O Globo
Estão fazendo tempestade em copo d’água, avaliou na
sexta-feira o hemodinamicista Marcelo Queiroga, com a nonchalance
recém-aprendida de simular segurança. Quarto titular da pasta da Saúde de Jair
Bolsonaro, Queiroga é o mais recente equilibrista/prestidigitador com a saúde
dos outros. Referia-se à grita nacional gerada pela abrupta suspensão de
vacinas para adolescentes, anunciada 24 horas antes. A medida também abortava o
próprio calendário oficial de imunizar jovens de 12 a 17 anos a partir da
quinta-feira, empurrando os brasileiros para novo patamar de desinformação
bolsonarista. Todos ao mar, sem bússola.
O jornalismo fez o que pôde para aquietar a população quanto à confiabilidade da vacina Pfizer — única autorizada para essa faixa etária — e convocou às pressas as vozes da ciência mais serenas e seguras para que se pronunciassem. Margareth Dalcolmo e Drauzio Varella, entre tantos outros, atuaram como dique para o desassossego em erupção. Coube ao médico sanitarista Gonzalo Vecina, a bordo do seu par de suspensórios e barba de Papai Noel, ser mais tonitruante. Por ter sido fundador e presidente da Anvisa, além de coidealizador do Sistema Único de Saúde (SUS) na década anterior, não lhe faltava conhecimento das entranhas e necessidades da saúde pública no Brasil. Ele rugiu.
“É um desastre, perdemos os rumos no Ministério da
Saúde. Nada se faz sem inteligência, nada”, explicou em entrevista ao Estúdio I
da GloboNews, alertando sobre a implosão de inteligência imposta ao Programa
Nacional de Imunizações (PNI) na era bolsonarista. Apesar de criado em 1973,
quando a ditadura militar foi soberana para matar e fazer desaparecer
opositores, o PNI sempre teve à mão um conselho que reunia dezenas de médicos
do vasto Brasil. O grupo se reunia periodicamente e tomava as decisões mais
relevantes — que vacinas aplicar, como e quando aplicar. “Essa inteligência
respeitada foi jogada no lixo quando Bolsonaro extinguiu o grupo”, diz Vecina.
(Vale acrescentar que, nesta semana, outro órgão, desta vez subordinado ao
Ministério da Educação, também fez tábula rasa de sua inteligência técnica. A
presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior,
Capes, Cláudia Queda de Toledo, no cargo há cinco meses, destituiu os 20
integrantes do colegiado que avalia os quase 5 mil programas de pós-graduação
do país. Serão substituídos por 18 outros, que talvez venham a exercer o poder
de revogação de decisões anteriores.)
O diagnóstico do sanitarista Vecina sobre a atuação
de Queiroga à frente do ministério e do combate à Covid-19 foi transparente:
“Um profissional de sala de hemodinâmica que pode até ser competente nessa
área, mas de saúde pública não entende nada. O que ele quer mesmo é continuar a
ser ministro”. Sua subserviente participação na live semanal de quinta-feira,
ao lado de Bolsonaro, confirma o diagnóstico: Queiroga virou claque. Aprendeu a
rir em sincronia com os espasmos do “mito”, achou graça até em piada sobre
função erétil. O país, à mesma hora, tentava sobreviver. E não se desesperar.
Em junho deste ano, a jornalista Chloé Pinheiro
publicou na plataforma Medium Brasil um denso relato sobre uma vítima
despreocupada e negacionista, em harmonia com seu círculo familiar
bolsonarista. Nas três vezes em que recorrera a um pronto-socorro Prevent
Senior em 2020, por ter contraído Covid-19 da filha, foi dispensada. Mas nunca
saiu de mãos vazias — sempre segurando a mesma receita de oito medicamentos do
“kit Covid”. Na quarta vez, com a saturação de oxigênio beirando os 89%, acabou
sendo internada e entubada. Morreu pouco depois.
À época da reportagem, o convênio dirigido ao
atendimento de idosos contava com 485 mil mutuários, a um custo médio de R$ 800
mensais, e afirmava ter tratado 12 mil com hidroxicloroquina, com 100% de
sucesso. A reportagem já apontava para a obrigatoriedade dos médicos do grupo
de prescrever o “kit Covid”, com plena anuência do Conselho Federal de
Medicina, da Agência Nacional de Saúde Suplementar e demais autoridades. “A
empresa encerrou 2020 com um lucro de R$ 495 milhões. Mil reais para cada vida
no bolso dos sócios”, escreveu a jornalista. E acrescentou que foi somente em
abril deste ano, depois de 12 meses de experimentação da Prevent Senior com
seus usuários, que o Ministério Público de São Paulo abriu inquérito para
investigar o grupo. Inquérito apenas civil.
Hoje o Brasil se aproxima de 600 mil vítimas fatais
da Covid-19. O número de brasileiros idosos que firmaram contratos com a
Prevent Senior também já pode estar beirando os 600 mil, a um lucro anual
equivalente. Nesta semana, graças a um dossiê/denúncia elaborado por médicos e
ex-médicos do próprio grupo, encaminhado à CPI da Covid e divulgado em primeira
mão pelo repórter Guilherme Balza, a real criminalidade dos experimentos da Prevent
Senior com suas cobaias crédulas e pagantes veio à tona. O quadro é de horror
lesa-humanidade, apontando para Brasília — e não se faz uso fácil do termo
neste espaço.
Por ora, a resistência do SUS e a determinação da
maioria dos integrantes da CPI em honrar nossos mortos são raros motivos de
esperança nacional. Não é preciso ter lido Voltaire para repetir quantas vezes
for necessário — toda pessoa que consegue convencer a acreditar em absurdos é
capaz de fazer cometer atrocidades.
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