Blog do Noblat / Metrópoles
Passados 130 anos da Abolição e da
República, os estrangeiros se espantam, mas os brasileiros não, quando a TV
mostra famílias sem comida
No século XIX, os estrangeiros que nos
visitavam não entendiam como era possível o Brasil tolerar a escravidão, ao
ponto de sequer perceber sua maldade. Ao chamar atenção de um brasileiro para o
absurdo de um escravo sendo chicoteado na rua, o estrangeiro ouve: “Mas ele é
negro”. Até hoje, se um estrangeiro se surpreende e comenta sobre as precárias
condições de escolas públicas, certamente ouviria: “Mas estes alunos são
pobres”.
Passados 130 anos da Abolição e da
República, os estrangeiros se espantam, mas os brasileiros não, quando a
televisão mostra famílias sem comida em casa, ao lado da notícia de que somos o
maior exportador de alimento do mundo, programas para escolher e premiar o
melhor chef de cozinha, além de propagandas sobre redes de “fast food”, com
jovens em êxtase ao comer suculentos sanduíches. O visitante estrangeiro deve
comparar isto com as chicotadas que escravos recebiam em plena rua: chicotadas
virtuais sobre as famílias que têm acesso à televisão e não têm acesso à
comida.
Os governos progressistas entre 1992 e 2018 mentem ao dizer que tiraram o Brasil do mapa da fome com Bolsa Escola de FHC e Bolsa Família de Lula: apenas suspenderam, mas não aboliram estruturalmente a fome. Bastaria uma crise econômica, inflação ou epidemia de covid, agravada por erros e insensibilidade do atual governo, e a fome voltaria, porque ela não estava abolida, apenas suspensa.
E não teria sido difícil superá-la. A fome
tem baixa escolaridade, como diz o pesquisador sobre o assunto Renato
Carvalheira Nascimento. As análises mostram que apenas 4% dos que passam fome
chegaram ao Ensino Médio. Se a educação de base tivesse sido oferecida antes, a
fome não estaria maltratando agora, porque a economia teria aumentado e
distribuído a renda, e o Brasil tem terra e tecnologia para produzir comida.
Este teria sido o caminho para abolir a fome no futuro, mas neste momento, é
necessária uma campanha que reúna e distribua comida. Solidariedade como o
Betinho, Itamar Franco e Dom Mauro Morelli lideraram em 1992.
Da mesma maneira que as vítimas de
violência doméstica pintam uma cruz na palma da mão para pedir socorro e
proteção contra a violência, os famintos poderiam mostrar a palma da mão com um
círculo desenhado para pedir socorro e proteção contra a violência da fome. Ao
lado deste encontro direto entre os que passam fome e quem tem algum dinheiro,
é possível criar centros SOS Fome para quem precisa de comida telefonar pedindo
socorro. O espanto brasileiro mostra que há celular mesmo em famílias com a
geladeira vazia, e se não tiver celular próprio, sempre haverá algum vizinho
que possa fazer a ligação.
Estes centros SOS Fome poderiam ser
financiados com a contribuição da sociedade. Seria preciso pouco da renda da
parcela rica, especialmente os setores mais eficientes da economia. O que
espanta na fome brasileira é que temos uma das maiores extensões da terra
arável do mundo, temos as melhores tecnologias agrícolas, somos o celeiro do
mundo e temos campos de concentração, incinerando as pessoas por dentro delas,
pela fome. O setor do agronegócio, cuja competência fez do Brasil o celeiro do
mundo, precisaria contribuir com pouco para o Brasil deixar de ser o campo de
concentração, com fornos crematórios dentro de cada pessoa.
Poderíamos espantar pelo lado positivo: o
Brasil unido em um SOS Fome.
*Cristovam Buarque foi senador, ministro e
governador
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