reprovação do presidente?
A pesquisa mostra que o
processo de desgaste segue firme. Será muito difícil redesenhar essa tendência,
e pouca gente acredita em uma mudança significativa dos rumos do governo.
Aparentemente os episódios do 7 de Setembro não afetaram a popularidade dele de
forma expressiva. Penso que o dia foi mais importante pela reação demonstrada
pelas instituições, o STF e o Senado, por exemplo. Mesmo o silêncio foi
revelador —os militares ficaram quietos.
Vê
alguma chance de Bolsonaro retomar os índices de popularidade de quando foi
eleito?
É difícil, mas o Estado
tem recursos. Se parcelar os precatórios previstos na PEC, terá uma
economia de R$ 33,5 bilhões, o que poderia permitir expansão de políticas
públicas.
Isso mostra, aliás, que nossa
democratização não avançou tanto quanto deveria. O fato de ainda haver cálculos
que vinculam concessões materiais (bolsa-isso, bolsa-aquilo) a voto significa
que a gente ainda não escapou do velho coronelismo, que ligava favores pessoais
a votos. Houve evolução, mas cálculos desse tipo ainda são feitos na política.
Ainda assim, retomar a
popularidade seria difícil para Bolsonaro. Essas concessões teriam que ser
eficazes no Nordeste, onde ele precisaria vencer a lealdade da população pobre
ao Lula. No Sul e no Sudeste, por outro lado, é possível que uma terceira via
tire muitos votos dele.
O sr.
acredita no sucesso de uma terceira via?
Seria preciso alguém com
carisma e não vejo hoje essa pessoa. Pode ser que surja.
Ciro Gomes [PDT] não
parece forte o suficiente diante do Lula. Tem o Luiz Henrique Mandetta [DEM], que foi bem
como ministro da Saúde, Simone Tebet [MDB], que parece uma
parlamentar qualificada... Mas não sei se teriam chama suficiente para uma
eleição presidencial.
Dentro do PSDB, João
Doria [PSDB] é quem tem mais chances. Mas tenho dúvidas se faria frente ao
carisma do Lula. Ele gosta de dizer que é um gestor. Não sei se é isso que
interessa aos eleitores.
Enfim, a terceira via é
difícil de ser percorrida e costurada.
O sr.
elogiou a Lava Jato em entrevistas e artigos em meados da última década. Desde
então, surgiram as revelações da Vaza Jato, que colocaram em xeque os
métodos da operação, e houve a ida do ex-juiz Sergio Moro para o Ministério da Justiça
do governo Bolsonaro. Passados alguns anos, considera que o saldo
foi positivo?
É difícil dizer. Embora
tenha cometido injustiças, exageros principalmente, nas investigações e nos
julgamentos, a Lava Jato teve a qualidade de colocar o dedo num dos
problemas-chave da democracia a partir de 1988 [a corrupção recorrente com o
financiamento privado das campanhas eleitorais], o que nos permitiu fazer
algumas mudanças na legislação. Tenho impressão que houve uma melhora nesse
sentido.
A operação prejudicou
algumas pessoas, Lula foi o principal prejudicado. Os ônus foram muito
desiguais. Mas, no cômputo geral, ela teve um efeito positivo.
*Brasilio
Sallum Jr., 75
Nascido em Porto Alegre,
mudou-se para São Paulo e formou-se em ciências sociais pela USP, onde fez
doutorado e livre docência. Tornou-se professor titular de sociologia na
universidade e se aposentou em 2016. É autor de livros como "Labirintos:
dos Generais à Nova República" (ed. Hucitec, 1996) e "O Impeachment
de Fernando Collor: Sociologia de uma Crise (ed. 34, 2015). Organizou a
coletânea "Brasil e Argentina Hoje: Política e Economia" (Edusc,
2004).
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