O Estado de S. Paulo
Há versos ou poemas inteiros que grudam na
memória e, mudos, passam a nos desafiar para sempre, retornando em particular
nos momentos agudos de crise. Entre tais lembranças, difícil deixar de incluir
Inquisitorial, de um jovem e talentoso José Carlos Capinan de meados dos anos
1960, ainda no rescaldo da guerra e do vasto sentimento antifascista que ela
havia desencadeado.
“O poeta não mente, dificulta” – dizia
Capinan –, e a dificuldade que propunha retirava-nos qualquer conforto
possível: uma coisa é zombar, levados pelo gênio de Chaplin, do ridículo do
Terceiro Reich, mas, de fato, o que faríamos se vivêssemos naquele tempo e
tivéssemos de encarar em primeira pessoa o que só depois se revelaria absurdo?
Lição de arte e de vida, sem dúvida. A
lição, porém, não implica comparações imediatas, como seria o caso se
aplicássemos automaticamente o rótulo infame – fascismo ou nazismo – aos
modernos ou pósmodernos movimentos de corrosão da democracia liberal ou, mais
apropriadamente, da democracia tout court. Mais adequado é observar o modo como
tais movimentos contemporâneos, repropondo em novas bases a figura do homem
providencial, buscam arregimentar o povo, ou a “sua” parte do povo,
indispondo-a contra as instituições republicanas que garantem as liberdades
individuais e os direitos humanos.
Por óbvio, aqui nos valemos da engenhosa fórmula, criada por Yascha Mounk, para descrever a ação dos novos homens fortes. Da Rússia de Putin à Venezuela de Chávez e Maduro, países e estruturas políticas variam e personalidades podem não ser decalques umas das outras, ainda que haja entre elas imitadores baratos. Contudo, há algo de inquietantemente regular nos procedimentos que, hoje, buscam dissociar democracia e liberalismo e instaurar o cerco populista aos mais variados “Capitólios”, inclusive o nosso.
Deixando de lado os fatores “estruturais”
da grande transformação, que põem de pontacabeça as relações entre economia e
sociedade, nação e mundo, as respostas regressivas apoiam-se sempre em pesados
elementos ideológicos, no sentido mais negativo do termo.
Há quem tenha detectado, como os autores de
um relatório da controvertida Rand Corporation (Paul & Matthews, The
Russian ‘Firehouse of Falsehood’ Propaganda Model , de 2016), a matriz
putiniana do emprego maciço e coordenado de meias-verdades e mentiras
consumadas, criando uma realidade paralela a partir da qual milhões de pessoas
interpretam a realidade, fazem escolhas e se orientam, ou desorientam, na vida
real. Não há ideologia inocente e não deixa de ser curioso que, aceita a
hipótese da origem putiniana, haverá algum resquício de tipo “soviético” nas
técnicas manipulatórias que se disseminaram, com o Brexit e a eleição de Trump,
nos países ocidentais mais emblemáticos.
O “jato de mentiras” que jorra da boca dos
autocratas não é um simples meio de “desviar a atenção” de questões incômodas
para o governante ou fazer com que a sociedade se distraia de outros assuntos
mais cruciais. Tal efeito não está de modo algum excluído, muito ao contrário,
mas nos interessa sublinhar que este tipo de violação da linguagem é que
permite a imposição de estratégias para a extração do consenso ao menos passivo
de expressivos contingentes da sociedade.
Um consenso ativo pressuporia, por parte
das camadas dirigentes, recursos hegemônicos capazes de dinamizar a vida
cívica, enriquecer as formas da política e incorporar forças e ideias
divergentes e até antagônicas num contexto de liberdade e pluralismo. Mais
democracia, portanto, e não menos. À falta de tais recursos, a direita
populista e iliberal dos nossos dias, ao contrário do que queria o poeta, mente
e dificulta, corrói as instituições e faz adoecer as palavras. Congênita a ela
é a busca obsessiva e paranoica do inimigo geopolítico e dos seus agentes
internos a serem aniquilados, numa imóvel guerra fria que se limita a
substituir espantalhos: antes, a Rússia de 1917, agora a China de 1949.
A liberdade que a direita autocrática
apregoa é internamente contraditória. Ela é, acima de tudo, a liberdade do
indivíduo autarquicamente concebido, desembaraçado de vínculos e obrigações, e
armado até os dentes para defender o que discricionariamente entende ser seus
“direitos”. A contradição interna fica patente quando se observa que, para
fazer valer a liberdade sem laços e os direitos sem contrapartida, torna-se
necessária a implantação de um Estado baseado, primariamente, na força e,
secundariamente, na fabricação artificial do consenso. Em resumo, na mentira,
na distorção e na enfermidade de palavras e sentidos.
Elites políticas, de direita, centro ou
esquerda, dirigentes econômicos e cidadãos comuns, como qualquer um de nós,
quase podemos “tocar” na história que se desenrola à nossa frente, com seus
fatos e personagens precários e bizarros. É verdade, não estamos em 1930 e os
embriões de Hitler e Mussolini não passam disto: embriões. O Inquisitorial, no
entanto, continua a incomodar e a tirar o fôlego: “Tu, ante o presente, / Como
te defines ao que será passado?”.
Não estamos em 1930 e os embriões de Hitler
e Mussolini não passam disto: embriões
*Tradutor e ensaísta, é um dos
organizadores das Obras de Gramsci no Brasil
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